Parecer em Ação
Direta de Inconstitucionalidade
Processo nº 2100514-39.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Sorocaba
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba
Ementa:
1)
Ação direta de
inconstitucionalidade. Art. 1º (parte final) da Lei nº 10.731 de 26 de
fevereiro de 2014, do Município de Sorocaba, fruto de emenda parlamentar, que
determina que a remoção de veículos abandonados nas vias públicas sejam
removidos pelo Poder Público, através de rodízio alternado entre as empresas,
sob controle do órgão gestor responsável.
2) Abuso do poder de emenda. Alteração que desvirtua o projeto original e gera despesa não prevista. Violação dos arts. 5º, 24, § 5º, nº 1, 144 e 175, § 1º, 1 e 2, da Constituição Estadual. Procedência do pedido.
Colendo Órgão Especial
Senhor Desembargador Relator
Tratam estes autos de ação direta
de inconstitucionalidade, tendo como alvo a expressão através de rodízio alternado entre as empresas, sob controle do órgão
gestor responsável do art. 1º da Lei nº 10.731, de 26 de fevereiro de 2014,
do Município de Sorocaba.
Sustenta o requerente que o ato
normativo impugnado, fruto de emenda parlamentar, é inconstitucional por conter
vício de iniciativa, afrontar o princípio da separação e harmonia dos poderes e
por abuso no poder de emendar. Daí a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 2º,
61, § 1º c.c. os arts. 84, II e III, 63, I da Constituição Federal e arts. 5º, 24,
§ 5º, 1, 25, 47, II e 144 da Constituição Estadual.
Foi deferido o pedido de liminar para
suspender os efeitos do art. 1º da Lei nº 10.731, de 26 de fevereiro de 2014, do
Município de Sorocaba (fl. 129).
Citado regularmente (fl. 142), o
Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato
normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente
local (fls. 135/136).
Notificado regularmente (fl. 139),
o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a validade do
ato normativo impugnado (fls. 144/152).
Nestas condições, vieram os autos
para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.
Procede o pedido.
O art. 1º da Lei nº 10.731, de 26
de fevereiro de 2014, do Município de Sorocaba, fruto de emenda parlamentar tem
a seguinte redação:
“Artigo 1º - Os veículos
abandonados em vias públicas do Município de Sorocaba, serão removidos pelo
Poder Público, através de rodízio alternado entre as empresas, sob controle do
órgão gestor responsável.”
A redação original do projeto de
lei encaminhado pelo Poder Executivo era a seguinte:
“Artigo 1º - Os veículos abandonados
em vias públicas do Município de Sorocaba, serão removidos pelo setor
competente da Prefeitura Municipal ou por entidade integrante da administração
indireta, nos termos desta lei”.
O veto parcial do executivo ao
art. 1º da Lei nº 10.731/2014 foi derrubado pela Câmara Municipal.
Não se discute que a inovação
normativa, além de descaracterizar o projeto original que disciplinava o
serviço público colocando-o sob execução direta da Administração, trouxe
reflexos no orçamento do município, com aumento na despesa, na medida em que vinculou
a realização do serviço por empresas privadas.
A inconstitucionalidade do ato
normativo impugnado decorre do abuso do poder de emendar, importando em
violação aos arts. 63, I e 166, § 3º, I e II da Constituição Federal, normas
que regulam o processo legislativo que nos termos do art. 144 da Constituição
Estadual devem ser observadas pelos Municípios.
O processo legislativo,
compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto)
realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na
Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência
e harmonia dos Poderes.
O desrespeito às normas do processo
legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República,
conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o
controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.
A iniciativa, o ato que deflagra
o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).
A matéria de que trata a lei em
análise – criação e disciplina de serviço público – é daquelas cuja iniciativa
cabe ao Prefeito. Nesse aspecto, não há qualquer objeção, pois a Lei nº 10.731/2014,
do Município de Sorocaba, decorreu de projeto de iniciativa do Poder Executivo.
A questão na verdade deve ser
analisada sob a ótica dos limites do poder de emendar.
Sabe-se que apresentado o projeto
pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação, abrindo-se caminho
para a fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação
públicas da matéria. Nessa fase sobressai o poder de emendar, prerrogativa
inerente à função legislativa do parlamentar, que não é absoluta, pois
encontra-se limitada às restrições impostas, em “numerus clausus”, pela Constituição Federal (art. 63, I e 166, §
3º, I e II ), reproduzidas pelo art. 24, § 5º, nº 1 e
175, § 1º, 1 e 2, da Constituição Estadual.
Da interpretação das normas que regem o
processo legislativo, pode-se afirmar que a limitação ao poder de emendar
projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo existe no sentido de
evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a
desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde
pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário,
que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da
proposta original.
A este propósito o Supremo Tribunal Federal consignou que:
“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção legalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).
Mas o considera restrito, como se conclui do trecho acima destacado e do paradigmático julgado adiante transcrito:
“Incorre em vício de inconstitucionalidade formal (CF, artigos 61, § 1º, II, "a" e "c" e 63, I) a norma jurídica decorrente de emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, de que resulte aumento de despesa. Parâmetro de observância cogente pelos Estados da Federação, à luz do princípio da simetria. Precedentes. 2. Ausência de prévia dotação orçamentária para o pagamento do benefício instituído pela norma impugnada. Violação ao artigo 169 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 19/98. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADI 2079/SC, STF - Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ 18.06.2004, p. 44; Ement. Vol. 2156-01, p. 73).”
Estabelecidas estas
considerações, tem-se, no caso em análise, que a inovação normativa decorrente
da emenda modificativa implementada pela Câmara de Vereadores, prevendo a
realização do serviço de remoção de veículos abandonados em vias públicas a
empresas privadas, importou em alteração extrema do texto originário, rendendo
ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta
original. De outro lado, sendo o serviço realizado por empresa privada, o custo
teria de ser suportado pela administração pública.
A Constituição do Estado, em
simetria com o modelo Federal, não permite emenda que importe em aumento de
despesa aos projetos de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo (art. 24, §
5º, nº 1).
Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144 da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:
“O modelo estruturador do processo
legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição
da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do
processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de
compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros.
Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar,
relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).
Percebe-se que o dispositivo legal
impugnado prevê a realização do serviço público através de empresas privadas. Assim
além de ingerência na gestão administrativa, interfere na administração do
orçamento, pois acarreta despesa sem a indicação da fonte de custeio.
A alteração produzida pela Câmara Municipal representa inequívoco abuso do poder de emendar, com a consequente violação do princípio da separação dos poderes de que trata o art. 5º da Constituição do Estado.
Por isso, em que pesem o elevado propósito que inspirou o
parlamentar, autor da emenda ao projeto, o dispositivo impugnado é
verticalmente incompatíveis com a Constituição do
Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º, 24, § 5º, nº 1, 144 e 175, § 1º, 1 e 2.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente
para declarar a inconstitucionalidade da expressão “através de rodízio alternado entre as
empresas, sob controle do órgão gestor responsável” do art. 1º da Lei nº 10.731, de 26 de fevereiro de 2014, do
Município de Sorocaba.
São
Paulo, 09 de outubro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aca