Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2102262-09.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Orlândia

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Orlândia

 

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 3.980, de 17 de junho de 2014, do Município de Orlândia, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o agendamento de consultas médicas, exames e cirurgias nas unidades de saúde do município, para pacientes com idade superior a 60 anos, com problemas de locomoção, de pessoas portadoras de câncer, soropositivos, gestantes e recém nascidos, e dá outras providências.”

2)      Preliminar. Irregularidade na representação processual. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou instrumento procuratório com poderes específicos.

3)      Mérito. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização de serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura dos custos decorrentes das medidas exigidas (art. 25 da Constituição Estadual).

4)      Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II, XIV e     XIX, a, e 144 da Constituição do Estado. Procedência do pedido.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 3.980, de 17 de junho de 2014, do Município de Orlândia, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o agendamento de consultas médicas, exames e cirurgias nas unidades de saúde do município, para pacientes com idade superior a 60 anos, com problemas de locomoção, de pessoas portadoras de câncer, soropositivos, gestantes e recém nascidos, e dá outras providências.”

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, violar o princípio da harmonia e da independência dos poderes e por gerar despesa sem indicação de fonte de custeio. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 24, § 2°, 1, 25 e 144 da Constituição Estadual.

Foi concedida a liminar (fl. 23).

Citado regularmente, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 31/33).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações a fls. 38/49.

Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

1.   PRELIMINARMENTE

A petição inicial é assinada digitalmente pelo procurador do município (fl. 1/16), sem outorga de instrumento procuratório com poderes específicos.

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de poderes especiais, ou, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Este Colendo Órgão Especial em decisão recente sufragou este entendimento, conforme se verifica pela seguinte ementa:

“Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente” (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012)

Assim, requeiro seja a autora intimada para regularização de sua representação processual ou subscrição da petição inicial, no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

2.   NO MÉRITO

Caso seja regularizada a representação processual, no mérito procede o pedido.

A Lei nº 3.980, de 17 de junho de 2014, do Município de Orlândia, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“ART. 1° - Fica a Chefe do Poder Executivo Municipal, através desta lei, autorizada a instituir no âmbito do Município de Orlândia, um cadastro especial com vistas ao agendamento de consultas médicas, exames e cirurgias para pacientes com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, com problemas de locomoção, portadores de câncer, soropositivos, gestantes e recém-nascidos atendidos na Unidade Básica de Saúde e nas Unidades do Programa Saúde da Família.

§ 1° - O paciente relacionado no cadastro especial deverá ser atendido no prazo máximo de 07 (sete) dias úteis do agendamento de sua consulta ou exame e prazo máximo de 30 (trinta) dias para casos de cirurgia.

§ 2° - O cadastro especial de que trata o caput, deverá ser algo a parte dos casos da Central de Regulação, exatamente para dar agilidade.

§ 3° - As Unidades de Saúde deverão afixar, em local visível à população, material indicativo do conteúdo desta lei.

ART. 2° - A elaboração do cadastro especial ficará sob responsabilidade da Secretaria Municipal da Saúde, que deverá fiscalizar o cumprimento do agendamento das consultas e exames.

ART. 3° - O não cumprimento quanto ao artigo 1° da presente lei sujeitará o infrator às penalidades previstas na Legislação Federal correspondente a cada caso.

ART. 4° - O Executivo Municipal regulamentará esta lei no prazo máximo de 90 (noventa) dias, à partir da data de sua publicação.

ART. 5° - As despesas com a execução da presente lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias.

ART. 6° - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.”

Verifica-se que o diploma normativo impugnado autoriza o Poder Executivo a implantar no Município de Orlândia um cadastro especial para agendamentos de consultas médicas, exames e cirurgias para pacientes com idade igual ou superior a 60 anos, com problemas de locomoção, portadores de câncer, soropositivos, gestantes e recém nascidos atendidos na Unidade Básica de Saúde e nas Unidades do Programa Saúde da Família.

O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o princípio da separação de poderes previstos nos arst. 1º, 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A organização de serviços administrativos é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode por meio de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função de prever um cadastro especial no âmbito do sistema municipal de saúde invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação de programas em benefício dos munícipes. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei impugnada de um lado viola o art. 47, II e XIV ao estabelecer regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Cabe ainda ressaltar que não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

O agendamento de consultas médicas, exames e cirurgias no sistema público de saúde é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A utilização recorrente de leis autorizativas tem objetivos de cunho nitidamente políticos, transmitindo aos cidadãos uma falsa ideia de direito subjetivo e de negligência do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Em razão do previsto no art. 5° da lei objeto desta ação, há ofensa à regra que condiciona o estabelecimento de nova despesa pública à cobertura financeiro-orçamentária (art. 25 da Constituição Estadual).

Diante do exposto, superada preliminar, aguarda-se que seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.980, de 17 de junho de 2014, do Município de Orlândia.

 

              São Paulo, 02 de setembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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