Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2102853-68.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Franca

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Franca

 

                                       Ementa:

 

1) Ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 8.038, de 08 de abril de 2014, do Município de Franca, de iniciativa parlamentar, que Institui no Município o sistema de estacionamento “Área Azul Social” em vias públicas situadas no entorno de eventos com grande afluxo de público.

2) É inconstitucional lei local, de iniciativa parlamentar, que alterando a legislação municipal que disciplina o uso privativo de bem público de uso comum do povo consistente no estacionamento regulamentado, por se situar a matéria no âmbito da reserva de Administração decorrente do princípio da separação de poderes, ao refletir o exercício da gestão administrativo-patrimonial sobre a utilização privativa de bens públicos de uso comum do povo.

3) Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

           

Trata-se de ação proposta pelo Prefeito do Município de Franca, que visa à declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 8.038, de 08 de abril de 2014, do Município de Franca, de iniciativa parlamentar, que Institui no Município o sistema de estacionamento “Área Azul Social” em vias públicas situadas no entorno de eventos com grande afluxo de público.

 Sustenta o autor que a lei afronta os arts. 5º; 25; 47, II e XIV; 111; 163, caput e inciso II; e 174, caput e incisos I, II e III, parágrafos 2º e 6º da Constituição Estadual, por conter vício de iniciativa, uma vez que representa ato de gestão administrativa de atribuição exclusiva do Prefeito Municipal, afrontando o princípio da independência e harmonia entre os poderes, importando ainda em interferência na arrecadação municipal atingindo o planejamento orçamentário.

Foi concedida a liminar para a suspensão da eficácia dos dispositivos legais impugnados (fl. 74).

Notificado à fl. 80, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade dos atos normativos impugnados (fls. 82/90).

Citado para os fins do art. 90, § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo (fl. 104), o Procurador-Geral do Estado manifestou não haver interesse na defesa do ato impugnado por tratar de matéria exclusivamente local (fls. 99/101).

Interposto pela Câmara Municipal agravo regimental a fim de cassar a liminar concedida (fls. 106/112), foi negado provimento e mantida a decisão (fls. 125/128).

A Câmara Municipal, então, interpôs recurso extraordinário com a mesma finalidade (133/144), o qual foi contrarrazoado (148/160) e, após parecer desta Procuradoria-Geral (162/166), teve negado o seguimento conforme acórdão de fls. 168/169.

Diante da decisão que negou seguimento ao recurso extraordinário, fora interposto agravo de instrumento (171/178) e foram apresentados contra-minuta (fls. 180/183) e parecer desta Procuradoria-Geral de Justiça (fls. 185/189).

Conforme fls. 197/203, o Supremo Tribunal Federal negou provimento ao agravo de instrumento.

É a síntese do que consta nos autos.

O pedido deve ser julgado procedente.

O ato normativo institui no Município de Franca o sistema de estacionamento “Área Azul Social” em vias públicas situadas no entorno de eventos com grande afluxo de público.

A regulamentação do estacionamento nas vias públicas é matéria que cabe ao Pode Executivo Municipal através de seu órgão executivo de trânsito nos termos do art. 24, I, II e III do Código de Trânsito Brasileiro.

Assim, considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe, é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

A Lei nº 8.038, de 08 de abril de 2014, do Município de Franca, viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

O uso privativo de bem público, com prerrogativa de exploração, como é o estacionamento rotativo, em vias e logradouros públicos, é típico ato de polícia administrativa, disciplinando a fruição desses bens.

O estacionamento remunerado rotativo em vias e logradouros públicos reflete o exercício da gestão administrativo-patrimonial sobre a utilização privativa de bens públicos de uso comum do povo. E sob este ângulo, denota-se a violação ao princípio da separação dos poderes pela usurpação da reserva da administração, perceptível dos incisos II e XIV do art. 47 c.c. o art. 5º, da Constituição Estadual, aplicável aos Municípios por força de seu art. 144.

Assim, quando o Poder Legislativo edita lei disciplinando estacionamento em vias públicas, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Os regras de trânsito no âmbito municipal no que se refere a definição de sinalização, dos locais onde se permite estacionar, restrição de circulação, etc..., atendidas as regras gerais do Código de Trânsito Brasileiro, encontram-se na gestão administrativa da Cidade, privativa do Poder Executivo.

Nos termos do art. 21, II, do Código de Trânsito Brasileiro,  compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição, planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;

Regulamentar e operar o trânsito de veículos implica em disciplinar locais, tipo de estacionamento, horários e dias, pois o Código de Trânsito Brasileiro “considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga” ( § 1º, art. 1º).

De outro lado, a atividade de regulamentação da via – definida no Código de Trânsito Brasileiro (Anexo I - Dos conceitos e definições) como “implantação de sinalização de regulamentação pelo órgão ou entidade competente com circunscrição sobre a via, definindo, entre outros, sentido de direção, tipo de estacionamento, horários e dias” cabe ao órgão executivo de trânsito.

Neste sentido dispõe o Código de Trânsito Brasileiro ao estabelecer que:

 “Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

(...)

 X - implantar, manter e operar sistema de estacionamento rotativo pago nas vias;”

Evidente que se trata de atribuição conferida a órgão do Poder Executivo, pela própria dicção do termo utilizado “órgão executivo de trânsito”, portanto, inviável sua regulamentação por iniciativa do Poder Legislativo.

A regulamentação do trânsito no Município é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e em geral prescinde de lei.

Os problemas decorrentes do trânsito nas cidades exigem estudo e planejamento para a adequada solução dos transtornos que podem provocar aos munícipes, atividades relacionadas à gestão administrativa.

Por este motivo, cabe essencialmente ao Poder Executivo, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade de conferir gratuidade e tolerância para estacionamento em locais restritos e sujeitos a pagamento. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, pois envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise representados pelo estabelecimento de regras de trânsito referentes a estacionamento. A atuação legislativa impugnada, equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

A importância da reserva da Administração é bem aquilatada pelo Supremo Tribunal Federal:

 “RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Em caso similar, este egrégio Órgão Especial declarou a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Municipal n° 7.192 de 17/11/2008, de Jundiaí, de iniciativa de vereador, vetada pelo Prefeito, cujo veto foi rejeitado pela Câmara Municipal, sendo promulgada pelo Presidente desta - Alegação de inconstitucionalidade por violação do principio da independência dos Poderes (artigo 5º, caput, da Constituição Estadual) – Alegação procedente porque a lei disciplina como a responsabilização de empresa operadora de estacionamento rotativo de veículos - Matéria típica de Administração de competência exclusiva do Prefeito – Ação procedente” (TJSP, ADI 176.012-0/5-00, Rel. Des. Antonio C. Malheiros, v.u., 22-09-2009).

Acoimada de vício de inconstitucionalidade a lei local contestada por configurar intromissão indevida do Poder Legislativo na esfera de competência privativa do Poder Executivo, o que evidencia afronta ao princípio de separação de poderes.

Neste sentido, já decidiu este egrégio Tribunal de Justiça que:

“(...) a regulamentação do estacionamento na via pública é consequência natural dessa administração, constituindo matéria de exclusiva atribuição do Prefeito, não cabendo à Câmara Municipal dizer que os integrantes desta ou daquela categoria profissional devem estacionar seus veículos aqui ou acolá. É matéria de execução e não de legislação. No que diz respeito à isenção de pagamento nas ‘Zonas Azuis’, também fica caracterizada a invasão na esfera de poder do Executivo. As ‘Zonas Azuis’ produzem receita que ingressa no orçamento municipal. Leis que afetam a produção da receita são de iniciativa do Prefeito” (Arguição de Inconstitucionalidade de Lei na Apelação Cível 30.581-0/5, São Paulo, Órgão Especial, Rel. Des. Barbosa Pereira, v.u., 10-04-1996).

Importante apontar que a inconstitucionalidade não decorre de afronta ao art. 25 da Constituição Estadual. A lei contestada não cria obrigação nova ao poder público e eventual geração de despesas ou diminuição de arrecadação, dependeria de exame de fato e de prova, insuscetível na via estreita do controle concentrado de constitucionalidade.

Tanto o é que a própria lei, no art. 2º, prevê que “A administração e a exploração econômica da Área Azul Social somente serão outorgadas a entidades filantrópicas de utilidade municipal, de cunho social e sem fins lucrativos, e serão concedidas através do instituto Permissão, mediante contrato precedido de licitação”.

 Diante do exposto, o pedido deve ser julgado procedente reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 8.038, de 08 de abril de 2014, do Município de Franca.

 

                   São Paulo, 02 de dezembro de 2015.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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