Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2105222-35.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Pratânia

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Pratânia

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 425, de 05 de março de 2010, e Lei n. 589, de 13 de junho de 2014, do Município de Pratânia, de iniciativa parlamentar. Implantação do “espaço do lazer” e proibição de trânsito de veículos automotores em trechos que o compõem. Separação de poderes. Reserva da Administração. Procedência. 1. O controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, consoante previsto no § 2º do art. 125 da Constituição Federal, razão pela qual é inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica do Município, lei federal ou dispositivo da Constituição Federal não reproduzido nem imitado pela Constituição Estadual ou que não seja de observância obrigatória. 2. Leis locais, de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre a criação do “Espaço do lazer”, padecem de inconstitucionalidade porque a gestão do patrimônio público e a disciplina do uso de bens públicos e do trânsito local são assuntos da administração ordinária do Município, estando no círculo da reserva da Administração, consistente nas matérias que são da alçada privativa do Chefe do Poder Executivo, imunes à intervenção do Poder Legislativo (arts. 5º, 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e 144  da CE/89).

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                               Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 425, de 05 de março de 2010, e a Lei n. 589, de 13 de junho de 2014, do Município de Pratânia, de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre a criação do “Espaço do lazer” e a proibição de trânsito de veículos automotores nas vias públicas que o compõem, sob alegação de vício de iniciativa e de violação ao princípio da separação de poderes, arts. 5° e 144 da Constituição Paulista e art. 2° da Constituição Federal (fls. 01/12).

2.                               Indeferida a liminar (fls. 35/36), o douto Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo impugnado (fls. 41/43) e decorreu in albis o prazo para informações da Câmara de Vereadores (fl. 49).

3.                               É o relatório.

4.                               É procedente a ação.

5.                               O controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, consoante previsto no § 2º do art. 125 da Constituição Federal, razão pela qual é inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica do Município, lei federal ou dispositivo da Constituição Federal não reproduzido nem imitado pela Constituição Estadual ou que não seja de observância obrigatória.

6.                               A gestão do patrimônio público e a disciplina do uso de bens públicos e do trânsito local são assuntos da administração ordinária do Município, estando no círculo da reserva da Administração, consistente nas matérias que são da alçada privativa do Chefe do Poder Executivo, imunes à intervenção do Poder Legislativo, e que emana dos arts. 5º e 47, II e XIV, da Constituição do Estado de São Paulo.

7.                               A divisão funcional do poder (separação de poderes) é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia da repartição das funções estatais e sua entrega a órgãos que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:

“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

8.                               Como consequência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

9.                               Daí também decorre uma série de mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções ao lado da fixação estática de competências próprias, como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).

(...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).     

10.                         No caso, as leis locais invadiram a reserva da Administração disciplinando assunto que não se insere no feixe de suas competências.

11.                         Neste sentido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

12.          Ademais, lei municipal que trata da mesma matéria já foi objeto de declaração de inconstitucionalidade por esse Colendo Órgão Especial. Senão vejamos:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 3.647, de 12 de setembro de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá, que cria rua de lazer em trecho de via daquela localidade e anuncia os dias e períodos em que ele deve ser fechado. Vício de iniciativa reconhecido. Quebra do princípio da independência dos poderes. Aumento de despesa sem correspondente fonte de custeio. Violação dos artigos 5º, 25, 47, incisos II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Ação procedente.” (ADIN 2005269.98.2014.8.26.0000, Rel. Des. Arantes Teodoro, j. 14 de maio de 2014)        

13.                         Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

14.                         Desta forma, as leis ao regulamentarem, ainda que parcialmente, o uso de bem público e disciplinarem matéria relativa ao tráfego local, de um lado, violam o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, elas ofendem o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.                                                                     

15.                         Face ao exposto, opino pela procedência da ação em razão da incompatibilidade da Lei n. 425, de 05 de março de 2010, e da Lei n. 589, de 13 de junho de 2014, do Município de Pratânia, com os artigos 5º, 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e 144 da Constituição Estadual.

 

São Paulo, 23 de setembro de 2014.

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

    Jurídico

wpmj/acssp