Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2105898-80.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Taubaté

Requerida: Câmara Municipal de Taubaté

 

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.872, de 27 de maio de 2014, do Município de Taubaté. Alteração dos arts. 1º e 2º da Lei n. 2.222, de 12 de setembro de 1986. Anúncio de revogação tácita. Diligência alvitrada. Lei, de iniciativa parlamentar, que altera as regras de substituição de permissionário de táxi, em caso de falecimento. Impossibilidade de contraste com o direito infraconstitucional. Polícia administrativa. Inexistência de violação ao princípio de separação de poderes ou de invasão da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Iniciativa legislativa comum ou concorrente. Ação improcedente. 1. Anunciada a expedição de autógrafo em projeto de lei de iniciativa do alcaide requerente que revoga tacitamente a lei impugnada convém a excepcional conversão do julgamento em diligência para intimar as partes à juntada de cópia da lei sancionada ou promulgada, uma vez que editada nova lei há perda superveniente do objeto caracterizadora de extinção do processo sem resolução do mérito. 2. Parâmetro exclusivo do contencioso de constitucionalidade de lei municipal é a Constituição Estadual sendo defeso seu contraste com o direito infraconstitucional. 3. Lei municipal de iniciativa parlamentar que altera lei que regula a substituição do permissionário de táxi em caso de óbito não é matéria que pertença à iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo por não consubstanciar serviço público nem matéria atinente à organização e funcionamento da Administração Pública. 4. Diploma legal cujo objeto é a polícia administrativa de atividade privada sujeita a controle estatal é da iniciativa legislativa comum ou concorrente. 5. Ação improcedente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eminente Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

 

1.                O Prefeito do Município de Taubaté ajuíza ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei n. 4.872, de 27 de maio de 2014, de iniciativa parlamentar, que alterou os arts. 1º e 2º da Lei n. 2.222, de 12 de setembro de 1986, do Município de Taubaté, arguindo sua incompatibilidade com os arts. 5º e 47, XVIII, da Constituição Estadual (fls. 01/10). Concedida a liminar (fl. 31), a douta Procuradoria-Geral do Estado absteve-se de sua defesa (fls. 42/44). Nas informações a Câmara Municipal de Taubaté sustenta perda superveniente do objeto condutora da extinção do processo sem resolução do mérito em razão da aprovação do Projeto de Lei n. 73/2014, de autoria do Prefeito Municipal de Taubaté, o qual foi expedido o Autógrafo n. 103/2014, pendente de prazo para sanção ou promulgação, que dá nova redação aos arts. 1º e 2º da Lei n. 2.222/86 (fls. 46/48), conforme cópia juntada (fl. 52).

2.                é o relatório.

3.                A simples aprovação de projeto de lei revogando tacitamente a lei impugnada não é suficiente para caracterização de perda superveniente do objeto condutora da extinção do processo sem resolução do mérito por falta de interesse de agir. É imperativa a edição de lei para tanto.

4.                No caso em exame, convém a intimação de ambas as partes para promover a juntada de cópia da lei futura cujo autógrafo já foi expedido, especialmente porque ela é de iniciativa do próprio autor desta ação.

5.                Destarte, requeiro, preliminarmente, essa diligência.

6.                A Lei n. 4.872/14, de iniciativa parlamentar, alterou os arts. 1º e 2º da Lei n. 2.222/86.

7.                A Lei n. 2.222, de 12 de setembro de 1986, também de iniciativa parlamentar, dispõe sobre a substituição de permissionário de serviço de táxi, em caso de falecimento (fl. 16). Eis o teor de seus arts. 1º e 2º:

“Art. 1º. Vindo a falecer permissionário de serviço de táxi, a Prefeitura Municipal, caso deseje outorgar nova permissão, até 1 (um) ano após a morte do permissionário, deverá dar preferência à viúva ou herdeiro necessário do permissionário falecido, ou, em sendo o mesmo solteiro ou separado, à concubina que com ele haja vivido ininterruptamente nos últimos 5 (cinco) anos, a contar da data do óbito.

Art. 2º. Para fazer jus à preferência de que trata o artigo 1º, deverá o interessado, no prazo de 90 (noventa) dias, a contar do óbito do permissionário, aduzir seu interesse em requerimento dirigido ao Prefeito Municipal, acompanhado de certidões comprobatórias da situação alegada.

Parágrafo único. Em se tratando de sucessor nas condições do artigo 1º e que não pretenda exercitar atividade de permissionário, ou não tenha condições legais de fazê-lo, fica autorizado a indicar, no mesmo prazo deste artigo, terceiro em condições para tanto e que preencha os requisitos impostos pelo ordenamento municipal que permita ser o titular da permissão”.

8.                O parágrafo único do art. 2º foi adicionado pela Lei n. 2.275, de 05 de outubro de 1987.

9.                A Lei n. 4.872, de 27 de maio de 2014, de iniciativa parlamentar, modificou esses preceitos da seguinte maneira:

“Art. 1º. O artigo 1º da Lei nº 2.222, de 12 de setembro de 1986, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 1º. Em caso de falecimento do outorgado, o direito à exploração do serviço será transferido a seus sucessores legítimos, nos termos dos artigos 1.829 e seguintes do Título II do Livro V da parte especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

Parágrafo único. A transferência de que trata o caput, dar-se-á pelo prazo da outorga e está condicionada à prévia anuência do poder público municipal e ao atendimento dos requisitos fixados para a outorga’.

Art. 2º. O artigo 2º da Lei nº 2.222, de 1986, com a redação dada pela Lei nº 2.275, de 5 de outubro de 1987, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 2º. Para fazer jus à preferência de que trata o art. 1º, deverá o interessado, no prazo de 90 dias, a contar do óbito do outorgado, aduzir seu interesse em requerimento dirigido ao Prefeito Municipal, acompanhado de certidões comprobatórias da situação alegada.

Parágrafo único. Em se tratando de sucessor nas condições do art. 1º e que não pretenda exercitar atividade do outorgado, ou não tenha condições legais de fazê-lo, fica autorizado a indicar, no mesmo prazo deste artigo, terceiro em condições para tanto e que preencha os requisitos impostos pelo ordenamento municipal que permita ser o titular da outorga”.

10.              É impróprio o contraste da lei local contestada com a Lei n. 12.865/13. O exclusivo parâmetro no contencioso de constitucionalidade de lei municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal). Qualquer alegação fundada em norma infraconstitucional, não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012). Está assentado que “a pretensão de cotejo entre o ato estatal impugnado e o conteúdo de outra norma infraconstitucional não enseja ação direta de inconstitucionalidade” (STF, AgR-ADI 3.790-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Menezes Direito, 29-11-2007, v.u., DJe 01-02-2008).

11.             Táxi é atividade privada consistente em transporte particular oneroso de passageiros, sujeita ao controle estatal pela polícia administrativa através da outorga de licença, autorização ou outro ato de natureza similar. Não constitui serviço público porque não é atividade estatal, não está submetida a regime jurídico de direito público, e não colima a satisfação de necessidades coletivas fruíveis singular ou genericamente.

12.             Transcrevo, por sua pertinência, excerto parecer da Procuradoria-Geral de Justiça que examinou a natureza jurídica dessa atividade:

“14.             Consoante obtemperado no precedente deste egrégio Tribunal de Justiça acima destacado:

‘O serviço de transporte por táxi depende de ‘autorização’ do Poder Público (...) Isso, entretanto, não significa que ao Poder Legislativo seja vedada a estipulação de regras gerais a serem observadas no exercício da atividade’ (ADI 105.773-0/2-00, Órgão Especial, Rel. Des. Sinésio de Souza, v.u., 06-10-2004).

15.               Não custa afirmar que o serviço de transporte individual de passageiros em veículos de aluguel (táxi), executado por pessoas físicas ou jurídicas, não é serviço público nem assume o contorno de figura inerente à descentralização administrativa por colaboração, ou, em outras palavras, delegação de serviço público mediante concessão ou permissão.

16.              Com efeito, o serviço de transporte individual de passageiros em veículos de aluguel não é serviço público e norma alguma poderia assim qualificá-los; trata-se de atividade privada sujeita à polícia administrativa. E isto porque, segundo a firme opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a caracterização do serviço público demanda a cumulação dos elementos material (atividade material de satisfação concreta de necessidades coletivas), subjetivo (atribuição por lei ao Estado) e formal (regime jurídico total ou parcialmente público). Com relação ao elemento subjetivo, o Estado tanto pode desempenhá-lo diretamente por seus órgãos ou indiretamente por outorga às entidades da Administração indireta ou delegação a particulares mediante concessão ou permissão; com referência ao material, é insuficiente o objetivo de interesse público, sendo necessário que a lei atribua esse escopo ao Estado (Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2006, 20ª ed., pp. 88-92).

17.              Maria Sylvia Zanella Di Pietro critica a classificação que diferencia serviços próprios e impróprios, demonstrando que, estes últimos:

‘(...) são os que, embora atendendo também a necessidades coletivas, como os anteriores, não são assumidos nem executados pelo Estado, seja direta ou indiretamente, mas apenas por ele autorizados, regulamentados ou fiscalizados; eles correspondem a atividades privadas e recebem impropriamente o nome de serviços públicos, porque atendem a necessidades de interesse geral; vale dizer que, por serem atividades privadas, são exercidas por particulares, mas, por atenderem a necessidades coletivas, dependem de autorização do Poder Público, sendo por ele regulamentadas e fiscalizadas; ou seja, estão sujeitas a maior ingerência do poder de polícia do Estado.

Na realidade, essa categoria de atividade denominada de serviço público impróprio não é serviço público em sentido jurídico, porque a lei não a atribui ao Estado como incumbência sua ou, pelo menos, não a atribui com exclusividade; deixou-a nas mãos do particular, apenas submetendo-a a especial regime jurídico, tendo em conta sua relevância’ (Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2006, 20ª ed., pp. 96).

18.              A atividade de transporte individual de passageiros em veículos de aluguel é privada, regida pelo direito privado e exercida com exclusividade pelo particular, mas, como tem relevância pública, é sujeita a policy do poder público e às suas regras de disciplina, consentimento e controle (arts. 170, parágrafo único, e 174, Constituição Federal), elementares a qualquer limitação ou condicionamento de direito ou interesse instituída em prol do interesse público (polícia administrativa).

19.              Se fosse serviço público, o particular estaria ligado ao Estado por um título jurídico individual. A hipótese seria diferente e haveria base para exigência de relação de emprego ut art. 71 da Lei n. 8.666/93 e nas próprias normas regulamentares do serviço, para evitar responsabilidade subsidiária do poder público delegante. Todavia, dele não se trata, porque ninguém pode delegar a outrem o que não lhe pertence. A delegação do serviço público ao particular pressupõe titularidade (elemento subjetivo). Diversamente, o exercício de atividade privada sujeita, por lei, o particular a incidência de normas públicas conciliadoras da tensão entre interesse público e privado, o que caracteriza o police power” (TJSP, ADI 990.10.183.900-8).

13.            Afigura-se irrelevante para essa distinção o nomen iuris do consentimento estatal à prática da atividade que, na lei local, é designada como termo de permissão, pois, geralmente, se empregam os institutos da licença ou da autorização, conforme a competência vinculada ou discricionária estabelecida em lei, respectivamente. A denominação não altera a essência, a natureza e o regime do instituto, até porque, como observa Odete Medauar, incluem-se entre os atos administrativos classificados em função de seu objeto os que consentem no exercício de atividades como autorização, permissão e licença (Direito Administrativo Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, 11ª ed., p. 141).

14.              Não se verifica usurpação da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo constante do rol do art. 24, § 2º, da Constituição Estadual que reproduz o art. 61, § 1º, II, da Constituição Federal.

15.              Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

16.              Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36). 

17.              Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144).

18.              Não se verifica em qualquer uma das hipóteses catalogadas nesse preceito reserva de iniciativa legislativa instituída de maneira expressa, o que afasta do contexto a alegação de usurpação de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

19.              Efetivamente, a lei local impugnada não cria ou extingue órgãos administrativos, nem lhe comete novas atribuições.

20.              Neste sentido, este egrégio Tribunal de Justiça assentou que:

“Entretanto, fora dos temas reservados, a regra é a iniciativa concorrente, já que é esta a que melhor se identifica com o princípio da separação e harmonia entre os Poderes, que, dada a sua importância, não permite interpretação extensiva às suas exceções” (TJSP, ADI 105.773-0/2-00, Órgão Especial, Rel. Des. Sinésio de Souza, v.u., 06-10-2004).

21.              Opino pela conversão do julgamento em diligência para intimação das partes a fim de juntar cópia da lei que revoga o diploma legal impugnado e causa extinção do processo por falta superveniente do interesse de agir e, no mérito, pela procedência da ação.

                   São Paulo, 15 de setembro de 2014.

 

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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