Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2106266-89.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Poá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Poá

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 3.727, de 19 de maio de 2014, do Município de Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar que dispõe sobre a criação de rua de lazer.

2)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

3)      A gestão do patrimônio público e a disciplina do uso de bens públicos e do trânsito local são assuntos da administração ordinária do Município, estando no círculo da reserva da Administração, consistente nas matérias que são da alçada privativa do Chefe do Poder Executivo, imunes à intervenção do Poder Legislativo.

4)      Violação do princípio da separação dos poderes (arts. 5º e 47, II e XIV da Constituição Estadual). Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei nº 3.727, de 19 de maio de 2014, do Município de Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a criação de rua de lazer.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, por importar em ingerência na administração pública, por disciplinar matéria da competência do poder executivo e por gerar aumento de despesas sem prévia dotação orçamentária. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 25, 47, II e XIV e 144 da Constituição Estadual, arts. 2º, 8º, 27, 28 e 61 da Lei Orgânica Municipal, arts. 22, XI 100, § 1º, 165, § 9º, I e II, 166, §§ 3º, 4º e 6º e 167, I e II da Constituição Federal e arts. 32 e 33 da Lei 4.320/64.

Foi deferido o pedido de liminar para suspender os efeitos do ato normativo impugnado (fls. 45/46).

Notificado (fl. 56), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações a fls. 61/68, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Citado regularmente (fl. 59), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 52/54).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

PRELIMINARMENTE

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Constituição Federal, com dispositivos da Lei Orgânica Municipal ou de outra legislação infraconstitucional.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

NO MÉRITO

Procede o pedido.

A Lei nº 3.727, de 19 de maio de 2014, do Município de Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º Fica a Criação de Rua de Lazer a Rua Maria Eugênia Aguilar, no Bairro Vila Perracine, em nosso Município.

Art. 2º A rua será fechada aos Sábados, Domingos e Feriados, das 08:00 às 17:00 horas.

Art. 3º As despesas necessárias da presente lei sobre a criação de rua de lazer, face à execução do presente projeto, correrão por conta de verbas próprias do orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art. 4º A presente Lei entrará em vigor na data de sua publicação revogadas as disposições contrárias.

(...)”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A gestão do patrimônio público e a disciplina do uso de bens públicos e do trânsito local são assuntos da administração ordinária do Município, estando no círculo da reserva da Administração, consistente nas matérias que são da alçada privativa do Chefe do Poder Executivo, imunes à intervenção do Poder Legislativo.

A criação e instituição de uma rua de lazer, com vedação ao tráfego aos sábados, domingos e feriados, das 08:00 às 17:00 horas,  é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, porque disciplina uso de bens públicos e regulamenta o tráfego local.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da criação de uma rua de lazer, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação e implantação de ruas de lazer, com respectivo fechamento ao tráfego. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao regulamentar, ainda que parcialmente o uso de bem público e disciplinar matéria relativa ao tráfego local, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

As regras de trânsito no âmbito municipal, atendidas as regras gerais do Código de Trânsito Brasileiro, encontram-se na gestão administrativa da Cidade, privativa do Poder Executivo, a quem cabe decidir acerca da conveniência e oportunidade de fechamento de vias públicas e sua destinação ao lazer em determinados dias e horários, como o disciplinado no ato normativo impugnado.

Ademais, para consolidação da referida implantação da rua de lazer, são necessárias várias providências a cargo do Poder Executivo, como sinalização, advertência etc.

Nos termos do art. 21 do Código de Trânsito Brasileiro, compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição atividades de fiscalização, planejamento, sinalização, engenharia de tráfego, autuação, arrecadação das multas, promoção de programas de educação e segurança etc.

Evidente que se trata de atribuição conferida a órgão do Poder Executivo, pela própria dicção do termo utilizado “órgão executivo de trânsito”, portanto, inviável sua regulamentação por iniciativa do Poder Legislativo.

Os problemas decorrentes do trânsito nas cidades exigem estudo e planejamento para a adequada solução dos transtornos que podem provocar aos munícipes, atividades relacionadas à gestão administrativa.

Por este motivo a matéria de que cuida o ato normativo impugnado é de atribuição privativa do Poder Executivo, e não cabe ao legislador, deliberar a respeito de planejamento, sinalização, engenharia de tráfego, programas e projeto relacionados ao trânsito.

Por fim resta assinalar que lei do mesmo Município tratando da mesma matéria já foi objeto de declaração de inconstitucionalidade por esse Colendo Órgão Especial. Senão vejamos:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 3.647, de 12 de setembro de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá, que cria rua de lazer em trecho de via daquela localidade e anuncia os dias e períodos em que ele deve ser fechado. Vício de iniciativa reconhecido. Quebra do princípio da independência dos poderes. Aumento de despesa sem correspondente fonte de custeio. Violação dos artigos 5º, 25, 47, incisos II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Ação procedente.” (ADIN 2005269.98.2014.8.26.0000, Rel. Des. Arantes Teodoro, j.  14 de maio de 2014)

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.727, de 19 de maio de 2014, do Município de Estância Hidromineral de Poá.

              São Paulo, 16 de setembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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