Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2108740-33.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Cafelândia

Requerida: Câmara Municipal de Cafelândia

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Financeiro. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 3.142, de 12 de novembro de 2009, do Município de Cafelândia. Ilegitimidade ativa do Município. Extinção do processo sem resolução do mérito. Parâmetro do controle de constitucionalidade de lei municipal. Limites de cognição do contencioso de constitucionalidade por via de ação direta. Causa de pedir aberta. Vinculação proibida da receita de impostos. Procedência da ação. 1. Na ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal, legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE/89) e não o ente federativo em si. 2. Extinção do processo sem resolução do mérito por ilegitimidade ativa 3. O controle objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem exclusivo parâmetro na CE/89, inclusive quando reproduza, imite ou remeta a preceito da CF/88 ou se trate de norma de observância obrigatória (art. 125, § 2º, CF/88), não podendo balizá-lo ofensa à norma infraconstitucional como a Lei de Responsabilidade Fiscal. 4. Inerência do conceito de causa de pedir aberta ao contencioso de constitucionalidade. 5. A Lei nº 3.142/09 autoriza o Poder Executivo a devolver 25% (vinte e cinco por cento) do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) devidamente recolhido pelo contribuinte que vier a transferir veículo registrado em seu nome em outro Município para o Município de Cafelândia. 6. Benefício fiscal consistente na devolução de parcela do IPVA recolhido pelo contribuinte, mediante vinculação de receita de imposto a cuja parcela tem direito o Município que é incompatível com o princípio da não afetação de receita de imposto a despesa (art. 176, IV, CE/89). 7. Procedência da ação.

 

 

 

Douto Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de Cafelândia em face da Lei nº 3.142, de 12 de novembro de 2009, do Município de Cafelândia, que autoriza o Poder Executivo a devolver 25% (vinte e cinco por cento) do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), por incompatibilidade com os arts. 25 e 165, II, da Constituição do Estado de São Paulo, com os arts. 150, II e 155, da Constituição Federal, bem como com o art. 14 e § 1º, da Lei Complementar nº 101/00 (fls. 01/06).

A liminar foi indeferida (fls. 14/15), e o douto Procurador-Geral do Estado de São Paulo declinou da defesa do ato normativo contestado (fls. 22/25).

O prazo para manifestação do Presidente da Câmara Municipal de Cafelândia transcorreu in albis (fl. 29).

É o relatório.

Observo inicialmente que o Município de Cafelândia não é legitimado ativo para a demanda (fl. 01).

No contencioso de constitucionalidade a legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

         Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

         Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de poderes especiais ou subscrição conjunta da petição inicial.

         Esse Colendo Órgão Especial em decisão recente sufragou este entendimento, conforme se verifica pela seguinte ementa:

“Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente” (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012).

         No caso dos autos, embora o Prefeito tenha subscrito conjuntamente a petição inicial com os advogados, a ação direta foi proposta pelo Município de Cafelândia, o que acarreta a ilegitimidade ad causam acima mencionada.   

Assim sendo, opino, preliminarmente, pela extinção do processo sem resolução do mérito.

No mérito, o autor pretende a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 3.142, de 12 de novembro de 2009, do Município de Cafelândia, que autoriza o Poder Executivo a devolver 25% (vinte e cinco por cento) do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), por incompatibilidade com os arts. 25 e 165, II, da Constituição do Estado de São Paulo, com os arts. 150, II e 155, da Constituição Federal, bem como com o art. 14 e § 1º, da Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

É assente o entendimento de que não é possível o exame abstrato de inconstitucionalidade, perante o Tribunal de Justiça do Estado, a partir de parâmetros de controle contidos na Constituição Federal (ADI 347, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 20-09-2006).

É inadmissível o contraste da norma municipal impugnada com outro parâmetro para além da Constituição Estadual, salvo quando reproduza, imite ou remeta a preceito da Magna Carta (ou se trate de norma de observância obrigatória), nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

Além disso, tratando-se de processo objetivo, não é possível o exame de inconstitucionalidades indiretas ou reflexas, a partir da existência de conflito entre a lei municipal impugnada e a legislação infraconstitucional (por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal). Nesse sentido, confira-se a jurisprudência:

“A Constituição da República, em tema de ação direta, qualifica-se como o único instrumento normativo revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o STF. (...). O controle normativo abstrato, para efeito de sua válida instauração, supõe a ocorrência de situação de litigiosidade constitucional que reclama a existência de uma necessária relação de confronto imediato entre o ato estatal de menor positividade jurídica e o texto da CF. Revelar-se-á processualmente inviável a utilização da ação direta, quando a situação de inconstitucionalidade – que sempre deve transparecer imediatamente do conteúdo material do ato normativo impugnado – depender, para efeito de seu reconhecimento, do prévio exame comparativo entre a regra estatal questionada e qualquer outra espécie jurídica de natureza infraconstitucional, como os atos internacionais – inclusive aqueles celebrados no âmbito da Organização Internacional do Trabalho – OIT” (STF, ADI-MC 1.347-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 05-10-1995, v.u., DJ 01-12-1995).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Ato estatal e conteúdo de norma infraconstitucional. Precedente da Corte. 1. A pretensão de cotejo entre o ato estatal impugnado e o conteúdo de outra norma infraconstitucional não enseja ação direta de inconstitucionalidade, na linha de precedentes da Corte. 2. Agravo regimental desprovido” (STF, AgR-ADI 3.790-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Menezes Direito, 29-11-2007, v.u., DJe 01-02-2008).

Assim, inconsistente a alegação de violação à Lei Complementar nº 101/2000 porque, como já dito, o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade de lei municipal é a Constituição Estadual, sendo irrelevante para o seu desate o direito infraconstitucional.

Nem se presta a tanto a alegação de agressão ao art. 111 da Constituição Estadual, uma vez que o processo legislativo afrontou o art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Trata-se de ofensa indireta que não habilita o contencioso de constitucionalidade por via de ação direta. Descabido o controle abstrato de constitucionalidade se a alegação de violação ao art. 111 da Constituição Estadual – que sufraga o princípio da legalidade – depende do exame de norma infraconstitucional interposta (Lei de Responsabilidade Fiscal), por caracterizar ofensa indireta à Constituição.

Com efeito, se para se concluir pela ofensa de violação a normas constitucionais torna-se necessária a incursão no patamar normativo infraconstitucional em razão da intermediação de norma desse jaez, desautorizada está a ação direta de inconstitucionalidade por residir a questão em ofensa indireta e reflexa à Constituição. Neste sentido, já se decidiu:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ADI CONTRA LEI PARANAENSE 13.519, DE 8 DE ABRIL DE 2002, QUE ESTABELECE OBRIGATORIEDADE DE INFORMAÇÃO, CONFORME ESPECIFICA, NOS RÓTULOS DE EMBALAGENS DE CAFÉ COMERCIALIZADO NO PARANÁ. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTS. 22, I e VIII, 170, CAPUT, IV, E PARÁGRAFO ÚNICO, E 174 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR. OFENSA INDIRETA. AÇÃOJULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. I - Não há usurpação de competência da União para legislar sobre direito comercial e comércio interestadual porque o ato normativo impugnado buscou, tão-somente, assegurar a proteção ao consumidor. II - Precedente deste Tribunal (ADI 1.980, Rel. Min. Sydney Sanches) no sentido de que não invade esfera de competência da União, para legislar sobre normas gerais, lei paranaense que assegura ao consumidor o direito de obter informações sobre produtos combustíveis. III - Afronta ao texto constitucional indireta na medida em que se mostra indispensável o exame de conteúdo de outras normas infraconstitucionais, no caso, o Código do Consumidor. IV - Inocorre delegação de poder de fiscalização a particulares quando se verifica que a norma impugnada estabelece que os selos de qualidade serão emitidos por entidades vinculadas à Administração Pública estadual. V - Ação julgada parcialmente procedente apenas no ponto em que a lei impugnada estende os seus efeitos a outras unidades da Federação” (RTJ 205/1107).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 6.004, DE 14/04/98, DO ESTADO DE ALAGOAS. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 150, § 6º; E 155, § 2º, XII, G, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AUSÊNCIA DE CONFLITO DIRETO COM O TEXTO CONSTITUCIONAL. Não cabe controle abstrato de constitucionalidade por violação de norma infraconstitucional interposta, sem ocorrência de ofensa direta à Constituição Federal. Hipótese caracterizada nos autos, em que, para aferir a validade da lei alagoana sob enfoque frente aos dispositivos da Constituição Federal, seria necessário o exame do conteúdo da Lei Complementar nº 24/75 e do Convênio 134/97, inexistindo, no caso, conflito direto com o texto constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida” (STF, ADI 2.122-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, 04-05-2000, m.v., DJ 16-06-2000, p. 31).

“Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido liminar, da Lei 14.999/06, do Estado do Paraná, que faculta a utilização do limite de importação não esgotado nos critérios da legislação estadual 13.971/02 – a qual dispõe sobre o tratamento tributário, em relação ao ICMS, de estabelecimentos portadores de autorização emitida pela secretaria da fazenda, especificamente para importar mercadorias através da Estação Aduaneira Interior de Maringá. Sustenta o autor, em síntese, a ocorrência de renúncia de receita na hipótese. Daí a alegada afronta ao artigo 163, I, da Constituição Federal (...). Aduz, ainda que ‘o benefício instituído pela Lei
Estadual nº 14.999/2006 implica expressivas perdas na arrecadação, ocasionando dificuldades ao Estado no cumprimento de seus deveres voltados à promoção do bem comum e também aos Municípios, aos quais é repassado o equivalente a 25% (vinte e cinco por cento) do valor arrecadado como ICMS, de acordo com o disposto pelo artigo 158, IV da Constituição Federal (...). Pretende o autor, em verdade, o cotejo entre o ato estatal impugnado e conteúdo de outra norma infraconstitucional editada pelo Poder Público (art. 14 da LC 101/00): o controle abstrato de normas exige que o ato normativo impugnado seja examinado, exclusivamente, sob a luz do texto constitucional” (STF, ADI 3.790-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 11-09-2006, DJ 15-09-2006, p. 67).

“1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, ajuizada pelo Governador do Estado do Paraná para impugnar a validade constitucional da Lei 15.003, de 09 de fevereiro de 2006, do Estado do Paraná, que alterou a disciplina local a respeito do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação ICMS, reduzindo de 18% (dezoito por cento) para 12% (doze por cento) a alíquota do imposto. (...) A tese enunciada pelo requerente é a de que a lei paranaense em questão teria operado renúncia de receita tributária sem obedecer às condições estabelecidas na Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) para operações do tipo, o que acarretaria afronta ao art. 163, I, da Constituição Federal, que reservou a disciplina sobre finanças públicas ao domínio do legislador complementar. (...) 2. O requerente pretende obter declaração de inconstitucionalidade da Lei paranaense 15.003/06 sob o pressuposto de que a sua edição estaria em contravenção com um único padrão de controle, constante do art. 163, I, da Constituição Federal (...). É isso o que se depreende da petição inicial, onde se argumenta que o flagrante desrespeito à LRF detectado no Projeto de Lei nº 337/2005 e a decorrente violação do artigo 163 da Constituição Federal levaram ao veto externado pelo Excelentíssimo Senhor Governador do Estado e que embora constitua evidente hipótese de dispensa legal do pagamento de parte do tributo, isto é, renúncia de receita, a Lei Estadual nº 15.003/2006 está à margem do disposto na LC nº 101/2000. Como não há, no conteúdo do art. 163, I, da Constituição Federal, qualquer condicionamento à realização de renúncia fiscal, a verificação de eventual ilegitimidade do ato normativo há de ser aferida, necessariamente, a partir do seu cotejo direto com a Lei de Responsabilidade Fiscal. No entanto, a ação direta de inconstitucionalidade não é o meio processual adequado para viabilizar exame de eventual ofensa reflexa à Constituição Federal” (STF, ADI 3.789-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Teori Zavascki, 06-08-2013, DJe 14-08-2013).

Feito esse registro, a ação deve ser julgada procedente à vista de parte dos fundamentos da petição inicial e do conceito de causa de pedir aberta inerente à sindicância objetiva de constitucionalidade de lei ou ato normativo (RTJ 200/91), que torna possível o contraste da norma contestada com outros preceitos da Constituição Estadual que não foram suscitados na petição inicial.

Embora o requerente alegue a inconstitucionalidade da Lei nº 3.142/09, fundamentando-se na renúncia de receita indevida, afirmando ter ocorrido ofensa, “por analogia”, ao inciso III, in fine, § 4º, do artigo 153 da Carta Magna, isto não poderá ser aqui reconhecido, à medida que se resume em violação indireta da Constituição, consoante acima exposto.

Todavia, como também acima explorado, é certo que o juízo abstrato de constitucionalidade por via de ação direta, no que tange à fundamentação, é aberto.

Firme nessa premissa, chamo a atenção para a evidente vinculação – proibida – de receita tributária.

A lei local impugnada permite a devolução de 25% (vinte e cinco por cento) do valor do IPVA recolhido pelo contribuinte que vier a transferir veículo registrado em seu nome em outro Município para o Município de Cafelândia.

E o faz violando o princípio da proibição de vinculação de receita tributária, nos seguintes termos:

“(...)

Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a devolver 25% (vinte e cinco por cento) de Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) devidamente recolhido pelo contribuinte que vier a transferir veículo registrado em seu nome em outro Município para o Município de Cafelândia-SP, nos termos e limites da legislação aplicável.

Parágrafo Único: O benefício de que trata o Artigo 1º desta Lei, será calculado sobre o valor do IPVA repassado para esta Prefeitura municipal, ou seja, 50% (cinquenta por cento) do valor pago pelo contribuinte.

Art. 2º - O benefício de que trata esta Lei, será concedido por dois (02) anos consecutivos e deve ser requerido pelo contribuinte proprietário de veículo fabricado num período não superior a dez (10) anos e a partir do ano em que houver o efetivo recolhimento do Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) licenciado no Município de Cafelândia-SP, no prazo de trinta (30) dias após a comprovação do recolhimento total do imposto.

Art. 3º - O requerimento exigido no artigo anterior deverá estar acompanhado dos seguintes documentos devidamente autenticados:

I – Cópia do documento que comprove a propriedade do veículo;

II – Cópia do documento que comprove a transferência do veículo para o Município de Cafelândia-SP;

III – Cópia da guia do recolhimento do imposto.

Art. 4º - O benefício previsto nesta Lei será indeferido quando requerido além do prazo previsto no artigo 2º.

Art. 5º - A Secretaria Municipal de Tributação e Arrecadação ficará responsável pela prática dos atos necessários a fiel execução desta Lei.

Art. 6º - As despesas decorrentes desta Lei terão suporte no orçamento vigente e serão compensadas pelas receitas oriundas do IPVA.

Art. 7º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)” (fls. 09/10).

A devolução ao contribuinte de parcela do IPVA recolhido, nos termos da lei municipal impugnada, dar-se-á com fração ou percentual resultante do repasse da arrecadação do imposto estadual (art. 1º e parágrafo único, da Lei Municipal nº 3.142/09), o que contraria o art. 176, IV, da Constituição Paulista.

O preceito constitucional estadual agasalha o princípio da não afetação, consistente na impossibilidade de vinculação da receita de impostos a órgãos, fundos ou despesas, com exceção de algumas hipóteses previstas na norma constitucional.

O princípio da não afetação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa denota a característica não vinculada dessa espécie tributária (Kiyoshi Harada. Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Atlas, 1998, 4ª ed., p. 74) e significa que “não pode haver mutilação das verbas públicas. O Estado deve ter disponibilidade da massa de dinheiro arrecadado, destinando-o a quem quiser, dentro dos parâmetros que ele próprio elege como objetivos preferenciais” (Régis Fernandes de Oliveira. Curso de Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 328).

O princípio da não afetação se justifica “na medida em reserva ao orçamento e à própria Administração, em sua atividade discricionária na execução da despesa pública, espaço para determinar os gastos com os investimentos e as políticas sociais” (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, p. 275), pois, “em virtude da generalidade e da impessoalidade que haverão de presidir a elaboração e a execução do orçamento, em obséquio, inclusive, ao postulado de igualdade, que não poderia tolerar privilégios na destinação dos recursos públicos, que pertencem a toda a coletividade e não a um grupo de suseranos” (Eduardo Marcial Ferreira Jardim. Manual de Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Saraiva, 1994, 2ª ed., p. 25).

Como esclarece a literatura especializada, na atividade financeira a Administração Pública deve ter a prerrogativa de estabelecimento de metas e prioridades e os recursos oriundos dos impostos se destinam, via de regra, ao atendimento das necessidades gerais, e o princípio tende a evitar leis que, vinculando receita proveniente de impostos, prejudiquem o custeio de despesas genéricas pelo orçamento (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1999, 3ª ed., p. 348; Pinto Ferreira. Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo: Saraiva, 1994, vol. VI, p. 115), assegurando “que os recursos sejam livres e à disposição para a realização de obras e serviços, em conformidade com as necessidades existentes e em obediência à escala de prioridades estabelecida a partir de análise rigorosa da situação existente” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 697).

A vedação constitucional é prestigiada na jurisprudência para neutralização da destinação de imposto para financiamento de programa habitacional (RTJ 167/287), programas de desenvolvimento econômico (STF, ADI 1.759-SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, 14-04-2010, v.u., DJe 20-08-2010), incentivo aos esportes (RTJ 202/68) e fornecimento gratuito de energia elétrica (STF, ADI-MC 2.848-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, 03-04-2003, v.u., DJ 02-05-2003, p. 26), proclamando-se a inadmissibilidade de extensão das exceções constitucionalmente previstas ao princípio da não afetação.

Trata-se de princípio constitucional de obediência obrigatória não só pela União, mas, também, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios (STF, ADI 103-RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, 03-08-1995, v.u., DJ 08-09-1995, p. 28.353), atuando como princípio sensível e norma de reprodução obrigatória pelos Estados e Municípios.

Portanto, o princípio da não afetação é acima de tudo uma interdição dirigida à lei, ao processo legislativo e ao legislador, pois, como destacado pelo Ministro Celso de Mello, “traduz vedação constitucional que incide sobre o legislador, pois impede que se proceda, em sede meramente legislativa, à vinculação”, que “há de ser observada pelo legislador comum, que não poderá fixar regras em sentido diverso, ressalvadas, unicamente, as situações excepcionais previstas, de modo expresso, no texto da própria Constituição da República” (STF, ADI-MC 2.355-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-2002, m.v., DJe 29-06-2007).

Cuida-se, também, de norma de direito financeiro e não de direito tributário (STF, AgR-RE 329.196-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, 17-09-2002, v.u., DJ 11-10-2002, p. 42).

As exceções ao princípio estão topicamente enumeradas no art. 167, IV, e § 4º, da Constituição Federal, concorrem outras expressamente indicadas na Constituição Federal (arts. 100, § 15, 204, parágrafo único, 216, § 6º, 218, § 5º) e no Ato das Disposições Transitórias (arts. 71, 72, 79, 80, 82). O art. 176, IV, da Constituição Estadual, reproduz o art. 167, IV, da Constituição Federal.

A não afetação é a regra e a vinculação a exceção; dessa sentença decorre a inadmissibilidade da ampliação das exceções pelas Constituições Estaduais, Leis Orgânicas Municipais ou leis (STF, ADI 1.689-PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, 12-03-2003, v.u., DJ 02-05-2003, p. 25), porque a sua enumeração é taxativa e sua sede é a Constituição Federal; ademais, essas exceções configuraram direito estrito, merecendo interpretação restritiva que refuta ampliações de seu alcance e de seu sentido.

O princípio da não afetação não diz respeito somente aos tributos próprios, como os do Município (ISS, ITBI, IPTU) – em especial, o referido na lei impugnada (IPVA). O § 4º do artigo 167, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 03, de 17 de março de 1993, arrola expressamente outras exceções permissivas da vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos estaduais e municipais (artigos 155 e 156, Constituição Federal) e dos recursos da repartição das receitas tributárias (artigos 157, 158 e 159, I, a e b, e II), para a prestação de garantia ou contragarantia à União e para pagamento de débitos para com a União. O § 4º do art. 167 da Constituição Federal cunha como exceção – merecedora de interpretação restritiva – a vinculação dos recursos decorrentes de transferências tributárias somente quando destinadas à prestação de garantia ou contragarantia à União para pagamentos de débitos com ela.

Sem obliterar a finalidade do princípio, o art. 176, IV, da Constituição Estadual, reproduzindo o art. 167, IV, da Constituição Federal, enuncia que a afetação vedada é da “receita de impostos”, e não “de impostos”, de maneira a frasear que o dispositivo compreende não somente a proibição da “vinculação de receita de impostos” como também a de “vinculação de impostos”, denotando o primeiro significado maior amplitude porque abarca receitas de impostos próprios ou não, como as decorrentes de transferências tributárias.

Não se pode perder de vista que se é verdade que uma das exceções a não afetação é endereçada ao ente tributante na repartição do produto da arrecadação dos impostos (transferências públicas governamentais), a interpretação constitucional revela que para a entidade dotada de competência tributária a destinação de parcela da receita oriunda de seus impostos é vinculada às entidades políticas beneficiadas com a participação na arrecadação, e não que a titularidade ou o ingresso da receita daí partilhada na entidade beneficiada possa ser por ela vinculada, salvo aquela oriunda dos arts. 198, § 2º, e 212, da Constituição Federal e para os fins ali indicados. 

Ademais, ressalta a adequada exegese constitucional que em se tratando de receita resultante da arrecadação e participação de imposto estadual (como o IPVA, por exemplo) a sua afetação (ou vinculação) só é admitida nas hipóteses constitucionalmente previstas (e não para garantir devolução do imposto à contribuintes que transferirem o registro do veículo ao Município, como no caso dos autos).

Para o efeito do alcance do princípio da não afetação é irrelevante se a receita é oriunda de imposto de competência própria ou alheia (isto é, resultante da participação). Como dito, a fórmula constitucional expressiva da regra da não afetação não menciona “vinculação de impostos”, mas, e com maior dimensão, “vinculação da receita de impostos”, o que abrange, destarte, a arrecadação tributária própria ou partilhada.

De fato, o dado relevante é a consideração do ingresso decorrente da participação no produto de impostos de outro ente tributante (transferência corrente) é como receita pública derivada de natureza tributária, pois, obtida a partir de obrigação legal que grava o patrimônio particular e transfere suas riquezas ao Estado – perfeitamente amoldada ao conceito de tributo constante do art. 3º do Código Tributário Nacional. Como salientado em julgamento do Supremo Tribunal Federal, é “irrelevante se a destinação ocorre antes ou depois da entrada da receita nos cofres públicos” (RTJ 202/68).

A vantagem prevista é um benefício ou incentivo financeiro. É como se o erário municipal recebesse parcela da arrecadação de imposto alheio (IPVA) e concedesse um percentual ao particular (devolução do imposto), gerando uma espécie de dispêndio público, pois, o benefício é egresso do erário municipal.

Consoante elucida a literatura especializada, a partir da arrecadação, “quando o dinheiro entra nos cofres públicos, ele fica sujeito às regras do Direito Financeiro” (Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1992, 2ª ed., p. 136), o que compreende as regras da repartição de receitas tributárias. Neste sentido, acentua a doutrina:

“Os privilégios tributários, que operam na vertente da receita, estão em simetria e podem ser convertidos em privilégios financeiros, a gravar a despesa pública. A diferença entre eles é apenas jurídico-formal. A verdade é que a receita e a despesa são entes de relação, existindo cada qual em função do outro, donde resulta que tanto faz diminuir-se a receita, pela isenção ou dedução, como aumentar-se a despesa, pela restituição ou subvenção, que a mesma conseqüência financeira será obtida” (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, p. 259).

O benefício financeiro em foco pode ser encarado, para o Município, como devolução do imposto a título de incentivo, não se apresentando, a rigor, como incentivo tributário ou fiscal, mas um incentivo financeiro. A importância “devolvida” não é tributo em si, categoria exclusiva da receita, mas uma prestação de direito público idêntica a qualquer outra obrigação do Estado.

No caso dos autos, o ressarcimento das despesas e investimentos privados é promovido através de recursos gerados pela arrecadação do IPVA repassada ao Município (art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 3.142/09). Trata-se, portanto, de vinculação proibida da receita de imposto a uma despesa, em flagrante inconstitucionalidade ao ordenamento constitucional. Neste sentido, pronuncia a jurisprudência:

“LEI ESTADUAL QUE DETERMINA QUE OS MUNICÍPIOS DEVERÃO APLICAR, DIRETAMENTE, NAS ÁREAS INDÍGENAS LOCALIZADAS EM SEUS RESPECTIVOS TERRITÓRIOS, PARCELA (50%) DO ICMS A ELES DISTRIBUÍDA - TRANSGRESSÃO À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA NÃO-AFETAÇÃO DA RECEITA ORIUNDA DE IMPOSTOS (CF, ART. 167, IV) E AO POSTULADO DA AUTONOMIA MUNICIPAL (CF, ART. 30, III) - VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE IMPEDE, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO, A VINCULAÇÃO, A ÓRGÃO, FUNDO OU DESPESA, DO PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DE IMPOSTOS - INVIABILIDADE DE O ESTADO-MEMBRO IMPOR, AO MUNICÍPIO, A DESTINAÇÃO DE RECURSOS E RENDAS QUE A ESTE PERTENCEM POR DIREITO PRÓPRIO - INGERÊNCIA ESTADUAL INDEVIDA EM TEMA DE EXCLUSIVO INTERESSE DO MUNICÍPIO - DOUTRINA - PRECEDENTES - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - CONFIGURAÇÃO DO ‘PERICULUM IN MORA’ - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA” (STF, ADI-MC 2.355-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-2002, m.v., DJe 28-06-2007).

Nesse julgamento ficou assentado que:

“O exame do diploma legislativo estadual em causa parece evidenciar que a hipótese de afetação da receita oriunda da arrecadação de imposto (ICMS), nele prevista, não se subsume ao rol taxativo, que, em numerus clausus, encontra fundamento no art. 167, IV, da Constituição da República, expondo-se, em conseqüência, tal vinculação – porque instituída com inobservância do modelo federal – à censura do próprio magistério jurisprudencial firmado, no tema, pelo Supremo Tribunal Federal, quer sob a égide da Carta Política anterior (RTJ 120/997, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RTJ 127/56, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RE 100.435-SP, Rel. Min. SOARES MUÑOZ), quer em face da vigente Lei Fundamental (RDA 185/148, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RDA 192/174, Rel. Min. CARLOS VELLOSO)”.

Em outro precedente, a Corte Suprema reforça a tese:

“(...) Com efeito, revela-se inexigível a majoração de um ponto percentual (de 17% para 18%), instituída pelas Leis paulistas nºs 6.556/89 e 7.003/90, que destinaram, o produto da arrecadação resultante dessa elevação tributária (ICMS), ao financiamento de programas habitacionais desenvolvidos e executados pelo Estado de São Paulo. É que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 183.906/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – e tendo em vista o princípio constitucional da não afetação da receita (RTJ 167/287) de impostos – proclamou a inconstitucionalidade dessa vinculação legal: “Imposto – Vinculação a órgão, fundo ou despesa (CF, art. 167, IV). A teor do disposto no inciso IV do artigo 167 da Constituição Federal, é vedado vincular receita de impostos a órgão, fundo ou despesa. A regra apanha situação concreta em que lei local implicou majoração do ICMS, destinando-se o percentual acrescido a um certo propósito – aumento de capital de caixa econômica, para financiamento de programa habitacional. Inconstitucionalidade dos artigos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º da Lei nº 6.556, de 30 de novembro de 1989, do Estado de São Paulo.” Sob tal aspecto, a decisão proferida pelo Tribunal de origem ajusta-se à orientação jurisprudencial firmada por esta suprema Corte, na análise do tema ora em exame. (...)” (AI 489625/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 24/03/2004 PP-00045).

E em hipótese similar, este egrégio Órgão Especial assim decidiu:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCENTIVOS FISCAIS PARA EMPRESAS QUE SE ESTABELECEREM NO MUNICÍPIO. DEVOLUÇÃO DE PARCELA DO ICMS REPASSADO À ENTIDADE FEDERATIVA LOCAL. AFETAÇÃO DA RECEITA DE IMPOSTOS A DESPESA PÚBLICA. VULNERAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 176, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO DE SÃO PAULO. AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE.

A vinculação de parcela do ICMS repassado pelo Estado ao Município gera situação incompatível com o princípio da isonomia e transfere para o ambiente municipal a nefasta consequência do fenômeno conhecido como guerra fiscal já existente no Brasil entre vários dos Estados da Federação” (TJSP, ADI 0427921-20.2010.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Des. Renato Nalini, v.u., 03-02-2011).

Face ao exposto, opino, preliminarmente, pela extinção do processo sem resolução do mérito por ilegitimidade ativa e, se superada a preliminar, no mérito, pela procedência da ação para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.142, de 12 de novembro de 2009, do Município de Cafelândia, por ofensa ao art. 176, IV, da Constituição Estadual.

               

São Paulo, 22 de outubro de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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