Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 2109367-37.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Ipaussu
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Ipaussu
Ementa:
1)
Ação direta de
inconstitucionalidade. Art. 3º (parte final) da Lei nº 094, de 17 de junho de
2014, do Município de Ipaussu, fruto de emenda parlamentar, que antecipa
vigência do aumento de benefício pecuniário destinado aos servidores públicos.
2) Abuso do poder de emenda. Alteração que gera despesa não prevista no projeto original. Violação dos arts. 5º; art. 24, § 5º, nº 1, 144 e 175, § 1º, 1 e 2. II da Constituição Estadual. Procedência do pedido.
Colendo Órgão Especial
Senhor Desembargador Relator
Tratam estes autos de ação direta
de inconstitucionalidade, tendo como alvo a parte final do art. 3º (parte
final) da Lei nº 094, de 17 de junho de 2014, do Município de Ipaussu.
Sustenta o requerente que o ato
normativo impugnado, fruto de emenda parlamentar, é inconstitucional por usurpar
atribuições pertinentes ao Poder Executivo, por conter vício de iniciativa e
por criar despesa que excedem os créditos orçamentários. Daí, a afirmação de
ofensa ao disposto nos arts. 5º, 25, 37, 47, II e XVII, 144, 174, III e 176, II
da Constituição Estadual.
Foi deferido o pedido de liminar para
suspender com efeitos “ex tunc” a Lei
nº 094, de 17 de junho de 2014, do Município de Ipaussu (fls. 99/101). Contra
tal decisão interpôs a Câmara Municipal recurso de agravo regimental (fls.
155/162), ao qual foi negado provimento (fls. 202/207)
Citado regularmente (fl. 153), o
Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato
normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente
local (fls. 107/109).
Notificado regularmente, o
Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a validade do ato
normativo impugnado (fls. 111/116).
Nestas condições vieram os autos
para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.
Procede o pedido.
O art. 3º da Lei nº 094, de 17 de
junho de 2014, do Município de Ipaussu, fruto de emenda parlamentar tem a
seguinte redação:
Artigo 3º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, tendo seus efeitos a partir de 1º de maio de 2014.”
A Lei nº 094, de 17 de junho de
2014, do Município de Ipaussu, instituiu aumento no valor da verba alimentícia
mensal pagas aos servidores públicos.
Sua vigência, porém, prevista no
projeto original para 1º de junho, foi antecipada por força de emenda
parlamentar. O veto parcial do executivo ao art. 3º da Lei nº 094/2014, foi
derrubado pela Câmara Municipal.
Não se discute que a inovação
normativa traz reflexos no orçamento do município, com aumento na despesa, na
medida em que antecipou a vigência do aumento da verba de alimentação destinada
aos servidores públicos.
A inconstitucionalidade do ato
normativo impugnado decorre do abuso do poder de emendar, importando em
violação aos arts. 63, I e 166, § 3º, I e II da Constituição Federal, reproduzidas
pelo art. 24, § 5º, nº 1 e 175, § 1º, 1 e 2 da Constituição
Estadual, normas que regulam o processo legislativo, que nos termos do art. 144
da Constituição Estadual devem ser observadas pelos Municípios.
O processo legislativo,
compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto)
realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na
Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência
e harmonia dos Poderes.
O desrespeito às normas do processo
legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República,
conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o
controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.
A iniciativa, o ato que deflagra
o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).
A matéria de que trata a lei em
análise – regime jurídico dos servidores públicos– é daquelas cuja iniciativa
cabe ao Prefeito. Nesse aspecto, não há qualquer objeção, pois a Lei nº 094, de
17 de junho de 2014, do Município de Ipaussu, decorreu de projeto de iniciativa
do Poder Executivo.
A questão na verdade deve ser
analisada sob a ótica dos limites do poder de emendar.
Sabe-se que apresentado o projeto
pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação, abrindo-se caminho
para a fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação
públicas da matéria. Nessa fase se sobressai o poder de emendar, prerrogativa
inerente à função legislativa do parlamentar, que não é absoluta, pois
encontra-se limitada às restrições impostas, em “numerus clausus”, pela Constituição Federal (art. 63, I e 166, §
3º, I e II), reproduzidas pelo art. 24, § 5º, nº 1 e
175, § 1º, 1 e 2 da Constituição Estadual.
Da interpretação das normas que regem o
processo legislativo, pode-se afirmar que a limitação ao poder de emendar
projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo existe no sentido de
evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a
desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não
guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto
originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente
distinta da proposta original.
A este propósito o Supremo Tribunal Federal consignou que:
“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção legalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).
Mas o considera restrito, como se conclui do trecho acima destacado e do paradigmático julgado adiante transcrito:
“Incorre em vício de inconstitucionalidade formal (CF, artigos 61, § 1º, II, "a" e "c" e 63, I) a norma jurídica decorrente de emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, de que resulte aumento de despesa. Parâmetro de observância cogente pelos Estados da Federação, à luz do princípio da simetria. Precedentes. 2. Ausência de prévia dotação orçamentária para o pagamento do benefício instituído pela norma impugnada. Violação ao artigo 169 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 19/98. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADI 2079/SC, STF - Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ 18.06.2004, p. 44; Ement. Vol. 2156-01, p. 73).”
Estabelecidas estas
considerações, tem-se, no caso em análise, que a inovação normativa decorrente
da emenda modificativa implementada pela Câmara de Vereadores, com antecipação
da vigência do aumento da verba alimentícia, importa em aumento de despesa.
De outro lado, a Constituição do
Estado, em simetria com o modelo Federal, não permite emenda que importe em
aumento de despesa aos projetos de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo
(art. 24, § 5º, nº 1).
Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:
“O modelo estruturador do processo
legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição
da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do
processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de
compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros.
Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar,
relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).
Percebe-se que o dispositivo legal
impugnado dispõe sobre a vigência do aumento a benefício concedido a servidor
público. Assim interfere na administração do orçamento, pois acarreta despesa
sem a indicação da fonte de custeio.
A alteração produzida pela Câmara Municipal representa inequívoco abuso do poder de emendar, com a consequente violação do princípio da separação dos poderes de que trata o art. 5º da Constituição do Estado.
Por isso, em que pesem o elevado propósito que inspirou o
parlamentar, autor da emenda ao projeto, o dispositivo impugnado é
verticalmente incompatíveis com a Constituição do
Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º; art. 24, § 5º, nº 1, 144 e 175, § 1º, 1 e 2.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente
para declarar a inconstitucionalidade da parte final do art. 3º (parte final) da Lei nº 094, de 17 de junho de 2014, do
Município de Ipaussu.
São
Paulo, 24 de setembro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aca