Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 2110802-46.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva

Requerido: Câmara Municipal de Catanduva

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 5.500, de 10 de dezembro de 2013, de Catanduva, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual e dá outras providências”.

2)      Competência do Município para, tratando de interesse local, bem como suplementando a legislação federal, disciplinar, no âmbito do Direito Administrativo, sanções incidentes sobre condutas discriminatórias em função da orientação sexual. (art. 30, I e II da CF). Objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de promoção do bem de todos, sem preconceito ou discriminação (art. 3º, IV da CF). Diretriz constitucional de punição, pelo legislador, de discriminações atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI da CF).

3)      Inconstitucionalidade parcial. § 1º do art. 4º e art. 5º da Lei Municipal nº 5.500, de 10 de dezembro de 2013, de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que regulam aspecto do regime disciplinar dos servidores públicos municipais. Contrariedade ao art. 24, § 2º, n. 4, c.c. o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Senhor Prefeito Municipal de Catanduva, tendo como alvo a Lei Municipal nº 5.500, de 10 de dezembro de 2013, de Catanduva, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual e dá outras providências”.

Narra o requerente que a lei é fruto de iniciativa parlamentar, contraria o princípio da separação de poderes e não indica fonte de receita para as despesas que cria, colidindo, portanto, com os artigos 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Aponta, ademais, ofensa a dispositivos da Lei Orgânica do Município e da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 16/18), adotando-se, em função da abertura da causa de pedir na ação direta de inconstitucionalidade, não os fundamentos apontados pelo autor, mas sim os constantes do excerto da decisão a seguir transcrito:

“(...)

Em linha de princípio, a legislação impugnada nos autos, ao disciplinar questões que dizem respeito ao ingresso de público em estabelecimentos privados, hospedagem em hotéis e similares, transações imobiliárias e relações de emprego, versou matéria atinente ao Direito Civil e do Trabalho, em relação ao qual somente à União compete legislar, na forma imposta pelo art. 22, inciso I da Constituição Federal.

Ademais, mostra-se pertinente a alegação exposta na exordial no sentido de que o ato normativo questionado acaba por interferir na Administração Municipal, pois confere atribuições a órgãos da estrutura administrativa do ente público local, máxime a “Ouvidoria e Controle de Qualidade” (v. art. 3º), e prevê nova espécie de infração funcional por parte de funcionários municipais, desconsiderando a competência exclusiva do Chefe do Executivo Municipal para tratar desses assuntos, prevista no art. 24, § 2º, ‘4’ e 47, incisos II, XIV e XIX da Constituição do Estado de São Paulo.

(...)”

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 24/26).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo (fls. 50/52, 60).

É o relato do essencial.

PRELIMINAR: LIMITES DA COGNIÇÃO DO TRIBUNAL EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL

Cumpre registrar que, tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal em face da Constituição do Estado, não podem ser examinadas as alegações de conflito entre a lei impugnada e outras leis municipais, estaduais ou federais, bem como entre ela e a Constituição Federal.

Em outros termos, apenas a Constituição do Estado é parâmetro válido, no âmbito do processo objetivo perante o Tribunal de Justiça, para exame da inconstitucionalidade ou não da lei municipal.

Nesses limites será feira a análise da alegada inconstitucionalidade.

MÉRITO

A ação deve ser julgada apenas parcialmente procedente.

A Lei Municipal nº 5.500, de 10 de dezembro de 2013, de Catanduva, fruto de iniciativa parlamentar, “Dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual e dá outras providências”.

Cumpre observar, inicialmente, que não há, no caso em exame, violação do princípio da separação de poderes, particularmente a denominada “reserva de administração”, como pretendeu o requerente ao afirmar que teria ocorrido ofensa aos artigos 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

O ato normativo em análise não regula condutas ou providências administrativas do Poder Público Municipal (Administração – Poder Executivo), cuidando, isso sim, da conduta de particulares, ao estabelecer sanções de natureza administrativa para comportamentos discriminatórios relacionados à orientação sexual de outras pessoas.

Não se cuidou, na lei, de nenhuma matéria sujeita à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, sabido que esta, conforme entendimento pacífico do STF é matéria que deve ser interpretada estritamente, e não de forma ampliativa, dado o seu cunho restritivo.

Confira-se no STF:

"A Constituição de 1988 admite a iniciativa parlamentar na instauração do processo legislativo em tema de direito tributário. A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara, especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo, ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado." (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001.) No mesmo sentido: RE 590.697-ED, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 23-8-2011, Segunda Turma, DJE de 6-9-2011. (g.n.)

Note-se que nem mesmo o art. 3º da lei ora examinada pode, com a devida vênia, receber a pecha de inconstitucional, pelo fato de prever que as reclamações contra condutas discriminatórias podem ser encaminhadas à “Ouvidoria de Controle e Qualidade da Prefeitura Municipal”.

A lei ora analisada não criou tal órgão, nem lhe concedeu nova atribuição que já não tivesse anteriormente.

Basta acessar o sítio eletrônico da Prefeitura Municipal de Catanduva (<http://www.catanduva.sp.gov.br/>, acesso em 14.08.2014), para constatar que tal órgão já existe, tendo entre suas atribuições, precisamente, o recebimento de reclamações formuladas por cidadãos.

Ou seja, a Lei Municipal nº 5.500, de 10 de dezembro de 2013, não criou o órgão nem lhe conferiu nova atribuição. Apenas alertou os cidadãos a respeito de sua existência e de suas funções, entre elas receber reclamações.

Dizer que a lei dá atribuições ao Poder Executivo para fiscalizar seu cumprimento, por outro lado, não é assinalar inconstitucionalidade alguma.

É função primária do Poder Executivo exercer o poder de polícia, fiscalizando o cumprimento das leis, inclusive aquelas editadas por iniciativa do Poder Legislativo.

Não fosse assim, só o cumprimento das leis de iniciativa do Poder Executivo seria objeto da fiscalização inerente ao Poder de Polícia, o que significaria, levando o raciocínio às últimas consequências, que as leis de iniciativa do Poder Legislativo seriam simples recomendações, sem cunho impositivo.

Isso seria a negação de toda a teoria em torno da qual se construiu o Estado de Direito.

Também não merece acolhimento a alegação de aumento de despesa sem indicação de fonte de receita como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade.

Por primeiro, porque essa é uma questão de fato, cujo exame transcende o campo de cognição reservada ao processo de controle abstrato de constitucionalidade.

Note-se que a lei não impõe, diretamente, nenhuma nova despesa. Além disso, a estrutura de fiscalização já existe no Município. Some-se, finalmente, que a falta de indicação de recursos poderia, quando muito, impedir que a lei fosse imediatamente aplicada, e não levar ao reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Nesse sentido, no STF, confira-se: ADI 1585-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, DJ 3.4.98; ADI 2339-SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, unânime, DJ 1.6.2001; ADI 2343-SC, Rel. Min. Nelson Jobim, maioria, DJ 13.6.2003.

Por outro lado, ao regular o comportamento de particulares, e não do Poder Público, cuidando de impor sanções de cunho administrativo a quem pratica ato discriminatório relacionado à orientação sexual do cidadão discriminado, não invadiu o legislador municipal a separação de poderes ou reserva de administração, visto que a preocupação com o tema não deve, em nossa ordem constitucional, ser apenas do Poder Executivo, mas também do Poder Legislativo.

Basta, nesse passo, recordar que constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV da CF), bem como ter a Lei Maior estabelecido no rol das garantias fundamentais que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI da CF).

Nesse quadro, não faria o menor sentido, tomando como premissa a necessidade de uma interpretação contextual da ordem constitucional, que fosse estabelecido como objetivo fundamental a promoção do bem de todos, sem preconceito de qualquer ordem – inclusive aquele relacionado à orientação sexual -, bem como prevista a necessidade de penalização dos atos discriminatórios, e submeter iniciativas legislativas, nessa matéria, exclusivamente ao Chefe do Executivo.

Não há, portanto, nesse aspecto, violação ao princípio da separação de poderes.

Por outro lado, o Senhor Desembargador Relator, ao conceder a liminar, apoiou-se na ideia de que a lei teria tratado de tema afeto à competência do legislador federal, anotando que:

“(...)

(ao) disciplinar questões que dizem respeito ao ingresso de público em estabelecimentos privados, hospedagem em hotéis e similares, transações imobiliárias e relações de emprego, versou matéria atinente ao Direito Civil e do Trabalho.

(...)”

Com a devida vênia, em momento algum o legislador municipal disciplinou questões que se encontram no âmbito do Direito Civil (família, sucessões, contratos, obrigações, etc.), do Direito do Trabalho (contrato de trabalho, duração de jornada, valor do salário, direitos do trabalhador, etc.), ou mesmo do Direito Penal (crimes, penas, etc.).

Apenas cuidou a lei municipal (no âmbito do Direito Administrativo), seja abordando assunto de interesse local, seja ainda suplementando disciplina geral já existente em outros planos federativos (art. 30, I e II da CF), de disciplinar peculiaridades relativas à proteção dos indivíduos contra a discriminação fundada em orientação sexual, no próprio Município.

Não há ofensa à competência do Poder Legislativo da União, como, com a devida vênia, pareceu ao Relator.

A parcial procedência da ação direta, entretanto, deve se dar exclusivamente em função da necessidade de declaração da inconstitucionalidade do § 1º do art. 4º, e art. 5º da Lei, visto que disciplinam aspecto relacionado ao regime jurídico dos servidores públicos do Município e empresas municipais.

Para melhor compreensão, eis a redação dos dispositivos acima referidos:

“(...)

Art. 4º...

§ 1º. As penas mencionadas nos incisos II a V deste artigo não se aplicam a órgãos e empresas públicas, cujos responsáveis serão punidos nos termos do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado – Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968.

(...)

Art. 5º. Aos servidores públicos que, no exercício de suas funções e/ou em repartição pública, por ação ou omissão, deixarem de cumprir os dispositivos da presente lei, serão aplicadas as penalidades cabíveis nos termos do Estatuto dos Funcionários Públicos.

(...)”

Nesse passo, ao regular aspecto atinente ao regime disciplinar dos servidores públicos do Município, deveria o legislador local ter observado a reserva de iniciativa decorrente da aplicação do art. 24, § 2º, n. 4, c.c. o art. 144 da Constituição Paulista.

Note-se: regime disciplinar é aspecto que integra o regime jurídico, motivo pelo qual a disciplina legislativa da matéria depende da iniciativa do Chefe do Executivo.

Confira-se no STF precedentes que, mutatis mutandis, aplicam-se ao ponto:

A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que cabe ao chefe do Poder Executivo deflagrar o processo legislativo referente a lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem assim disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. Aplica-se aos Estados-membros o disposto no art. 61, § 1º, II, da CB. Precedentes. Inviável o projeto de lei de iniciativa do Poder Legislativo que disponha a propósito servidores públicos – ‘anistia’ administrativa, nesta hipótese – implicando aumento de despesas para o Poder Executivo.” (ADI 341, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 14-4-2010, Plenário, DJE de 11-6-2010.)

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 6.065, de 30-12-1999, do Estado do Espírito Santo, que dá nova redação à Lei 4.861, de 31-12-1993. Art. 4º e tabela X que alteram os valores dos vencimentos de cargos do quadro permanente do pessoal da polícia civil. Inadmissibilidade. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, a e c, da CF. Observância do princípio da simetria. ADI julgada procedente. É da iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio da simetria.” (ADI 2.192, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 4-6-2008, Plenário, DJE de 20-6-2008.)

"Processo legislativo: normas de lei de iniciativa parlamentar que cuidam de jornada de trabalho, distribuição de carga horária, lotação dos profissionais da educação e uso dos espaços físicos e recursos humanos e materiais do Estado e de seus Municípios na organização do sistema de ensino: reserva de iniciativa ao Poder Executivo dos projetos de leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores públicos, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (art. 61, II, § 1º, c)." (ADI 1.895, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-8-2007, Plenário, DJ de 6-9-2007.) (g.n.)

Por último e não menos importante, é oportuno destacar que o reconhecimento da inconstitucionalidade parcial da norma por fundamento não alegado pelo autor é perfeitamente possível, por não estar o Tribunal de Justiça vinculado aos motivos apontados pelo autor na inicial, acolhendo-se, nesse passo, a ideia da “abertura da causa de pedir” na ação direta de inconstitucionalidade.

Assim vem decidindo, há muito, o Col. STF:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da parcial procedência desta ação, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade exclusivamente do § 1º do art. 4º e do art. 5º da Lei Municipal nº 5.500, de 10 de dezembro de 2013, de Catanduva, por ofensa ao art. 24, § 2º, n. 4, c.c. o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, reconhecendo-se, no mais, a constitucionalidade da referida lei.

São Paulo, 21 de agosto de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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