Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2110902-98.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Catanduva

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 5.551, de 07 de maio de 2014, de iniciativa parlamentar, do Município de Catanduva que "proíbe o uso de aparelhos sonoros ou musicais no interior de veículos de transporte coletivo nas condições que especifica e dá outras providências"

2)     Obrigatoriedade imposta a veículos de transporte coletivo público. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo à organização e regulamentação dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, 120 e 144 da Constituição do Estado).  

3)      Obrigação a veículos de transporte coletivo privado. Violação ao princípio da razoabilidade (art. 111 da Constituição Estadual)

4)       Usurpação da competência legislativa privativa da União (art. 22, XI, da CF), com violação do princípio federativo (CE, art. 1º). Não é o Município competente para legislar acerca de trânsito e transporte.

5)     Parecer pela procedência do pedido.

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 5.551, de 07 de maio de 2014, de iniciativa parlamentar, do Município de Catanduva que "proíbe o uso de aparelhos sonoros ou musicais no interior de veículos de transporte coletivo nas condições que especifica e dá outras providências".

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por vício de iniciativa, violação do princípio da separação dos poderes, usurpação da competência da União, violação do princípio da razoabilidade e por importar em aumento de despesa sem a indicação dos recursos disponíveis. Daí a afirmação da violação dos art. 5º, 25, 111 e 144 da Constituição Estadual.

A liminar foi indeferida (fls. 18/19).

Citado regularmente, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 24/26).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações a fls. 28/32, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

1.   DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei nº 5.551, de 07 de maio de 2014, de iniciativa parlamentar, do Município de Catanduva, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal após rejeição do veto do Prefeito Municipal, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica proibido, para fins de preservação do conforto acústico dos usuários e combate a poluição sonora, o uso de aparelhos musicais ou sonoros, salvo mediante o uso de fone de ouvido, no interior de veículos de transporte coletivo, públicos e privados, independentemente do órgão ou ente responsável por sua administração, que circulam dentro do Município.

§ 1º - A proibição constante do "caput" abrange os ônibus, micro-ônibus, vans, peruas, lotações e todos os tipos de veículos sobre trilhos.

§ 2º - Aplica-se a proibição contida no "caput" aos aparelhos celulares, quando utilizados como aparelhos musicais.

Art. 2º - Quando constatada inobservância do preceituado no artigo 1º serão adotadas, na ordem elencada, as seguintes medidas:

I - o infrator será convidado a desligar o aparelho;

II - em caso de recusa de desligar o aparelho, o infrator será convidado a se retirar do veículo; e,

III - caso frustradas as medidas previstas nos itens I e II, será solicitado a intervenção policial.

Art. 3º - É obrigatória a afixação de placas, no interior dos veículos de transporte coletivo abrangidos pela presente lei, em letras de formato e tamanho legíveis, contendo o numero da presente lei, a proibição nela contida e o telefone do órgão municipal responsável pelo transporte no Município, com os seguintes dizeres:

"E proibido 0 uso de aparelhos sonoros ou musicais dentro deste recinto, salvo mediante uso de fone de ouvido. Os Infratores serão convidados a desligar seus aparelhos e retirados do veiculo, em caso de recusa, nos termos da Lei nº  .... de .... de ...... de ....... "

Art. 4º - 0 descumprimento do disposto no artigo 3º acarretará multa de cinquenta (50) Unidade Fiscal de Referência de Catanduva (UFRC) aplicada em dobro, na reincidência.

Paragrafo único - A multa de que trata o "caput" deste artigo deverá ser depositada em conta específica, a qual devera ser partilhada, anualmente e de forma proporcional, aos fundos municipais existentes.

Art. 5º - Esta Lei será regulamentada pelo Poder Executivo, no couber, no prazo de 90 (noventa) dias a partir da data de sua publicação.

Art. 6º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 7º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das verbas próprias do orçamento, suplementadas se necessário.

Art. 8º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, ficando revogadas as disposições em contrário.”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como passaremos a abordar.

2.   DA INCONSTITUCIONALIDADE DA OBRIGAÇÃO IMPOSTA A VEÍCULOS DE TRANSPORTE COLETIVO PÚBLICO

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, na parte em que estabelece proibição do uso de aparelhos musicais ou sonoros, salvo mediante o uso de fone de ouvido, no interior de veículos de transporte coletivo públicos independentemente do órgão ou ente responsável por sua administração, impondo obrigação de instalação de placas informativa, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, 117 e 120 da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Artigo 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

(...)

Artigo 120 - Os serviços públicos serão remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na forma que a lei estabelecer”

Cabe ressaltar que nos termos da Lei nº 12.587, de 03 de janeiro de 2012, que “Institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana”, cabe a União prestar, diretamente ou por delegação ou gestão associada, os serviços de transporte público interestadual de caráter urbano.  (art. 16, VIII); aos Estados, os serviços de transporte público coletivo intermunicipais de caráter urbano, em conformidade com o § 1º do art. 25 da Constituição Federal (art.17, I), e finalmente aos os serviços de transporte público coletivo urbano (art. 18, II).

Assim, a matéria disciplinada pela lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa da União, do Estado ou do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe respectivamente ao Presidente, Governador do Estado ou Prefeito Municipal, com auxílio dos Ministros, Secretários Estaduais ou Municipais.

As condições de prestação do serviço público, seja de forma direta ou indireta, como é o caso do transporte coletivo de passageiros, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo da União, Estado ou Município. De outro lado, incumbe também ao Poder Executivo a instituição da política tarifárias dos serviços públicos (art. 120 da Constituição Estadual).

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre no caso em exame, em função da proibição do uso de aparelhos musicais ou sonoros, salvo mediante o uso de fone de ouvido, no interior de veículos de transporte coletivo públicos, independentemente do órgão ou ente responsável por sua administração, que circulam dentro do Município de Catanduva, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

 De outro lado, acabou estipulando obrigação para a União, Estado ou Município ou para as empresas concessionárias do serviço de transporte coletivo Nacional, Estadual ou Municipal de fixação de placas informativas acerca da proibição. Dessa forma, a Câmara Municipal alterou o próprio regime de concessão ou de permissão de serviços públicos e dispôs de maneira autônoma sobra matéria de competência privativa do Poder Executivo, contrastando com o princípio da separação dos poderes insculpido no art. 5º da Constituição Estadual.

A modificação das condições da prestação do serviço público concedido cabe privativamente ao Poder Executivo, haja vista necessidade de avaliar e decidir acerca da conveniência e oportunidade da alteração haja vista as consequências financeiras decorrente da necessidade de manutenção do equilíbrio econômico do contrato (art. 117 da Constituição Estadual).

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da organização e regulamentação dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente. Trata-se de atuação administrativa fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes e da gestão dos contratos de concessão de serviços públicos, previstas na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, 117, 120 e 144)

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao regular condições da prestação de um serviço público nacional, estadual e municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

O ato normativo impugnado importa em modificação das condições da prestação do serviço público que teve no processo de licitação a definição precisa de seu objeto.

Assim, alteradas as condições da prestação do serviço concedido, haveria obrigatoriedade da adequação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão (art. 117 da Constituição Estadual), não tendo sido indicados especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na prestação do serviço público concedido, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.

Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 117, 120 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

3.   DA INCONSTITUCIONALIDADE DA OBRIGAÇÃO IMPOSTA A VEÍCULO DE TRANSPORTE COLETIVO PRIVADO

No que se refere à obrigação imposta aos veículos de transporte coletivo privado, embora a lei não tenha tratado de nenhuma matéria cuja iniciativa legislativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo, e tampouco violado o princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa, está viciada pela falta de razoabilidade, com violação ao art. 111 da Constituição Estadual.

A razoabilidade serve como parâmetro no controle da legitimidade substancial dos atos normativos, requerente de compatibilidade aos conceitos de racionalidade, justiça, bom senso, e proporcionalidade, interditando discriminações injustificáveis e, por isso, desarrazoadas.

Na espécie, embora o intuito do legislador tenha sido o de preservar do conforto acústico dos usuários do serviço de transporte coletivo e combate a poluição sonora, a vedação imposta pela lei, está desprovida de qualquer justificativa ponderável.

Em que pese a boa intenção do legislador, a proibição geral está desprovida de qualquer fundamento técnico, acabando por proibir até mesmo a utilização de aparelho sonoro do próprio veículo de transporte coletivo.

4.   DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO FEDERATIVO

 O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é ainda verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo, previsto no art. 1º da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

Dispor sobre transporte rodoviário e ferroviário é matéria de competência da União, estando sujeito à normatização federal, pois prevê a Constituição Federal que:

“ (...)

Art. 21. Compete à União:

(...)

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

(...)

d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;

e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

(...)

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

IX - diretrizes da política nacional de transportes;

(...)

XI - trânsito e transporte;

A competência legislativa ampla em matéria de transporte não diz respeito apenas à União como ente central, afeta a todos os entes federativos e à população de modo geral, assumindo caráter nitidamente nacional.

No exercício desta competência a União editou uma série de atos normativos de abrangência expressamente nacional tratando do transporte. No que se refere ao transporte coletivo a matéria foi tratada pela Lei nº 12.587, de 03 de janeiro de 2012, que “Institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana”.

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, sem espaço para os Estados e aos Municípios, a competência privativa para legislar sobre diretrizes da política nacional de transportes, trânsito e transporte e para explorar o transporte ferroviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território e  os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (art. 22, IX e XI e 21, XII, d e e da Constituição Federal).

No que toca à prestação dos serviços públicos, a doutrina contemporânea destaca o princípio da predominância do interesse como diretriz da repartição de competências entre os entes federativos. Assim, compete à União tratar das questões de interesse geral, nacional; aos Estados, cabem as matérias de interesse regional; e, aos Municípios, as de interesse local. No que concerne aos transportes, tal divisão é observada claramente no texto constitucional: quando o transporte é internacional ou interestadual, a competência é da União (art. 21, XII, d e e); quando é intramunicipal, i.e., local, a competência é dos Municípios  (art. 30, V); e, residualmente (art. 25, § 1°), quando é intraestadual, mas intermunicipal, a competência será dos Estados-membros.

Os serviços públicos de interesse nacional, como parece óbvio, exigem estrutura também de vulto nacional, com soluções técnicas e econômicas de larga escala, capazes de fazer frente às necessidades de todo o país, o que justifica sua atribuição à União. Os serviços de transporte rodoviários e ferroviários em questão são um exemplo claro dessa circunstância e, com fundamento nessa competência, a União tem regulado a matéria e mantido o serviço.

A competência da União para prestar o serviço de transporte rodoviário e ferroviário, e a do Estado para o serviço de transporte rodoviário intraestadual, importa também na competência para regulamentar a prestação do referido serviço, uma vez que por questão de lógica confere a esse ente o poder de se valer dos meios essenciais à prestação do serviço.

As competências constitucionais não são enunciados vazios, elas vêm acompanhadas das prerrogativas explícitas ou implícitas indispensáveis a sua execução.  Não faria sentido imaginar que a Constituição Federal outorgasse competência a um ente e não lhe conferisse poderes para executá-la.

Os entes locais no exercício de suas próprias competências não podem restringir ou inviabilizar as competências de caráter nacional atribuídas à União e estadual aos Estados. Na verdade o que não se admite é que pretensões locais possam inviabilizar a realização de necessidades mais abrangentes, que incluem a localidade, mas vão para além dela.

Interesses locais não podem inviabilizar a execução de competências de caráter nacional e estadual e a competência de regular determinado assunto não autoriza o ente a inviabilizar a execução de uma competência específica atribuída a outro.

A questão central da presente ação envolve o conflito entre o que dispõe, de um lado, a competência e atribuição constitucional conferida a União e Estado para a disciplina do serviço público de transporte rodoviário ou ferroviário e, de outro, a lei municipal que pretende impor exigências aos concessionários do referido serviço, invocando competências relacionadas à proteção do meio ambiente.

Importante, então, traçar algumas considerações acerca da competência municipal para legislar acerca de matéria relacionada à proteção do meio ambiente.

a.   Da competência concorrente dos entes federados em matéria de meio ambiente

O art. 225 da Constituição impõe ao Poder Público e à coletividade o dever abrangente de defender e preservar o meio ambiente para a geração presente e para as gerações futuras. A doutrina é unânime em reconhecer que a expressão Poder Público é utilizada para designar União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Tal conclusão é endossada pela partilha concreta de competências relativas ao meio ambiente.

A participação coordenada dos diferentes entes em matéria ambiental insere-se no chamado federalismo cooperativo e justifica-se, sobretudo, pelas particularidades de que podem se revestir as questões ambientais em cada região ou localidade.

O dever compartilhado não significa, porém, que o propósito da Constituição seja a superposição completa entre a atuação dos entes federados, como se todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões.

Na realidade, a divisão de competências ambientais é realizada não apenas em respeito à autonomia federativa - o que já seria fundamento bastante – mas também para assegurar efetividade à tutela do meio ambiente e harmonizá-Ia com outras finalidades igualmente protegidas pela Constituição.

 Dissociar as competências - na verdade, poderes-deveres - dos fins a que se destinam, sobretudo em matéria ambiental, daria ensejo a conflitos permanentes, que, longe de garantirem tutela reforçada ao bem protegido, tenderiam a produzir ao menos duas consequências negativas: (i) o bloqueio de uma iniciativa pela outra em razão do impasse sobre a competência, reduzindo a eficácia da proteção ao meio ambiente; e (ii) a cumulação de exigências semelhantes, reduzindo a racionalidade da tutela ambiental e onerando excessiva e desnecessariamente o desempenho de atividades de interesse das comunidades afetadas ou mesmo de toda a população nacional.

Os dois riscos descritos não são puramente hipotéticos. A imensa maioria das atividades humanas produz algum tipo de impacto sobre a natureza, sendo comum que esse impacto potencial ou efetivo ultrapasse as fronteiras políticas das unidades federativas. A definição concreta das esferas de atuação de cada ente na matéria dependerá da interpretação sistemática tanto das normas constitucionais que dispõem especificamente sobre a repartição de competências em matéria ambiental quanto das que tratam de outras competências, cujo exercício pressuponha o equacionamento de questões ambientais.

b.   Da competência legislativa em matéria ambiental

A maioria das competências legislativas em matéria especificamente ambiental é titularizada de forma concorrente pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal. O tema vem disposto no art. 24 da Constituição, em três incisos específicos:

"Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;

VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagítico;

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (...)"

Mesmo nesses domínios compartilhados, a Constituição estabelece um padrão interno de divisão das atribuições. À União compete editar normas gerais, cabendo aos Estados e ao Distrito Federal a tarefa de suplementar a legislação instituída pelo ente central. Assim, caberá à União instituir linhas orientadoras para a atividade legislativa dos Estados e dispor diretamente sobre as matérias que exijam logicamente a instituição de regramento uniforme. No caso, e.g., de atividades que devam ser desenvolvidas nacionalmente, de forma contínua e interligada, as exigências impostas pelo Poder Público em matéria ambiental devem ser naturalmente homogêneas. Disso decorreria a necessária inserção da disciplina de tais questões no âmbito das normas gerais e, consequentemente, na esfera de competência da União.

 Por fim, resta tratar das competências legislativas dos municípios em matéria ambiental. A Constituição, nos seus arts. 30, VIII e 182, § 1°, reserva ao Município um papel de destaque na ordenação e no zoneamento do solo urbano, sobretudo por meio da aprovação de um plano diretor, obrigatório para Municípios com mais de vinte mil habitantes. Essa competência apresenta grande interesse para a tutela do meio ambiente, permitindo que seja delimitada a zona de impacto das atividades potencial ou efetivamente poluentes.

No mais, a competência dos Municípios para legislar sobre matéria ambiental seguirá a regra geral de atribuição de competência legislativa a esses entes. Em síntese, estará restrita ao tratamento de assuntos de interesse local (art. 30, I, da Constituição) e à eventual complementação da legislação federal e estadual (art. 30, II, da Constituição) em função de eventuais peculiaridades da municipalidade.

É certo que o exposto acima sob a perspectiva teórica aplica-se às competências municipais referentes à proteção do meio ambiente. A Constituição não autoriza os Municípios a legislarem sobre toda e qualquer questão que seja capaz de afetá-los em matéria ambiental, ainda quando extrapole as fronteiras locais e repercuta em outros Municípios ou mesmo nacionalmente. Pelo contrário: em matéria ambiental, a Constituição atribuiu expressamente competências político-administrativas aos Municípios - ao passo que os excluiu, também expressamente, da partilha das competências legislativas referentes ao tema, divididas entre União, Estados e Distrito Federal. Diante de tais opções do constituinte, não é legítimo ampliar o conceito de interesses locais, para o fim de alargar indevidamente a competência dos Municípios na matéria.

É bem de ver que uma leitura ampliativa da competência municipal para legislar sobre interesse local desequilibraria o sistema de repartição de competências federativas por uma razão bastante simples. Lembre-se que a União e os Estados não detêm um território diverso do que é representado pelo conjunto dos Municípios, de modo que a imensa maioria das questões, por mais abrangentes que sejam, pode ser descrita como afetando também interesses locais. Se essa circunstância, por si só, autorizasse a intervenção legislativa municipal, seu objeto seria praticamente ilimitado, esvaziando a competência dos demais entes.

Diversos exemplos ilustram o ponto. Um Município de fronteira não poderá legislar sobre defesa nacional ou imigração, matérias de competência privativa da União, sob o argumento de que o conjunto normativo editado pelo ente central é insatisfatório e causa transtornos à municipalidade. Da mesma forma, não há dúvida de que a instalação de uma usina nuclear ou hidroelétrica em determinado Município é um evento capaz de afetar profundamente os negócios e a vida local. Os possíveis impactos para o meio ambiente municipal também são evidentes. Nada obstante, a Constituição determina que a União determinará por lei a localização dessas instalações (no caso das nucleares). O Município cujo território venha a ser escolhido não poderá invocar sua competência legislativa para o fim de impedir a instalação da usina, quer diretamente, quer por meio da instituição de exigências que tomem inviáveis a instalação ou o funcionamento da unidade.

Ainda que os legisladores municipais ou mesmo a população local se oponham radicalmente a determinada política de imigração ou à utilização da referida matriz energética, a decisão simplesmente não lhes cabe no âmbito da Federação brasileira. Esses agentes poderão tentar se valer de ações políticas ou mesmo jurídicas para modificar a vontade do ente central, mas não podem subverter a divisão federativa de competências e atropelar as decisões tomadas por outras esferas de governo no exercício de suas atribuições constitucionais. O argumento está sendo empregado em relação aos Municípios, mas pode ser generalizado no âmbito da Federação: a repartição de competências determina quem deverá decidir, sem que se abra espaço para que outras unidades federativas, descontentes, reformulem ou ignorem a decisão tomada.

c.    Das competências político-administrativas em matéria ambiental

As competências político-administrativas relacionadas diretamente com a proteção do meio ambiente foram atribuídas pela Constituição aos três níveis federativos, de forma concorrente:

"Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

(..)

VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

VII - preservar as florestas, a fauna e aflora;

(..)

Parágrafo único. Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional".

É justamente no domínio das competências político-administrativas que se pode realizar com maior intensidade a intenção do constituinte, indicada no art. 225 da Carta, de comprometer todo o Poder Público com o objetivo de tutelar os bens ambientais. No entanto, tal como foi mencionado, isso não significa que essas matérias sejam cometidas a cada um dos entes federativos de forma indiscriminada, como se soberanos fossem. A própria Constituição previu, no parágrafo único do artigo 23, transcrito acima, a edição de uma lei complementar nacional para disciplinar a cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a ser pautada pela busca do equilíbrio no desenvolvimento e no bem-estar em âmbito nacional.

O fato de a referida lei ainda não ter sido editada dificulta a delimitação das competências, mas não autoriza os entes a ignorarem que estão inseridos em um Estado Federal. Os respectivos espaços de atuação material devem ser definidos a partir da interpretação sistemática do sistema de repartição de competências, aplicando-se os critérios de solução de conflitos: (i) a prevalência de competências específicas sobre competências genéricas; e (ii) a predominância do interesse.

Será igualmente necessário observar o conjunto normativo editado sobre cada tema no exercício das competências legislativas já analisadas.

Afinal, embora se admita que a Constituição possa fundamentar diretamente a prática de atos administrativos, a lei continua sendo a grande baliza dos atos materiais praticados pelo Poder Público, sobretudo quando a norma constitucional prevê uma meta geral ficando a definição dos meios para atingi-Ia a cargo da política majoritária. Nesse contexto, e como parece evidente, as competências legislativas condicionam o exercício de competências administrativas, e não o contrário. Assim, não é correto afirmar que o art. 23, por si só, forneceria a todos os entes poder normativo primário em matéria ambiental, como se este fosse um instrumento indispensável para a realização de suas atribuições político-administrativas. Essa interpretação faria desaparecer a distinção entre competências legislativas e materiais e tomaria sem sentido o sistema de repartição de competências previsto na Constituição.

À luz desses parâmetros, é possível concluir que caberá à União a primazia no controle administrativo incidente sobre as atividades que apresentem repercussão ambiental nacional; aos Estados e ao Distrito Federal, as atividades de repercussão regional; e aos Municípios, a fiscalização das atividades que apresentem impacto local.

É certo que tais critérios não estabelecem zonas de competência absolutamente estanques, sendo até mesmo desejável que haja cooperação entre os entes na fiscalização de possíveis agressões ao meio ambiente, coordenando esforços e minimizando o risco de omissões. Cuida-se, como foi referido, de uma relação de primazia, cuja principal manifestação ocorrerá nos casos de conflito entre a orientação de entes situados em diferentes níveis federativos. Nesses casos será necessário definir o responsável pela palavra final, devendo prevalecer a decisão emanada do ente situado no nível de abrangência correspondente ao potencial ou efetivo impacto ambiental. Estando presente interesse nacional, não há como afastar a precedência da União.

Os critérios de divisão de competências que se acaba de resumir foram adotados de forma expressa pelo Min. Celso de Mello ao decidir sobre pedido de medida cautelar na AC 1255/RR. Vale a pena transcrever uma passagem da decisão:

"É certo que os limites de atuação normativa e administrativa das pessoas políticas que compõem a estrutura institucional da Federação brasileira (CF, art. 18, "caput") acham-se predeterminados no próprio texto da Constituição da República, que define, mediante a técnica dos poderes enumerados e residuais, a esfera de atribuições de cada uma das unidades integrantes do Estado Federal, como resulta claro do que dispõem os arts. 21 a 24 da Lei Fundamental. Nesse contexto, cabe, à União Federal, considerada a maior abrangência dos interesses por cuja defesa deve velar, o desempenho de um papel de alto relevo no plano da proteção ambiental e da utilização dos mecanismos inerentes ao fiel adimplemento de tal encargo constitucional. (..) Vê-se, portanto, considerada a repartição constitucional de competências em matéria ambiental, que, na eventualidade de surgir conflito entre as pessoas políticas no desempenho de atribuições que lhes sejam comuns - como sucederia, p. ex., no exercício da competência material a que aludem os incisos VI e Vll do art. 23 da Constituição -, tal situação de antagonismo resolver-se-á mediante aplicação do critério da preponderância do interesse e, quando tal for possível, pela utilização do critério da cooperação entre as entidades integrantes da Federação (...). Isso significa que, concorrendo projetos da União Federal e do Estado membro visando à instituição, em determinada área, de reserva extrativista, o conflito de atribuições será suscetível de resolução, caso inviável a colaboração entre tais pessoas políticas, pela aplicação do critério da preponderância do interesse, valendo referir - como já assinalado - que, ordinariamente, os interesses da União revestem-se de maior abrangência. (...) Isso tudo evidencia, em princípio, notadamente em face da norma de competência exclusiva inscrita no art. 21, IX, da Constituição da República, o caráter preponderante (porque mais abrangente) do interesse da União Federal em tema ambiental, em ordem a reconhecer-se-lhe, ordinariamente, precedência, se e quando concorrerem, relativamente à mesma área, projetos federais e estaduais eventualmente conflitantes, ressalvada, no entanto, a possibilidade constitucional – sempre desejável - de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, nos termos de lei complementar da própria União, cujas normas considerarão, para efeito da referida colaboração, o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (CF, art. 23, parágrafo único) ( ..) .

Como já descrito, a questão central do presente estudo envolve o conflito entre o que dispõe, de um lado, a legislação federal que trata do serviço público de transporte rodoviário e ferroviário e, de outro, lei municipal que pretende impor exigências a União, aos Estados e ao Município ou aos concessionários do referido serviço, invocando competências relacionadas à proteção do meio ambiente.

O primeiro passo para a solução do conflito federativo descrito é a identificação das competências atribuídas a cada um dos entes estatais pela Constituição Federal. No caso da União, interessa à presente hipótese suas competências:  a) privativa para legislar sobre diretrizes do sistema nacional de transporte e sobre trânsito e transporte (art. 22, IX e XI); b) concorrente com os Estados para legislar sobre meio ambiente em geral e, mais especificamente, sobre controle da poluição, cabendo-lhe a edição de normas gerais (art. 24, VI, VII e VIII); c) privativa para prestar o serviço de transporte ferroviário interestadual e entre portos e fronteiras e os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; (art. 21, XII, d, e e e); e d) concorrente com os demais entes (art. 23, III, VI e VII) para a proteção do meio ambiente no plano político-administrativo.

Enquanto que os Estados detêm competência concorrente para legislar sobre questões particulares relacionadas ao meio ambiente, observadas as normas gerais editadas pela União. Os Municípios, por sua vez, não detêm nenhuma competência legislativa explícita sobre o assunto. Compete-lhes, porém, "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano" (art. 30, VIII), o que lhes permite zonear seus respectivos territórios e, assim, evitar que atividades poluentes provoquem impacto direto sobre áreas residenciais. Adicionalmente, os Municípios podem legislar sobre assuntos de interesse local e complementar a legislação federal ou estadual em função das suas particularidades.

Assim, podemos identificar o seguinte conflito normativo gerado pela lei municipal: 1) conflito entre a competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte e a competência dos Estados para legislar, em concorrência com a própria União, sobre meio ambiente; e 2) conflito entre a competência da União para instituir normas gerais sobre meio ambiente e a competência dos Estados para complementar a legislação sobre o mesmo tema.

A competência dos Estados para prestação de serviço de transporte coletivo interestadual e intermunicipal e da União para prestar o serviço de transporte rodoviário e ferroviário, não é irrelevante. Por si só, ela teria o condão de conferir a esses entes o poder de se valer dos meios essenciais à prestação do serviço. As competências constitucionais não são enunciados vazios, vindo naturalmente acompanhadas das prerrogativas indispensáveis a sua execução. Contudo, considerando que a competência normativa na matéria também é privativa da União, toma-se desnecessário considerar esse aspecto em um primeiro momento.

Nos dois conflitos apontados, os Municípios não detêm competências legislativas expressas, de modo que a sua eventual participação no regramento da matéria apenas seria admissível se fosse caracterizada a existência de interesses locais.  De outro lado, a competência de natureza político-administrativa prevista no art. 23 da Constituição Federal não confere aos entes um poder normativo autônomo, em contraste com as competências legislativas sobre a matéria de que a Constituição trata de modo específico em outros dispositivos.

O suposto conflito entre a competência privativa da União para legislar sobre transportes e a competência dos Estados para, em concorrência com a União, legislar sobre meio ambiente, atrairia a aplicação do critério da generalidade-especialidade: a competência legislativa genérica em matéria ambiental opera como norma geral e a competência sobre transporte como norma especifica nesse particular, inclusive no que diz respeito às repercussões ambientais da atividade. Essa modalidade de conflito, como é corrente, é solucionada pela prevalência das competências específicas, na medida da sua especificidade, mantendo-se a validade dos enunciados gerais e sua aplicação às demais hipóteses.

Com efeito, a disciplina dos transportes terrestres, terá de cuidar em alguma medida de questões ambientais correlatas, sendo indispensável que haja um regime nacional na matéria. Por outro lado, o tratamento do aspecto ambiental não poderá ser concebido de forma isolada e estanque, sem comunicação com os outros interesses envolvidos na regulação do setor, notadamente a necessidade de manutenção de uma malha de transportes eficiente e acessível.

Por tudo isso, retirar os aspectos ambientais da disciplina unificada dos transportes poderia prejudicar o desempenho dessa competência. Essa mesma circunstância pode ser identificada em algumas outras competências atribuídas à União em caráter exclusivo, a despeito de suas inúmeras repercussões para o meio ambiente. Esse é o caso, e.g., da competência privativa da União para legislar sobre jazidas, minas, recursos minerais e metalurgia (art.22, XII) e sobre atividades nucleares de qualquer natureza (art. 22, XXVI).

Simplesmente não seria possível dispor sobre mineração - atividade de elevado potencial polui dor - sem disciplinar as exigências ambientais. Diga-se o mesmo sobre atividades nucleares, nas quais um acidente pode comprometer o meio ambiente em escala não apenas nacional, mas até mesmo mundial.

A lógica que define a extensão das competências da União nessas matérias é a mesma que se aplica à competência desse ente para legislar sobre trânsito e transporte. Em ambos os casos, trata-se de competências legislativas específicas, devendo prevalecer, em princípio, sobre competências legislativas genéricas. Isso afastaria a competência legislativa concorrente dos Estados em matéria ambiental e, mais ainda, qualquer pretensão dos Municípios de invocar supostos interesses locais para legislar genericamente sobre exigências e proibições incidentes sobre o transporte ferroviário.

Os ruídos decorrentes do uso de aparelhos sonoros no interior de veículos de transporte coletivo são circunstâncias comuns a todas as localidades por onde podem circular aqueles veículos, descaracterizando a existência de um interesse local.

Essa conclusão tornaria, em princípio, desnecessário analisar o segundo conflito potencial entre as competências da União e dos Estados, haja vista a inconstitucionalidade evidenciada pela violação do princípio federativo. No entanto, a análise do segundo binômio - competência da União para editar normas gerais sobre meio ambiente em oposição à competência dos Estados para complementar esse conjunto normativo - servirá para reforçar a conclusão obtida e, mais importante, para afastar qualquer dúvida sobre ela.

Para definir as competências normativas em matéria ambiental, seria preciso determinar o campo das normas gerais - atribuído à União - e o campo da legislação suplementar, conferido aos Estados. O conceito de normas gerais é relativamente indeterminado. Apesar disso, é possível reconhecer dois conteúdos logicamente inseridos nessa categoria: (i) a instituição de diretrizes, destinadas a conferir alguma uniformidade ao tratamento das matérias, sem prejuízo da competência dos Estados; e (ii) a disciplina de questões nas quais predomine o interesse nacional, superposto a eventuais interesses regionais ou locais, exigindo a instituição de um regramento uniforme para todo o país.

Embora possam surgir dúvidas sobre a fronteira entre as normas gerais e a regulamentação específica, é natural que haja também zonas de certeza. As palavras e conceitos ostentam sentidos mínimos, sem os quais a comunicação seria impossível. Assim, por mais que seja difícil, em algumas circunstâncias, caracterizar o que seja um "interesse nacional predominante", ninguém duvidará que a rubrica se aplica ao sistema de transporte que perpassa Estados e Municípios e liga as fronteiras. As normas indispensáveis à existência de tal sistema devem ser unificadas, para que o tráfego possa fluir nacionalmente.

A regionalização das exigências inviabilizaria ou, quando menos, oneraria gravemente a prestação do serviço.

Dessa forma, ainda que a competência privativa da União para legislar nacionalmente sobre transporte não abarcasse as repercussões ambientais da atividade, isso não afastaria a conclusão de que a matéria deve ser regulada por esse ente federativo. No caso de atividades que devam ser desenvolvidas nacionalmente, de forma interligada, é necessário que haja requisitos também nacionais de controle da poluição, atraindo inquestionavelmente a matéria para o âmbito de competência da União, a quem caberá instituir normas gerais sobre o tema.

Resta, ainda, uma nota final. A eventual omissão do ente central autorizaria os Estados ou Municípios a exercer competência legislativa plena na matéria?

Em princípio, a resposta parece positiva, por conta do art. 24, § 2° e 30, II da Constituição Federal. No entanto, o exercício dessa competência suplementar por parte dos Estados e Municípios estaria sujeito a um importante limite, que decorre de tudo o que já se expôs: ele não poderia inviabilizar o serviço público de transporte a cargo da União ou Estado. A observação é feita apenas por zelo teórico, já que, não se verifica na hipótese a omissão do ente central.

A União, no uso de desta competência, editou a Lei nº 12.587/2012. Observe-se que, embora a regulamentação existente em matéria de transporte rodoviário e ferroviário se ocupe de questões ambientais, ela não disciplina aspectos relativos a ruídos provocados no interior dos mesmos.

É certo, porém, que a obrigação imposta pela lei municipal não parece razoável, além de interferir diretamente na forma e condições da prestação do serviço de transporte. O ato normativo cuida de restringir e limitar o exercício da competência da União e dos Estados para a exploração e regulamentação da atividade de transporte.

Como se vê, não se trata aqui de omissão da União em regulamentar a matéria. O fato de a União não haver editado norma com o conteúdo eventualmente desejado pelo Município não significa, por natural, omissão. O ponto é saber se o tema foi objeto de consideração pelo ente competente. Havendo disciplina nacional sobre o tema, não se verifica a hipótese do art. 24, § 2° da Constituição.

Importante ainda pequena reflexão sobre a distribuição de competências no âmbito da União e o conjunto normativo que disciplina, em caráter nacional, o transporte ferroviário e a tutela do meio ambiente.

A recente legislação que disciplinou o Sistema Nacional de Viação atribuiu à ANTT e ao DNIT um conjunto de competências regulatórias específicas que envolvem aspectos ambientais diretamente relacionados com a operação dos serviços de transporte em geral, e ferroviário em particular. A legislação sobre meio ambiente, por sua vez, atribuiu ao CONAMA, órgão normativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, competência para estabelecer padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e embarcações, ouvidos os Ministérios competentes.

Parece certo, portanto, que os dois conjuntos de órgãos e entidades convivem em suas atuações: a ANTT e o DNIT regulam a operação do setor e suas repercussões ambientais ordinárias, sem prejuízo de o CONAMA, diante de algum risco de dano ambiental que considere relevante, disciplinar a matéria em caráter geral. Confira-se melhor as competências dos órgãos e entidades referidos.

d.   Competências do Sistema Nacional de Transportes

A Lei n° 10.233/01 dispõe sobre o Sistema Nacional de Aviação, abarcando a infra-estrutura viária e a estrutura operacional dos diferentes meios de transporte sob a administração da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no que se inclui a estrutura do transporte ferroviário, ao dispor que:

“Art. 22: Constituem a esfera de atuação da ANTT:

I - o transporte ferroviário de passageiros e cargas ao longo do Sistema Nacional de Viação;

II - a exploração da infra-estrutura ferroviária e o arrendamento dos ativos operacionais correspondentes;

(...) VII - o transporte de cargas especiais e perigosas em rodovias e ferrovias.”

Essa mesma lei criou duas entidades nacionais que aqui interessam em particular: a ANTT - Agência Nacional de Transportes Terrestres, encarregada de regular a parte terrestre do referido sistema, e o DNIT - Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, encarregado de gerir a infraestrutura.

Na linha de outros atos normativos que instituíram agências reguladoras, a Lei n° 10.233/01 apresenta considerável grau de generalidade e abstração, ocupando-se de instituir as diretrizes que servirão de balizas para a atuação regulatória das entidades mencionadas. Como é natural, e já foi mencionado, parte importante da disciplina dos- transportes terrestres tangencia ou diz respeito diretamente aos temas da segurança e da proteção ao meio ambiente. Nesse sentido, diversos dispositivos da Lei n° 10.233/01 referem-se a esses pontos, atribuindo competências à ANTT e ao DNIT. Confira-se:  o art. 20, lI, a, define como objetivo da ANTT regular ou supervisionar a prestação de serviços e a exploração da infraestrutura de transportes, exercida por terceiros, para o fim de garantir que essas atividades observem padrões de eficiência, segurança, conforto, regularidade, pontualidade e modicidade nos fretes e tarifas; o art. 37, I, determina que os contratos de concessão devem impor ao concessionário a obrigação de adotar, em todas as suas operações, as medidas necessárias para conservar os recursos naturais, para garantir a segurança das pessoas e equipamentos e para a preservação do meio ambiente; o art. 24, IV, atribui à ANTT o dever de editar normas e regulamentos para disciplinar a exploração das vias e terminais, incluindo, naturalmente, a instituição das normas de segurança do transporte e segurança ambiental, que deverão constar dos contratos de concessão, como mencionado no item anterior; o inciso VIII do mesmo artigo determina que a agência proceda à fiscalização dos serviços prestados para garantir a observância das normas regulamentares e dos contratos de concessão; o art. 24, XIV determina que a agência estabeleça padrões e normas técnicas complementares para disciplinar as operações de transporte de cargas especiais ou perigosas; o art. 82, I, atribui ao DNIT competência para estabelecer padrões, normas e especificações técnicas para os programas de segurança operacional e sinalização, bem como sobre manutenção, conservação e reposição de vias e terminais.

Afora contratos de concessão e outras espécies normativas específicas, encontram-se em vigor na matéria duas normas de caráter geral: os Decretos nº 1.832/96 e 98.973/90, sobre os quais se tratou acima, que veiculam, respectivamente, o Regulamento dos Transportes Ferroviários e o Regulamento do Transporte Ferroviário de Produtos Perigosos. Embora anteriores à edição da Lei nº 10.233/01, tais atos normativos foram recepcionados pelo novo sistema.

e.   Competências do Sistema Nacional do Meio Ambiente

No que diz respeito à disciplina do meio ambiente, a grande referência em matéria legislativa nacional é, sem dúvida, a Lei n° 6.938/81, recepcionada no geral pela Constituição de 1988 e modificada por atos normativos a ela posteriores. O diploma dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, cujo objetivo central é a conservação, promoção e recuperação da qualidade ambiental, em harmonia com a necessidade de garantir condições para o desenvolvimento sócio econômico.

Essa mesma lei instituiu o SISNAMA - Sistema Nacional do Meio Ambiente, destinado a integrar e coordenar os esforços de proteção ambiental realizados pelos agentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Dentro da estrutura do SISNAMA, destacam-se duas estruturas: (i) o CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente, órgão deliberativo e dotado de competências normativas; e (ii) o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, autarquia encarregada de gerenciar a execução da Política Nacional do Meio Ambiente e, em alguns casos, de provocar a atuação normativa do CONAMA.

As competências do CONAMA vêm enunciadas no art. 8° da Lei n° 6.938/81. O inciso VI, afirma que compete a esse órgão "estabelecer, privativamente, normas e padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e embarcações, mediante audiência dos Ministérios competentes". Como se vê, o dispositivo confere ao CONAMA a possibilidade de definir padrões de controle da poluição aplicáveis aos veículos automotores, gênero no qual é possível incluir as composições ferroviárias. A lei determina, contudo, que sejam ouvidos os Ministérios competentes, de modo a que se alcance uma concordância prática entre as preocupações das autoridades ambientais e aquelas das autoridades encarregadas de gerir o sistema nacional de transportes.

Há aqui duas observações finais a fazer. No desempenho de sua competência, o CONAMA terá necessariamente de levar em conta as ponderações das autoridades encarregadas da regulação do sistema de transporte, uma vez que se terá aqui dois fins constitucionais valiosos: a proteção do meio ambiente e o funcionamento adequado do serviço de transporte ferroviário. A locução "mediante audiência" empregada pela lei, portanto, não veicula mera exigência formal, mas substancial.

Em segundo lugar, seria inteiramente irrazoável imaginar que a ANTT e o DNIT - ou outras agências reguladoras e órgãos ou entidades similares - antes de toda e qualquer definição regulatória que apresente alguma espécie de impacto ambiental tivessem de submeter a questão previamente ao CONAMA. Como já se referiu, e é quase intuitivo, praticamente toda ação humana produz algum tipo de impacto ambiental. A agilidade mínima que se exige e espera da ação regulatória seria inviável.

A interpretação sistemática dos dois sistemas - o Sistema Nacional de Viação e o Sistema Nacional do Meio Ambiente - parece indicar que cabe à ANTT e ao DNIT a prática dos atos necessários à regulação do setor, nos termos do que dispõe a Lei n" 10.233/01, ocupando-se igualmente das eventuais repercussões ambientais que esses atos possam produzir. Ou seja: a regulação do setor não ficará na dependência de impulsos externos. Nada obstante, julgando relevante algum tema em particular, poderá o CONAMA, ouvidos os Ministérios pertinentes, expedir norma sobre o ponto.

Nem se alegue a existência de competência complementar municipal, fundada na autonomia para legislar sobre assunto de interesse local. A questão, como exposta, demonstra a inocorrência dos motivos que justificariam a competência legislativa municipal, haja vista que regras acerca do transporte tem abrangência nacional ou estadual e não se subordinam a uma prevalência local. Deste modo, normas municipais que invadem o campo da disciplina normativa acerca desta matéria, violam a competência normativa federal.

Ainda que assim não fosse, o assunto, em termos acadêmicos, foi bem examinado por Fernanda Menezes Dias de Almeida assentando que a colisão de competências resolve-se pela prevalência das “determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 159).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre a União, os Estado e os Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei nº 5.551, de 07 de maio de 2014, do Município de Catanduva, viola o princípio da repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípios constitucionais estabelecidos.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto nos arts. 1º e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 5.551, de 07 de maio de 2014, do Município de Catanduva.

 

              São Paulo, 12 de agosto de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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