Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2121173-69.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Sorocaba

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba

 

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 10.862, de 6 de junho de 2014, do Município de Sorocaba, que institui a “tarifa de água e esgoto social”. Concessão de tarifa diferenciada de água e esgoto para as famílias com renda mensal total de até 2 (dois) salários mínimos em imóveis residenciais com área construída não superior a 60 (sessenta) metros quadrados. Reserva da Administração. Violação da separação de poderes. Procedência. 1. O controle de constitucionalidade na via abstrata, concentrada e direta de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, consoante dispõe o art. 125, § 2º, da Constituição Federal, razão que alija o exame de conflito entre a lei impugnada e disposições da Lei Orgânica do Município. 2. Não há violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo porque o objeto da lei contestada sequer tangencia as matérias arroladas no art. 24, § 2º da Constituição Estadual. 3. Impertinência da alegação de violação do art. 24, § 2º da CE/89, pois a reserva de iniciativa legislativa neste dispositivo exige interpretação restritiva, e de nenhuma de suas hipóteses taxativamente previstas se inclui a matéria objeto da lei local impugnada. 4. Como a fixação da tarifa se insere no âmbito da competência privativa do Chefe do Poder Executivo, imune à interferência do Poder Legislativo, a outorga de redução tarifária tampouco poderia ser objeto de lei, mesmo que de iniciativa do Chefe do Poder Executivo (arts. 120 e 159, parágrafo único, CE/89). 5. O parâmetro constitucional ao prever a competência do órgão executivo competente para fixação da tarifa inclui alterações, isenções etc., e, portanto, a outorga de desconto por ato normativo do Poder Legislativo, de iniciativa parlamentar, viola a cláusula da separação de poderes constante do art. 5º da Constituição Estadual. 6. Procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal de Sorocaba em face da Lei n. 10.862, de 6 de junho de 2014, do Município de Sorocaba, que institui a tarifa de água e esgoto social para as famílias de baixa renda no município, por alegação de violação dos arts. 5; 24, §§ 2º e 5º, 1; 25; 47, II; 120 e 159, parágrafo único da Constituição Estadual, e dos arts. 2º; 61, § 1º; 63, I, e 84, II e III, da Constituição Federal (fls. 01/30).

2.                Foi deferida a liminar (fls. 218/219).

3.                A douta Procuradoria-Geral do Estado absteve-se de manifestar-se (fls. 228/230).  

4.                A Câmara Municipal se manifestou defendendo a constitucionalidade do ato normativo (fls. 234/238).

5.                É o relatório.

6.                Eis a redação da Lei em análise:

“Art. 1º Fica instituída a tarifa de água e esgoto social para as famílias com renda mensal até 2 (dois) salários mínimos, nas ligações em imóveis exclusivamente residenciais com área construída não superior a 60 (sessenta) metros quadrados, desde que comprove ser proprietário de um único imóvel.

Parágrafo único – Os beneficiados por esta lei, proprietários ou promitentes compradores gozarão de desconto equivalente a 50% (cinqüenta por cento) nos valores regularmente medidos.

Art. 2º O Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAEE), cadastrará os interessados que deverão comprovar essa condição, mediante documentos.

Art. 3º As despesas decorrentes da aprovação desta Lei correrão por conta de verba orçamentária própria.

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua aplicação.”

7.                O controle de constitucionalidade na via abstrata, concentrada e direta de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, consoante dispõe o art. 125, § 2º, da Constituição Federal, razão que alija o exame de conflito entre a lei impugnada e disposições da Lei Orgânica do Município.

8.                É impertinente a invocação do art. 24, § 5º, I, da Constituição do Estado na medida em que se trata de lei de iniciativa parlamentar e o preceito constitucional é regra que institui limitação ao poder de emenda parlamentar cujo pressuposto é o exercício da iniciativa legislativa reservada.

9.                No que se refere à alegação do requerente de violação do art. 24, § 2º da Constituição Estadual, tal argumento não merece prosperar, pois a reserva de iniciativa legislativa contida no mencionado dispositivo exige interpretação restritiva, e de nenhuma de suas hipóteses taxativamente previstas se inclui a matéria objeto da lei local impugnada sob o prisma de matéria tributária.

10.              Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

11.              Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

12.              No rol do § 2º do art. 24 da Constituição Estadual, que inscreve iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, não se alinham disposições em matéria tributária. Não se anima com a invocada violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo porque o objeto da lei contestada sequer tangencia as matérias arroladas no art. 24, § 2º da Constituição Estadual.

13.              Inexiste, por esse aspecto, qualquer inconstitucionalidade a ser declarada em razão do impulso parlamentar dado ao projeto que culminou com a edição do ato normativo em epígrafe, pois a matéria versada na lei impugnada não é de iniciativa legislativa reservada ao Executivo, pois não está contemplada no rol do art. 24, § 2º, 1 a 6, da Constituição Paulista (que reproduz, de modo geral, o disposto no art. 61, § 1º, da CR).

14.               A arguição de ofensa ao art. 25 da Constituição do Estado não se configura. Sua redação expressa que “nenhum projeto de lei que a implique criação de cargo ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos”. O preceito concentra em seu bojo uma nítida e salutar preocupação com a responsabilidade fiscal. Entretanto, a lei local impugnada não implica, de per si, majoração de despesa pública, ainda que importe renúncia de previsão de receita pública. Mesmo sob este enfoque, convém ponderar que não há óbice na medida em que incide sobre a previsão, não sobre a execução e realização.

15.              Em suma, o art. 25 da Constituição Estadual veda projetos de lei sem indicação de recursos próprios para fazer face à majoração de despesa pública, não inviabilizando isenções ou reduções tributárias.

16.              Ademais, é insubsistente a alegação de falta de receita própria (art. 25, Constituição Estadual) posto que sua ausência apenas compromete a eficácia da norma no exercício financeiro de sua vigência.

17.              Com efeito, “inclina-se a jurisprudência no STF no sentido de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01).

18.              Afastadas todas essas possibilidades, denota-se a inconstitucionalidade da lei local impugnada por outros motivos. Há violação ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os Poderes. Vejamos.

19.              A lei municipal em questão instituiu redução (desconto) de tarifa devida por certa categoria de pessoas em razão da prestação de serviço público.

20.              A concessão de desconto ao pagamento de preço público (tarifa) pela prestação de serviço público, executado direta ou indiretamente, é matéria reservada ao Poder Executivo, nos termos do que dispõe o art. 120 da Constituição Estadual. Nesse sentido é expresso o art. 120:

“Art. 120. Os serviços públicos serão remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na forma que a lei estabelecer”.

21.              Com efeito, ao prever a competência do órgão executivo competente para fixação da tarifa, tal inclui alterações, isenções, reduções etc., e, portanto, a instituição da “tarifa de água e esgoto social” por ato normativo do Poder Legislativo, de iniciativa parlamentar, viola a cláusula da separação de poderes constante do art. 5º da Constituição Estadual.

22.            Ora, se a Constituição Estadual reserva a fixação da tarifa ao órgão executivo competente, não é dado, em atenção ao princípio da simetria das formas, ao Poder Legislativo se imiscuir nessa seara (estipulando reduções, isenções ou quaisquer outras espécies de benefícios aos usuários), sob pena de comprometimento do equilíbrio econômico financeiro que deve ostentar a remuneração do serviço público (art. 117, Constituição Estadual) e violação à cláusula da separação de poderes (art. 5º, Constituição Estadual) pela invasão da esfera reservada de ato da Administração que lhe foi conferida para gestão do serviço público direta ou indiretamente executado.

23.             Como a fixação da tarifa se insere no âmbito da competência privativa do Chefe do Poder Executivo, imune à interferência do Poder Legislativo, a outorga de redução tarifária tampouco poderia ser objeto de lei, mesmo que de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, à luz dos arts. 120 e 159, parágrafo único, da Constituição Estadual.

24.              A propósito, oportuno ressaltar que nos termos do parágrafo único do art. 159 da Constituição Estadual:

“Os preços públicos serão fixados pelo Executivo, observadas as normas gerais de Direito Financeiro e as leis atinentes à espécie”.

25.              Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.

26.              A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

27.              Se, em princípio, a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por caracterizarem assuntos de natureza eminentemente administrativa são reservadas ao Poder Executivo (arts. 47, II, da Constituição Estadual) em espaço que é denominado reserva da Administração. Neste sentido, enuncia a jurisprudência:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. (...)” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

28.              No caso, foi violentada a reserva da Administração Pública, pois compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica e ordinária, a edição de normas e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento, imune a qualquer ingerência do Poder Legislativo (art. 47, II da Constituição Estadual).

29.              A decisão sobre tarifas de água e esgoto é da inerência da típica gestão ordinária da administração, cujas linhas mestras são reservadas privativamente ao Chefe do Poder Executivo, alforriado da interferência do Poder Legislativo, no espectro de sua atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo.

30.              A propósito do tema vale conferir algumas decisões desse Colendo Órgão Especial:

 “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei municipal alterando a forma de remuneração do serviço de água e esgoto concedido. (...) Violação do princípio da independência e harmonia dos Poderes Públicos. Violação dos arts. 5°, 47, inc. II e XIV, 117, 119 e 120, c.c. art. 144, da Constituição do Estado de São Paulo. Procedência decretada.” (ADIn n. 0091132-95.2010.8.26.0000 , Rel. Des. Boris Kauffmann, j. 13 de outubro de 2010)

“Inconstitucionalidade. Ação Direta. Lei nº 11.492/07 do Município de Ribeirão Preto, que dispõe sobre o valor máximo para tarifação referente a corte e religação do fornecimento de água no Município, pelo DAERP, conforme especifica e dá outras providências. Norma de iniciativa parlamentar. Matéria relativa à organização administrativa e execução de serviços públicos, atribuição exclusiva do Prefeito. Ofensa ao princípio da separação de poderes. Ação julgada procedente.” (ADIn n. 9046800-55.2008.8.26.0000, Rel. Des. Penteado Navarro, j. 01 de abril de 2009)

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Andradina, de iniciativa parlamentar, que concedeu isenção de tarifa de água e esgoto a aposentados - Violação à separação de Poderes - Matéria referente à tarifa e preço público pela remuneração dos serviços que é de competência do Executivo (art. 120, da CE) (...). Ação procedente, para reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 2.733, de 19 de setembro de 2011, do Município de Andradina.” (TJSP, ADI 0256692-55.2011.8.26.0000, Rel. Des. Enio Zuliani, v.u., 23-05-2012).

31.              Face ao exposto, opino pela procedência de inconstitucionalidade.

 

São Paulo, 06 de outubro de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

wpmj/mam