Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2122021-56.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.279, de 12 de junho de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que "Institui o programa bolsa creche que apoia mensalmente com recursos financeiros as mães que tenham filhos em idade de educação infantil nas despesas com creche e prestação de serviço similar" .

2)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

3)      Encontra-se na reserva da administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar, pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).  

4)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX, e 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 7.279, de 12 de junho de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que "Institui o programa bolsa creche que apoia mensalmente com recursos financeiros as mães que tenham filhos em idade de educação infantil nas despesas com creche e prestação de serviço similar".

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por vício de iniciativa, por violação ao princípio da separação dos poderes e por criar despesa pública sem a indicação dos recursos disponíveis. Daí a alegação de violação aos arts. 5º; 24, § 2º, 1 e 2; 25; 47, II, XIV e XVII; 144; 174, I a III; e 176, I da Constituição Estadual, bem como aos arts. 39, IV e 63, IV da Lei Orgânica Municipal, e aos arts. 15 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Foi deferida a liminar para a suspensão da eficácia da lei impugnada.

Citado regularmente (fl. 58), o Senhor Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 51/53).

Devidamente notificado (fl. 55), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 60/65, defendendo a validade do ato jurídico impugnado.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

PRELIMINAR

Inicialmente, oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Lei de Responsabilidade Fiscal e com dispositivos da Lei Orgânica Municipal.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal, que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão somente de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

MÉRITO

Em relação ao mérito, procede o pedido.

A Lei nº 7.279, de 12 de junho de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após derrubada do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“Art. 1º Fica instituído no âmbito municipal de Guarulhos o Programa Bolsa Creche, às mães de crianças em vulnerabilidade socioeconômicas não matriculadas na rede pública de creches ou credenciadas pela Prefeitura.

Art. 2º A idade dos filhos compreenderá de 0 (zero) a 3 (três) anos.

Art. 3º A prioridade serão das mães com crianças que aguardam atendimento na fila de espera.

Art. 4º As mães que atendam as disposições nos artigos 2º e 3º, receberão auxílio de 1/2 (meio) salário mínimo por criança durante o período em que não for possível atendimento pela rede pública municipal.

Art. 5º As despesas com a execução desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor a partir da data de sua publicação.”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com o nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A instituição do programa Bolsa Creche destinado a prestar auxílio financeiro às mães que tenham filhos em idade de educação infantil nas despesas com creche e prestação de serviço similar, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, porque disciplina programa governamental e o trânsito no município.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita à disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da criação do programa “Bolsa Creche invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação e implantação do programa “Bolsa Creche”. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar, aqui, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto, nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao regulamentar, ainda que parcialmente um serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Criar programas e disciplinar serviços públicos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida, ao instituir o Programa “Bolsa Creche impõe encargos financeiros ao Município, não indicando especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.

Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 7.279, 12 de junho de 2014, do Município de Guarulhos.

 

              São Paulo, 15 de setembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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