Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2125874-73.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Piquete

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Piquete

 

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 1.993, de 25 de junho de 2014, do Município de Piquete, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o incentivo ao cultivo das plantas ‘Citronela’ e ‘Crotalária’, como método natural de combate à dengue e dá outras providências”.

2)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

3)     Mérito. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). 

4)     Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Prefeita de Piquete, tendo como alvo a Lei nº 1.993, de 25 de junho de 2014, do Município de Piquete, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o incentivo ao cultivo das plantas ‘Citronela’ e ‘Crotalária’, como método natural de combate à dengue e dá outras providências”.

Sustenta a requerente (fls. 01/09) que a lei é inconstitucional por violação ao art. 42 da Lei Orgânica do Município de Piquete, os arts. 15 e 16, da Lei Complementar Federal nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), os arts. 4º e 61, § 13, da Lei Federal nº 12.651/2012 (Código Florestal), bem como o princípio da separação e independência dos poderes e também o princípio da reserva de iniciativa. Segundo consta da inicial, a lei padece de vício formal de inconstitucionalidade e “o planejamento, a direção, o controle e a execução de programa de governo, inserem-se na órbita de atribuições do Prefeito, que, no exercício desse mister, não pode sofrer ingerência da Câmara de Vereadores”.

A liminar foi deferida (fls. 25/26).

Devidamente notificado (fl. 35), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações (fls. 41/45).

Citado regularmente (fl. 33), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 37/39).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Constituição Federal ou com dispositivos da Lei Orgânica Municipal.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

 

Procede o pedido.

A Lei Municipal nº 1.993, de 25 de junho de 2014, do Município de Piquete, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o incentivo ao cultivo das plantas ‘Citronela’ e ‘Crotalária’, como método natural de combate à dengue e dá outras providências”, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, possui a seguinte redação:

“(...)

Artigo 1º - Fica instituído no Município de Piquete o Programa de incentivo ao cultivo da “Citronela” – Cymbopogon Winterianus – e da “Crotalária” – Crotalaria Juncea – como método natural de combate ao mosquito Aedes aegypti, responsável pela transmissão da Dengue, mediante divulgação sobre os benefícios do cultivo e manipulação das plantas nas residências, comércios, industrias e terrenos baldios.

Parágrafo Único – a mobilização da Campanha de que trata o caput do presente artigo ficará ao encargo do Poder executivo Municipal para constituir de acordo com os meios legais a distribuição de mudas da planta citronela e sementes da Crotalária concomitante as ações de combate ao Aedes Aegypti.

Artigo 2º - Fica ao encargo do poder Executivo Municipal realizar campanhas educativas nas escolas da rede municipal de ensino, informando sobre os benefícios da Citronela e Crotalária como método natural de combate a dengue, bem como a apresentação de sementes da Crotalária aos alunos.

Artigo 3º - Fica ao encargo do Município o plantio de mudas da Citronela e da Crotalária nas praças, canteiros de avenidas, nas margens de rios, riachos e demais áreas públicas.

Artigo 4º - O Chefe do Poder executivo Municipal regulamentará esta Lei no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data de sua publicação.

Artigo 5º - As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta de verba orçamentária própria.

Artigo 6º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A instituição de um programa municipal na área da saúde (combate à dengue) é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, porque disciplina programa governamental.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita à disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre, invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função de obrigar o Poder Executivo Municipal a realizar campanhas educativas nas escolas da rede municipal de ensino, informando sobre os benefícios da citronela e da crotalária como método natural de combate à dengue, bem como obrigar o plantio de mudas dessas plantas em áreas públicas, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação de programa de incentivo ao cultivo de citronela e crotalária, como método natural de combate ao mosquito responsável pela transmissão da dengue. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao regulamentar ainda que parcialmente um serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração, à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Criar programas e disciplinar serviços públicos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Ademais, para o efetivo cumprimento da lei impugnada, são necessárias diversas providências a cargo do Poder Executivo, como a realização de campanhas educativas nas escolas da rede municipal de ensino, a apresentação de sementes da crotalária aos alunos, bem como o plantio de mudas da citronela e da crotalária nas praças, canteiros de avenidas, nas margens de rios, riachos e demais áreas públicas. Por este motivo, a matéria de que cuida o ato normativo impugnado é de atribuição privativa do Poder Executivo.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida, ao impor ao Município o encargo de realizar campanhas educativas nas escolas da rede municipal de ensino, informando sobre os benefícios da citronela e crotalária como método natural de combate à dengue, bem como o plantio de mudas dessas respectivas plantas nas praças, canteiros de avenidas, nas margens de rios, riachos e demais áreas públicas, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1.993, de 25 de junho de 2014, do Município de Piquete.

 

                   São Paulo, 23 de setembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

aca/dcm