Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2126286-04.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Caraguatatuba

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Caraguatatuba

 

 

Ementa:

1.      Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 334 da Lei Complementar nº 42, de 14 de dezembro de 2011, do Município de Caraguatatuba, fruto de emenda parlamentar, que veda a abertura de postos de combustíveis em determinado trecho do município.

2.      A lei de ordenamento do uso e ocupação do solo tem como elemento formal obrigatório, para atribuição de legitimidade substancial ao uso do poder, a participação popular em todas as suas fases, bem como o planejamento técnico.

3.      Violação dos arts. 180, II, 181, § 1º e 191, Constituição Estadual.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, proposta pelo Prefeito Municipal de Caraguatatuba, tendo como alvo o art. 334 da Lei Complementar nº 42, de 14 de dezembro de 2011, do Município de Caraguatatuba, fruto de emenda parlamentar, que veda a abertura de postos de combustíveis em determinado trecho do município.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violação às regras do processo legislativo, pois o dispositivo legal impugnado decorreu de emenda parlamentar aditiva que não contou com estudos técnicos e com a participação popular, e por violar os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa. Daí, a alegação de violação aos arts. 170, IV, 180 e 191 da Constituição Estadual.

O pedido de liminar foi indeferido (fls. 170/171).

Notificado regularmente (fl. 176), o Presidente da Câmara Municipal de Caraguatatuba prestou informações a fls. 181/238.

Citado regularmente (fl. 179), o Procurador Geral do Estado afirmou tratar de matéria de interesse exclusivamente local, declinando de realizar a defesa do ato normativo impugnado (fls. 240/242).

Nestas condições, determinou-se que se manifestasse esta Procuradoria-Geral de Justiça.

O pedido deve ser julgado procedente.

O art. 334 da Lei Complementar nº 42, de 14 de dezembro de 2011, do Município de Caraguatatuba, que institui o plano diretor no município tem a seguinte redação:

“Art. 334. Fica vedada a abertura de postos de combustíveis no trecho compreendido entre a Avenida Brasil, no Bairro Sumaré até as Avenidas Marechal Floriano Peixoto, no Bairro Poiares e Rodrigues Alves, no Bairro Jardim Aruan.”

Referido dispositivo legal foi inserido, no projeto de lei do executivo, pela emenda parlamentar aditiva nº 34/2011, sem que tivessem sido apresentados estudos técnicos para a justificativa de sua vedação e sem a participação popular na sua discussão.

A matéria tratada no dispositivo legal impugnado alterou pontualmente o zoneamento do Município.

A simples restrição a determinado uso do solo em área específica do Município não implica violação aos princípios da livre concorrência e da livre iniciativa.

O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar os arts. 180, II, e 181, § 1º e 191 da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

(...)

Art. 180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

(...)

Art. 181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§ 1º. Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal.

Art. 191 - O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico. (g.n.)

O ato normativo impugnado, emenda parlamentar, modificou pontualmente o zoneamento, sem qualquer justificativa técnica e sem a participação popular na sua discussão e formulação.

A inconstitucionalidade decorre da violação da gestão do ordenamento urbanístico municipal, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 144, 180, II, e 181, § 1º).

Nos termos dos art.180, II e 181, § 1º, da Constituição Estadual, pode-se extrair que o planejamento e a participação comunitária são indispensáveis à validade e à legitimidade constitucional da legislação relacionada o uso do solo.

Todo e qualquer regramento relativo ao uso e ocupação do solo, seja ele geral ou individualizado (autorização para construção em determinado imóvel, alteração do uso do solo para determinada via, área ou bairro, etc.), deve levar em consideração a cidade em sua dimensão integral, dentro de um sistema de ordenamento urbanístico, razão pela qual a exigência de planejamento e estudos técnicos.

O art. 182, caput, da Constituição Federal disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

O inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê ainda a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

Em decorrência dos dispositivos acima apontados pode-se concluir que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular.

A norma urbanística é, por sua natureza, uma disciplina, um modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.

Para que a norma urbanística tenha legitimidade e validade deve decorrer de um planejamento que é um processo técnico instrumentalizado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos. Não pode decorrer da simples vontade do administrador, mas de estudos técnicos que visem assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (habitar, trabalhar, circular e recrear) e garantir o bem-estar de seus habitantes.

O planejamento não é mais um processo discricionário e dependente da mera vontade dos administradores. Não é um simples fenômeno técnico, mas um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais normativos, e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação concreta, de natureza executiva.

Prevista e exigida pela Constituição (Arts. 48, IV, 182 CF e art.180, II, da Constituição Estadual), tornou-se imposição jurídica a obrigação de elaborar planos, estudos quando se trate da produção normativa relativa ao estabelecimento de diretrizes e normas referentes ao desenvolvimento urbano.

A ordenação do uso e ocupação do solo é um dos aspectos substanciais do planejamento urbanístico. Preconiza uma estrutura orgânica para a cidade, mediante aplicação de instrumentos legais como o do zoneamento e de outras restrições urbanísticas que, como manifestação concreta do planejamento urbanístico, tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas no interesse do bem-estar da população, conformando-os ao princípio da função social.

A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

Não se admite, nesse quadro, modificações individualizadas, pontuais, casuísticas e dissociadas da estrutura sistêmica da utilização de todo o solo urbano. Caso contrário, tornaria inócuo e sem qualquer validade todo o planejamento e estudos realizados pelo Poder Executivo, para fins de elaboração e aprovação do Plano Diretor e da Lei do Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, pois qualquer iniciativa parlamentar poderia redundar na completa alteração de tudo o quanto planejado e decidido até então.

Além de planejamento e estudo técnico, o estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano devem possibilitar a participação comunitária. Trata-se de exigência da Constituição Estadual (arts. 180, II e 191).

Assim, a validade e legitimidade da norma urbanística, em virtude dos condicionamentos e das limitações que impõem à atividade e aos bens dos particulares e de seu objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, pressupõem participação comunitária em todas as fases de sua produção.

Assim, verifica-se a violação do disposto nos arts. 180, caput e inciso II; 181, caput e § 1º, e 191, da Constituição Estadual; bem como, por força do art. 144 da Constituição Estadual, dos princípios constitucionais estabelecidos nos arts. 182, caput e § 1º, e 30, inciso VIII, da Constituição Federal, por ter sido subtraída a possibilidade da participação popular na produção do dispositivo legal impugnada.

Pelo exposto, aguarda-se seja julgado procedente o pedido, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 334 da Lei Complementar nº 42, de 14 de dezembro de 2011, do Município de Caraguatatuba.

São Paulo, 15 de setembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

aca