Parecer em
Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo: 2137702-66.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Serrana
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Serrana
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 357, de 14 de abril de 2014, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a equiparação do cargo público de auxiliar de enfermagem com o de técnico de enfermagem e dá outras providências”.
2) Sob
o pálio do art. 125, § 2º, CF/88, não é admissível o contraste da lei local
impugnada com a Constituição Federal ou normas infraconstitucionais, dado que o
exclusivo parâmetro da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal é
a Constituição Estadual.
3)
A disciplina da remuneração e a ampliação de
direitos e vantagens dos servidores públicos é matéria inserida na reserva de
iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Ademais, padece de inconstitucionalidade
a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos
gastos públicos. Violação dos arts. 5º,
24, § 2º, 1 e 4, 25, 47, II, XI e XIV, 144, 174 e 176, I da Constituição do
Estado.
4)
Vedação à vinculação de quaisquer espécies
remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público. Art.
115, XV da Constituição Estadual. Procedência do pedido.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Complementar nº 357, de 14 de abril de 2014, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a equiparação do cargo público de auxiliar de enfermagem com o de técnico de enfermagem e dá outras providências”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes e estabelecimento de equiparação salarial. Daí a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º; 24, § 2º, 4, 47, II e XIV da Constituição Estadual e art. 37, XIII da Constituição Federal.
O pedido de liminar foi deferido para a suspensão (fls. 20/22).
Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações a fls. 26/28.
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
PRELIMINARMENTE
Observo que não houve a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado para a defesa do ato normativo impugnado.
A participação do Procurador-Geral do Estado no processo de controle da constitucionalidade é imposição do art. 90, § 2º, da Constituição Paulista.
Assim, requer seja citado o Procurador-Geral do Estado como determinado a fls. 20/22.
NO MÉRITO
Procede o pedido.
A Lei Complementar nº 357, de 14 de abril de 2014, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após veto do Poder Executivo, tem a seguinte redação:
Inicialmente, oportuno assinalar que nos termos do pálio do art. 125, § 2º da Constituição Federal, não é admissível o contraste da lei local impugnada com a Constituição Federal ou normas infraconstitucionais, dado que o exclusivo parâmetro da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal é a Constituição Estadual.
Desta forma, deixa-se de analisar a alegação de violação ao art. art. 37, XIII da Constituição Federal.
O ato normativo impugnado apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar a reserva de iniciativa do Poder Executivo e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4, art. 47, II e XIV, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Artigo 24 - A iniciativa das leis
complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa,
ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça
e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
(...)
§2º - Compete, exclusivamente, ao
Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
1 - criação e extinção de cargos,
funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a
fixação da respectiva remuneração;
(...)
4 - servidores públicos do Estado,
seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
(...)
Artigo 47
- Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições
previstas nesta Constituição:
(...)
II
- exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da
administração estadual;
(...)
XIV
- praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do
Executivo;
(...)
Art. 144 – Os Municípios com
autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.”
Verifica-se que a lei municipal impugnada, ao instituir equiparação salarial entre os cargos públicos de auxiliar de enfermagem e do técnico de enfermagem, tratou de matéria relativa à remuneração e regime jurídico do funcionalismo público.
Desta forma, a lei de iniciativa parlamentar revela-se invasiva da esfera da iniciativa privativa do Poder Executivo.
O processo legislativo, compreendido pelo conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes.
O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.
Nesse diapasão, cumpre mencionar que a iniciativa legislativa, ato este que deflagra o processo de produção normativa, pode ser geral ou reservada (privativa).
O ato normativo impugnado, de
iniciativa parlamentar, cuidou de matéria relativa à remuneração e regime
jurídico de servidores públicos, cuja iniciativa, ante previsão constitucional,
cabe ao Chefe do Executivo.
A propósito, a Constituição
Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis
que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos
públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores
públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, 4), regramento
este sujeito à observância pelos municípios por força do art. 144 da
Constituição Paulista (princípio da simetria).
Assim, quando o Legislativo municipal edita lei disciplinando matéria relativa a equiparação salarial, como ocorre no caso, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador, violando, assim, o princípio da separação de poderes.
A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da reserva
de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, prevista na Constituição
Paulista e aplicável aos entes municipais (arts.
24, § 2°, 1 e 4; 144).
Nesse
sentido, confira-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
“INCONSTITUCIONALIDADE.
Ação direta. Lei nº 740/2003, do Estado do Amapá. Competência legislativa.
Servidor Público. Regime jurídico. Vencimentos. Acréscimo de vantagem
pecuniária. Adicional de Desempenho a certa classe de servidores.
Inadmissibilidade. Matéria de iniciativa exclusiva do Governador do Estado,
Chefe do Poder Executivo. Usurpação caracterizada. Inconstitucionalidade formal
reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, alínea ‘a’, da CF, aplicáveis aos
estados. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei que, de
iniciativa parlamentar, conceda ou autorize conceder vantagem pecuniária a
certa classe de servidores públicos” (STF, ADI 3.176-AP, Tribunal Pleno, Rel.
Min. Cezar Peluso, 30-06-2011, v.u., DJe 05-08-2011).
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE.
CONCESSÃO DE VANTAGENS PECUNIÁRIAS A SERVIDORES PÚBLICOS. SIMETRIA. VÍCIO DE
INICIATIVA. 1. As regras de processo legislativo previstas na Carta Federal
aplicam-se aos Estados-membros, inclusive para criar ou revisar as respectivas
Constituições. Incidência do princípio da simetria a limitar o Poder
Constituinte Estadual decorrente. 2. Compete exclusivamente ao Chefe do Poder
Executivo a iniciativa de leis, lato sensu, que cuidem do regime jurídico e da
remuneração dos servidores públicos (CF artigo 61, § 1º, II, ‘a’ e ‘c’ c/c
artigos 2º e 25). Precedentes. Inconstitucionalidade do § 4º do artigo 28 da
Constituição do Estado do Rio Grande do Norte. Ação procedente” (STF, ADI
1.353-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ
16-05-2003, p. 89).
A propósito, convém destacar as seguintes decisões desse Colendo Órgão Especial:
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO DE INICIATIVA. Lei municipal de autoria de
membro do Poder Legislativo que dispõe sobre a concessão de auxílio-alimentação
aos servidores. Matéria inserida na reserva de iniciativa do Chefe do
Executivo. Separação dos Poderes. Ofensa aos art. 5º, "caput", da
CESP, e a 2° da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa.
Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADI nº
0269127-61.2011.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21 de março de
2012)
Ação Direta
de Inconstitucionalidade. Lei do Município de Ituverava, de iniciativa parlamentar,
que concede aos servidores municipais 1/30 (um trinta avós) de seus vencimentos
mensais, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício. Invasão da
competência reservada ao Chefe do Poder Executivo. Ingerência na Administração
do Município. Vício de iniciativa configurado. Violação ao Princípio da
Separação de Poderes. Criação de despesas sem a indicação da fonte de custeio.
Violação dos artigos 5o, 24, §2°, 1 e 4, 25, 47, II e XIV, 111, 128 e 144, da
Constituição do Estado. Precedentes. Inconstitucionalidade reconhecida.
Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Art. 27, da Lei
n° 9.868/99. Ação procedente, com modulação dos efeitos. (ADI nº
0022157-16.2013.8.26.0000, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 24 de julho de 2013)
AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE - Emenda n° 37, de 7 de março de 2012, que deu nova
redação ao parágrafo único do art. 88 da Lei Orgânica do Município de
Ituverava, editada a partir de proposta parlamentar, que dispôs acerca dos
requisitos para incorporação de vencimentos percebidos no exercício transitório
de cargos de remuneração superior por servidores públicos municipais -
Legislação que versa questão atinente ao regime jurídico do funcionalismo
local, afeta à competência privativa do Chefe do Poder Executivo local -
Inobservância da iniciativa reservada conferida ao Prefeito que acabou por
implicar em afronta ao princípio da separação dos poderes - Previsão legal,
ademais, que acarreta o evidente incremento das despesas do Município com o
pagamento dos servidores, sem que se tivesse declinado a respectiva fonte de
custeio - Vícios de inconstitucionalidade aduzidos na exordial que, destarte,
ficaram evidenciados na espécie, por afronta aos preceitos contidos nos artigos
5º, 24, § 2º, "4", 25 e 144, todos da Constituição do Estado de São
Paulo - Precedentes desta Corte - Servidores públicos beneficiados com a
disposição legal questionada que perceberam as vantagens ali previstas de
boa-fé, não se mostrando razoável impor-se a repetição daqueles valores ~
Presença, destarte, de relevante interesse social na espécie, que recomenda a
modulação dos efeitos da presente declaração de inconstitucionalidade, a partir
da concessão da medida liminar nestes autos, por aplicação da regra contida no
art. 27 da Lei Federal n° 9868/99 - Ação Direta de Inconstitucionalidade
julgada procedente, com modulação dos efeitos. (ADI nº
0022160-68.2013.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. 24 de julho de
2013)
Reajustar vencimentos, ampliar direitos e garantias do
servidor público, e dispor sobre equiparação entre cargos públicos –
precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do
Chefe do Executivo.
Cabe ressaltar ainda que nos termos do art. 115, XV da Constituição Estadual:
(...)”
Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
(...)
XV - é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público, observado o disposto na Constituição Federal;
(...)”
A Constituição Estadual proíbe a equiparação remuneratória entre cargos públicos.
Não se tem identidade entre os cargos públicos de auxiliar de enfermagem e técnico de enfermagem, razão pela qual estão submetidos, no que se refere à remuneração prestada pelo Município, a espécies distintas, razão pela qual, até mesmo para evitar lesão à ordem e à economia públicas, não é admissível a equiparação remuneratória nos termos do art. 115, XV da Constituição Estadual.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto, bem como a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
Ao proceder a equiparação salarial entre cargos públicos, a lei combatida não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes, porquanto ordena novos dispêndios financeiros à Administração, cuja quitação demanda meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.
Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
Diante
do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 357,
de 14 de abril de 2014, do Município de Serrana.
São Paulo, 11 de setembro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aca