Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2137722-57.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Serrana

Requerida: Câmara Municipal de Serrana

 

Ementa

1.      Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 1.611, de 11 de dezembro de 2013, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre as normas gerais relativas aos concursos públicos e processos seletivos no âmbito do Município de Serrana e dá outras providências.

2.      Parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com legislação infraconstitucional.

3.      O Chefe do Poder Executivo tem iniciativa legislativa reservada para a criação e extinção de cargos públicos (art. 24, § 2º, 1 e 4, CE; art. 61, § 1º, II, a e c, CF). Não se situa no domínio da reserva da Administração ou da discricionariedade administrativa o estabelecimento de regras gerais para os concursos públicos e processos seletivos.

4.      Art. 3º, II e Parágrafo único I, da Lei Complementar nº 1.611, de 11 de dezembro de 2013, do Município de Serrana, que condiciona a abertura do concurso público a parecer de 03 servidores efetivos vinculados à unidade administrativa para a área de contratação e que impõe para os concursos públicos e processos seletivos no ano eleitoral a formação de comissão especial, composta por 03 membros da sociedade civil e 03 membros da Câmara Municipal. Violação a autonomia do Poder Executivo. A abertura de concurso público, bem como a definição, eleição e constituição de órgão para sua execução encontra-se na reserva da administração, cuja direção superior cabe ao Chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II e XIV, e 144 da Constituição do Estado).

5.      Procedência parcial do pedido.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Serrana, tendo por objeto a Lei Complementar nº 1.611, de 11 de dezembro de 2013, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre as normas gerais relativas aos concursos públicos e processos seletivos no âmbito do Município de Serrana e da outras providências.

Sustenta o requerente, em síntese, que o ato normativo de iniciativa parlamentar é inconstitucional por vício de iniciativa e por invadir atribuições do Poder Executivo, violando assim o princípio da separação dos poderes. Daí, afirmar violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 4, 47, II e XIX e 144 da Constituição Estadual além da Lei complementar Municipal 200/2012.

O pedido de liminar foi deferido para suspensão da eficácia do ato normativo impugnado (fls. 27/28).

Notificado (fl. 34), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 36/37, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Citado regularmente (fl. 41), o Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 43/45).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede parcialmente o pedido.

A Lei Complementar nº 1.611/2013, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após derrubada do veto do Executivo, tem a seguinte redação:

 

Inicialmente, oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual, consoante dispõe o art. 125, § 2º, da Constituição Federal, razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com a legislação infraconstitucional, no caso a Lei complementar Municipal nº 300/2012.

Com ressalva ao disposto no art. 3º, II e parágrafo único, I do ato normativo impugnado, não se verifica violação aos parâmetros da Constituição Estadual indicados na inicial.

Deve-se ressaltar, inicialmente, que a lei – reiterada aquela ressalva - não tratou de nenhuma matéria cuja iniciativa legislativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo. Tampouco houve violação ao princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.

A matéria sujeita à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo, por ser direito estrito, deve ser interpretada restritivamente. Nesse sentido é o entendimento pacífico do Colendo STF, ao interpretar o art. 61, § 1º, da CR/88, como se infere dos precedentes a seguir:

“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no art. 61 da Constituição do Brasil – matérias relativas ao funcionamento da administração pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Precedentes. (ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 2-4-2007, Plenário, DJE de 15-8-2008.)

(...)

iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. (...) (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001, g.n.)

(...)”

No mesmo sentido os seguintes julgados: ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-2006, Plenário, DJ de 17-11-2006; RE 328.896, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 9-10-2009, DJE de 5-11-2009; ADI 2.392-MC, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 28-3-2001, Plenário, DJ de 1º-8-2003; ADI 2.474, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 19-3-2003, Plenário, DJ de 25-4-2003; ADI 2.638, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 9-6-2006.

As matérias em que há iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, em conformidade com a Constituição do Estado de São Paulo, são indicadas taxativamente: (a) criação e extinção de cargos e funções na administração direta ou indireta autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração; (b) criação de órgãos públicos; (c) organização da Procuradoria-Geral do Estado e da Defensoria Pública; (d) servidores públicos e seu regime jurídico; (e) regime jurídico dos servidores militares; (e) criação, alteração e supressão de cartórios.

Isso decorre do art. 24, § 2º, ns. 1, 2, 3, 4, 5, 6, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da própria Carta Estadual (configurando reprodução das diretrizes contidas no art. 61, § 1º, da Constituição Federal).

A leitura da lei impugnada permite ver claramente que ela não trata de nenhum desses assuntos, com ressalva ao disposto no art. 3º, II e parágrafo único, I.

Não há, no caso, qualquer vestígio nem mesmo tênue de desrespeito ao princípio da separação de poderes, estabelecido no art. 5º da Constituição do Estado (que reproduz o art. 2º da Constituição Federal).

Só seria possível afirmar a ocorrência de quebra da separação de poderes se a lei interferisse diretamente na gestão administrativa.

Há interferência direta do legislador na atividade do administrador, como tem reiteradamente reconhecido esse Colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, em casos de leis de iniciativa parlamentar que, por exemplo: (a) criam programas de governo a serem seguidos pelo Poder Executivo; (b) impõem ou vedam a prática de atos administrativos (contratos, permissões, concessões, autorizações, etc.); (c) concedem nomes a prédios públicos, praças ou vias públicas; (d) impõem a inserção de informações em comunicados enviados aos munícipes relativos ao lançamento de impostos; (e) criam sistemas de controle orçamentário, com imposição de envio periódico de informações do Executivo ao Legislativo, sem que haja correspondência com o modelo previsto na Constituição da República e aplicável por força do princípio constitucional da simetria; entre outros.

Em síntese: só é possível identificar a ocorrência da quebra do princípio da separação de poderes quando da lei resulta interferência direta por parte do legislador na atividade do administrador.

Não é isso o que se verifica no caso em exame.

O art. 5º da Constituição Estadual cuida do princípio da separação dos poderes. O art. 24, § 2º da Constituição Estadual, trata de matérias de competência privativa do Governador do Estado, dentre as quais as que disponham sobre a criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração (item 1) e servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (item 4).

Dispor sobre normas gerais acerca de concurso público e processo seletivo a ser observado pela administração pública direta e indireta do Município, não se trata de ingerência do Poder Legislativo na esfera de atribuição do Poder Executivo com consequente violação ao princípio da separação dos poderes.

Importante ressaltar que a iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca.

Estabelecer regras gerais para a realização de concurso público e processo seletivo, com a finalidade de resguardar os princípios da publicidade, transparência e isonomia como se verificou na presente hipótese, trata-se de atividade que não se insere na criação de cargos públicos nem mesmo acerca do regime jurídico dos servidores públicos.

Importante ainda ressaltar que a disciplina legislativa antecede ao próprio provimento do cargo não dispondo acerca do regime jurídico do servidor.

Em hipótese semelhante, onde se dispunha acerca de normas do concurso público, o Supremo Tribunal Federal decidiu que:

"O diploma normativo em causa, que estabelece isenção do pagamento de taxa de concurso público, não versa sobre matéria relativa a servidores públicos (§ 1º do art. 61 da CF/1988). Dispõe, isso sim, sobre condição para se chegar à investidura em cargo público, que é um momento anterior ao da caracterização do candidato como servidor público. Inconstitucionalidade formal não configurada." (ADI 2.672, Rel. p/ o ac. Min. Ayres Britto, julgamento em 22-6-2006, Plenário, DJ de 10-11-2006.) No mesmo sentido: AI 682.317-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 14-2-2012, Primeira Turma, DJE de 22-3-2012. invadindo

A locução constitucional “regime jurídico dos servidores públicos” corresponde ao conjunto de normas que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes.

O ato normativo não disciplinou matéria relativa ao conjunto de normas jurídicas que dispõem acerca dos direitos, deveres, vantagens, competências, dos servidores públicos. Apenas disciplinou aspectos gerais relativos ao concurso público, incorporando em seu texto princípios constitucionais, legais e jurisprudenciais acerca da matéria.

A propósito do tema, Hely Lopes Meirelles ensina que Os concursos não tem forma ou procedimento estabelecido na Constituição, mas é de toda conveniência que sejam precedidos de uma regulamentação legal ou administrativa, amplamente divulgada, para que os candidatos se inteirem de suas bases e matérias exigidas. (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed. at., Malheiros 2007, pag. 437).

A disposição acerca de normas gerais de concurso público não se confunde com a criação de cargos, nem mesmo com o regime jurídico dos servidores públicos, mas apenas disciplina aspectos relacionados a publicidade, competitividade, transparência que devem nortear o processo de seleção dos candidatos ao cargo público.

De outro lado, dispor acerca de normas gerais sobre concurso público não se encontra inserida dentre as matérias de competência privativa previstas nos art. 24, § 2º, e 47 da Constituição Estadual.

O estabelecimento de normas gerais para disciplina do concurso público e processo seletivo para acesso aos cargos, funções e empregos públicos não se trata de privativa atividade administrativa (ou executiva), mas sim de função de Estado, razão pela qual a iniciativa parlamentar neste sentido não viola o princípio da separação de poderes.

Não se trata de atividade de organização da administração pública, mas de disciplina para o procedimento seletivo de acesso ao serviço público em geral, inclusive do Poder Legislativo.

O poder executivo nos limites das normas gerais poderá em seu regulamento eleger os requisitos de participação, critérios de julgamento, características e conteúdos das provas, traduzindo o exercício de sua competência administrativa discricionária.

A reserva legislativa do Executivo, prevista no art. 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição Estadual, refere-se tão só à criação e extinção de cargos, funções e empregos no serviço público e regime jurídico dos servidores. Isso significa que a lei pode enunciar termos, condições e especificações, no interior dos quais procederá o chefe do Executivo para a seleção dos indivíduos mais capacitados para o provimento dos cargos públicos.

Há que se ponderar, nesta quadra, a diferença entre requisitos para o provimento de cargos públicos - matéria situada na iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (STF, ADI 2.873-PI, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 20-09-2007, m.v., DJe 09-11-2007, RTJ 203/89) - e condições para o provimento de cargos públicos - que não se insere na aludida reserva, e está no domínio da iniciativa legislativa comum ou concorrente entre Poder Legislativo e Poder Executivo – porque não se refere ao acesso ao cargo público, mas, à aptidão para o seu exercício.

No entanto, verifica-se a inconstitucionalidade de dois dispositivos do ato normativo impugnado: o art. 3º, II que exige que a necessidade do preenchimento de vaga seja comprovado mediante parecer de 03 servidores efetivos vinculados a unidade administrativa para a área de contratação e o art. 3º, parágrafo único, I que impõe para os concursos públicos e processos seletivos no ano eleitoral a formação de comissão especial, composta por 03 membros da sociedade civil e 03 membros da Câmara municipal com o objetivo de acompanhamento de todos os atos vinculados a realização do concurso público ou processo seletivo.

 Tais dispositivos legais violam a autonomia do Poder Executivo Municipal, dirigido pelo Prefeito Municipal, que para a gestão administrativa não pode ficar vinculado a manifestação de servidor subalterno. Ademais, é a ele que cabe exercer, com o auxílio dos Secretários, a direção superior da administração municipal, onde se insere as decisões a cerca da criação de cargos e abertura de concurso para o respectivo provimento.

De outro lado, o concurso público é procedimento conduzido por autoridade administrativa da área, setor ou órgão para o qual se destina a seleção do candidato mais capacitado para o provimento do cargo público. Geralmente é conduzido por comissão ou banca especializada dotada de imparcialidade objetiva.

Encontra-se na esfera da discricionariedade administrativa a eleição não só de integrantes de comissão do concurso, bem como de outros mecanismos ou órgãos que possam assegurar a observância aos princípios da objetividade, isonomia, impessoalidade, legalidade, publicidade e controle público que devem informar o procedimento destinado a selecionais os indivíduos mais capacitados para o provimento dos cargos público.

Assim, a obrigatoriedade imposta pelo Legislativo da constituição de comissão composta por representantes da sociedade civil e da Câmara Municipal, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional.

A matéria disciplinada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A organização do concurso público, no que se refere aos órgãos que atuação em tal procedimento, é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da fixação de restrições e condições para abertura de concurso público, bem como imposição de constituição comissão para acompanhamento, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito dos mecanismos e órgãos que devem participar de procedimento administrativo do concurso público. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

Desta forma, o pedido deve ser julgado parcialmente procedente, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 3º, II e do parágrafo único, da Lei Complementar nº 1.611, de 11 de dezembro de 2013, do Município de Serrana,

São Paulo, 07 de outubro de 2014.

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

 

 

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