Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo: 2137743-33.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Serrana

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Serrana

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1.638, de 28 de abril de 2014, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza a concessão de folga para o servidor municipal na data de seu aniversário e dá outras providências”.

2)      A disciplina do regime jurídico de servidor público é matéria inserida na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, nºs 1 e 4, 47, incisos II e XIV, e 144, da Constituição do Estado. 

3)      Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 1.638, de 28 de abril de 2014, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza a concessão de folga para o servidor municipal na data de seu aniversário e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes, com a sua consequente inconstitucionalidade formal (fls. 01/06). Daí a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º; 24, § 2º, nº 4, e 47, incisos II e XIV, da Constituição Estadual.

O pedido de liminar foi deferido (fls. 17/18).

Devidamente notificado (fl. 22), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações a fls. 24/25.

Citado (fl. 30), o Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo impugnado (fls. 32/34).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

A Lei nº 1.638, de 28 de abril de 2014, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após veto do Poder Executivo, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º - Fica autorizada a concessão de folga aos servidores públicos da administração direta ou indireta do Município de Serrana, inclusive aos funcionários de empresas terceirizadas que prestam serviços à administração, na data de seu aniversário, sem prejuízo de seus vencimentos.

Parágrafo único – O servidor somente poderá usufruir da folga prevista neste artigo no dia exato de seu aniversário, sendo vedada a transferência para qualquer outra data.

Art. 2º - Eventuais despesas com a execução desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 3º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.

(...)”

O ato normativo impugnado apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar a reserva de iniciativa do Poder Executivo e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 24, § 2º, nºs 1 e 4, e art. 47, incisos II e XIV, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

(...)

Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

Verifica-se que a lei municipal impugnada, ao instituir normas quanto à concessão de folgas de servidor público municipal e prestadores de serviços, tratou de matéria relativa ao regime jurídico de servidor público.

Desta forma, a lei de iniciativa parlamentar revela-se invasiva da esfera da iniciativa privativa do Poder Executivo.

O processo legislativo, compreendido pelo conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

Nesse diapasão, cumpre mencionar que a iniciativa legislativa, ato este que deflagra o processo de produção normativa, pode ser geral ou reservada (privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, cuidou de matéria relativa ao regime jurídico de servidores públicos, cuja iniciativa, ante previsão constitucional, cabe ao Chefe do Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, nº 4), regramento este sujeito à observância pelos municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista (princípio da simetria).

Assim, quando o Legislativo municipal edita lei disciplinando matéria relativa à concessão de folgas, como ocorre no caso, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador, violando, assim, o princípio da separação de poderes.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos entes municipais (arts. 24, § 2°, nºs 1 e 4; 144).

Nesse sentido, confira-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 740/2003, do Estado do Amapá. Competência legislativa. Servidor Público. Regime jurídico. Vencimentos. Acréscimo de vantagem pecuniária. Adicional de Desempenho a certa classe de servidores. Inadmissibilidade. Matéria de iniciativa exclusiva do Governador do Estado, Chefe do Poder Executivo. Usurpação caracterizada. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, alínea ‘a’, da CF, aplicáveis aos estados. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei que, de iniciativa parlamentar, conceda ou autorize conceder vantagem pecuniária a certa classe de servidores públicos” (STF, ADI 3.176-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 30-06-2011, v.u., DJe 05-08-2011).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. CONCESSÃO DE VANTAGENS PECUNIÁRIAS A SERVIDORES PÚBLICOS. SIMETRIA. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. As regras de processo legislativo previstas na Carta Federal aplicam-se aos Estados-membros, inclusive para criar ou revisar as respectivas Constituições. Incidência do princípio da simetria a limitar o Poder Constituinte Estadual decorrente. 2. Compete exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis, lato sensu, que cuidem do regime jurídico e da remuneração dos servidores públicos (CF artigo 61, § 1º, II, ‘a’ e ‘c’ c/c artigos 2º e 25). Precedentes. Inconstitucionalidade do § 4º do artigo 28 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte. Ação procedente” (STF, ADI 1.353-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 16-05-2003, p. 89).

A propósito, convém destacar as seguintes decisões desse Colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO DE INICIATIVA. Lei municipal de autoria de membro do Poder Legislativo que dispõe sobre a concessão de auxílio-alimentação aos servidores. Matéria inserida na reserva de iniciativa do Chefe do Executivo. Separação dos Poderes. Ofensa aos art. 5º, "caput", da CESP, e a 2° da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADI nº 0269127-61.2011.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21 de março de 2012)

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei do Município de Ituverava, de iniciativa parlamentar, que concede aos servidores municipais 1/30 (um trinta avós) de seus vencimentos mensais, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício. Invasão da competência reservada ao Chefe do Poder Executivo. Ingerência na Administração do Município. Vício de iniciativa configurado. Violação ao Princípio da Separação de Poderes. Criação de despesas sem a indicação da fonte de custeio. Violação dos artigos 5o, 24, §2°, 1 e 4, 25, 47, II e XIV, 111, 128 e 144, da Constituição do Estado. Precedentes. Inconstitucionalidade reconhecida. Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Art. 27, da Lei n° 9.868/99. Ação procedente, com modulação dos efeitos. (ADI nº 0022157-16.2013.8.26.0000, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 24 de julho de 2013)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Emenda n° 37, de 7 de março de 2012, que deu nova redação ao parágrafo único do art. 88 da Lei Orgânica do Município de Ituverava, editada a partir de proposta parlamentar, que dispôs acerca dos requisitos para incorporação de vencimentos percebidos no exercício transitório de cargos de remuneração superior por servidores públicos municipais - Legislação que versa questão atinente ao regime jurídico do funcionalismo local, afeta à competência privativa do Chefe do Poder Executivo local - Inobservância da iniciativa reservada conferida ao Prefeito que acabou por implicar em afronta ao princípio da separação dos poderes - Previsão legal, ademais, que acarreta o evidente incremento das despesas do Município com o pagamento dos servidores, sem que se tivesse declinado a respectiva fonte de custeio - Vícios de inconstitucionalidade aduzidos na exordial que, destarte, ficaram evidenciados na espécie, por afronta aos preceitos contidos nos artigos 5º, 24, § 2º, "4", 25 e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo - Precedentes desta Corte - Servidores públicos beneficiados com a disposição legal questionada que perceberam as vantagens ali previstas de boa-fé, não se mostrando razoável impor-se a repetição daqueles valores ~ Presença, destarte, de relevante interesse social na espécie, que recomenda a modulação dos efeitos da presente declaração de inconstitucionalidade, a partir da concessão da medida liminar nestes autos, por aplicação da regra contida no art. 27 da Lei Federal n° 9868/99 - Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, com modulação dos efeitos. (ADI nº 0022160-68.2013.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. 24 de julho de 2013)

Conceder folga ao servidor público municipal – precisamente o que se verifica na hipótese em exame – é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.638, de 28 de abril de 2014, do Município de Serrana. 

 

São Paulo, 30 de outubro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

mao/dcm