Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 2141004-06.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Hortolândia

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Hortolândia  

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 2.994, de 23 de junho de 2014, que “Dispõe sobre transporte de animais domésticos no serviço público municipal de transporte coletivo de passageiros no Município de Hortolândia”, bem como Lei n° 2.975, de 23 de junho de 2014, que “Inclui no Calendário Oficial o Dia Municipal da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial”, ambas do Município de Hortolândia e de iniciativa parlamentar.

2)      Preliminar. Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. O contencioso estadual de constitucionalidade de ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, não cabendo alegação de ofensa à Constituição Federal.

3)      Inconstitucionalidade. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucionais as leis acima mencionadas, de iniciativa parlamentar, pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).

4)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 2.994, de 23 de junho de 2014, que “Dispõe sobre transporte de animais domésticos no serviço público municipal de transporte coletivo de passageiros no Município de Hortolândia”, bem como Lei n° 2.975, de 23 de junho de 2014, que “Inclui no Calendário Oficial o Dia Municipal da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial”, esta e aquela do Município de Hortolândia e de iniciativa parlamentar.

Sustenta o requerente que as leis são inconstitucionais por apresentarem vício de iniciativa, violarem o princípio da separação dos poderes e a reserva da administração, bem ainda por criarem despesas sem indicação da fonte de recurso. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, 25, 47, II, XIV e XVIII, 144 e 176, I, da Constituição Estadual, bem como aos artigos 2º, 61, § 1º, inciso II, alínea “b”, 29, e 84, inciso II, da Constituição Federal.

A princípio, foi parcialmente deferida a liminar, para suspender, com efeito ex nunc, apenas a eficácia da Lei nº 2.994, de 23 de junho de 2014, do município de Hortolândia (fls. 21/23).

Em momento subsequente, o requerente peticionou pleiteando a reconsideração do despacho de fls. 21/23, a fim de suspender a eficácia também do artigo 2º, da Lei nº 2.975, de 23 de junho de 2014 (fl. 28), tendo sido deferido o pedido pelo MM. Juiz (fl. 30/31).

Citado regularmente (fl. 162), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar-se de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 164/166).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal de Hortolândia apresentou informações às fls. 40/54, oportunidade em que defendeu a validade dos atos normativos impugnados, ressaltando ter ocorrido controle de constitucionalidade prévio pelo Poder Legislativo.

Afirmou, outrossim, que o Prefeito Municipal não teria razões para vetar o artigo 2º, da Lei Municipal nº 2.975, de 23 de junho de 2014, tendo em vista o teor das Leis Municipais nº 2.885, de 26 de novembro de 2013, e nº 2.127, de 25 de setembro de 2008, de Hortolândia, de autoria do Poder Executivo, que tratam da finalidade e competência do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial.

Isso porque, considerando a redação do artigo 2º da Lei Municipal nº 2.975/2014, de Hortolândia, teriam sido atribuídas competências afins às do artigo 1º da Lei nº 2.885/2013, do mesmo Município. Asseverou, inclusive, que o mencionado artigo 2º não discriminou quais seriam as ações do Conselho Municipal, razão pela qual não haveria ingerência nas funções do Poder Executivo.

Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

PRELIMINAR: LIMITES DA COGNIÇÃO DO TRIBUNAL EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL

Cumpre registrar que, tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal em face da Constituição do Estado, não podem ser examinadas as alegações de conflito entre a lei impugnada e outras leis municipais, estaduais ou federais, bem como entre ela e a Constituição Federal.

Em outros termos, apenas a Constituição do Estado é parâmetro válido, no âmbito do processo objetivo perante o Tribunal de Justiça, para exame da inconstitucionalidade ou não da lei municipal.

Nesses limites será feira a análise da alegada inconstitucionalidade.

MÉRITO

No mérito, procede o pedido.

A Lei nº 2.994, de 23 de junho de 2014, que “Dispõe sobre transporte de animais domésticos no serviço público municipal de transporte coletivo de passageiros no Município de Hortolândia”, tem a seguinte redação:

“ (...)

Art. 1º É permitido o transporte de animal doméstico no serviço público municipal coletivo de passageiros mediante a cobrança de tarifa regular da linha.

Parágrafo único. Se disponível para utilização, a cobrança da tarifa regular da linha pelo transporte do animal dará direito à utilização de assento para acomodação da caixa de transporte.

Art. 2º É impedido o transporte de animal que por sua espécie, ferocidade, peçonha ou saúde, comprometa o conforto e a segurança do veículo, de seus ocupantes ou de terceiros.

Art. 3º O transporte de animal doméstico vivo, de pequeno porte, será permitido se forem atendidas as seguintes condições:

I – que o animal possua no máximo 10 quilos;

II – o animal deverá estar acomodado em caixa específica de transporte, recipiente de fibra de vidro ou material similar resistente, com porta de contenha travamento e que impeça a sua saída, sem saliências ou protuberâncias, à prova de vazamentos, isento de dejetos, água e alimentos e que garanta a segurança, a higiene e o conforto deste e dos passageiros, não cabendo ao transportador qualquer responsabilidade a que não der causa, pela integridade física do animal no período de transporte;

III – que o carregamento e descarregamento do animal doméstico sejam realizados sem prejudicar a comodidade e a segurança dos passageiros e de terceiros, e sem acarretar alteração no cumprimento do quadro de regime de funcionamento da linha.

Art. 4º Fica limitado a no máximo 04 (quatro) o número de animais a serem transportados a bordo do veículo, por viagem.

Art. 5º O não cumprimento pelas empresas que compõe o Serviço Coletivo Municipal de Passageiros das disposições contidas nos artigos anteriores acarretará sanção de natureza pecuniária, no valor de 500 (quinhentos) UFMH (Unidade Fiscal do Município de Hortolândia), a ser aplicada em dobro no caso de reincidência.

Art. 6º Esta lei entra em vigor na data da publicação. 

(...)”.

A Lei nº 2.975, de 23 de junho de 2014, por sua vez, “inclui no Calendário Oficial o Dia Mundial da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial”, estabelecendo:

“(...)

Art. 2º O evento será comemorado anualmente por meio de ações promovidas pelo Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial.

(...)”.

Os atos normativos impugnados, de iniciativa parlamentar, são verticalmente incompatíveis com nosso ordenamento constitucional por violarem o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pelas leis impugnadas encontram-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais. Senão vejamos.

A previsão de transporte de animais domésticos no serviço público municipal de transporte coletivo de passageiros, constante da Lei nº 2.994, de 23 de junho de 2014, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, justamente porque disciplina aspectos relativos a prestação dos serviços de transporte da urbe.

Ademais, a inclusão do “Dia Municipal da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial”, acompanhado da expressa determinação de que o evento deve ser comemorado por meio de ações promovidas pelo Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial, também consiste em disciplina pertinente à Administração Pública.

Isso porque aludido órgão público está vinculado ao Poder Executivo Municipal, em especial, à Secretaria de Chefia de Gabinete (art. 1º, da Lei nº 2.885, de 26 de novembro de 2013), e, sendo assim, cabe apenas ao Chefe do Poder Executivo estabelecer as respectivas incumbências.    

Dessa forma, o conteúdo das Leis nº 2.994, de 23 de junho de 2014, e nº 2.975, de 23 de junho de 2014, revela atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculada aos direitos fundamentais. Em outras palavras, disciplinam matérias privativas do Poder Executivo e inseridas na esfera do poder discricionário da administração.

Os diplomas normativos acima mencionados não cuidam, pois, de atividades sujeitas à disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não poderia, através de lei, ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa - como ocorre, no caso em exame, em que as leis de iniciativa parlamentar estabelecem atribuições ao Poder Executivo - viola o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da permissão quanto ao transporte de animal doméstico no serviço municipal coletivo de passageiros, mediante a cobrança de tarifa. Assim como também lhe cabe a fixação das atribuições e ações a serem efetivadas pelo Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial.

Embora relevantes as proposições, configuram, uma e outra, funções administrativas, fundadas em escolha política de gestão, em relação às quais é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada nas leis em análise encontram-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei n° 2.994, de 23 de junho de 2014, de Hortolândia, ao regulamentar um serviço público, viola, de um lado, o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 5º, 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo. Igualmente, a Lei nº 2.975, de 23 de junho de 2014, de Hortolândia.

Criar programas e disciplinar serviços públicos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Ademais, e não menos importante, as leis impugnadas criarão, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

De fato, a Lei nº 2.994, de 23 de junho de 2013, ao tratar do serviço público de transporte municipal, bem como a Lei nº 2.975, de 23 de junho de 2014, ao impor ao Conselho Municipal de Promoção e Igualdade Social obrigações, tendo em vista a comemoração do “Dia Mundial da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial”, não indicaram especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos. Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade das Leis nº 2.994, de 23 de junho de 2014, e nº 2.975, de 23 de junho de 2014, do Município de Hortolândia.

              São Paulo, 24 de novembro de 2014.

 

 Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

 

ef/mjap