Parecer em
Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo nº 2143979-98.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos
Requerido: Presidente
da Câmara Municipal de Guarulhos
Ementa:
Constitucional.
Administrativo. Trabalho. Contratação. Licitação. Lei n. 7.278/14, do Município
de Guarulhos. Invasão da competência normativa federal. Normas gerais de
licitação. Usurpação da Iniciativa
Privativa do Executivo Municipal. Violação
da separação de poderes e do princípio federativo. Inexistência de violação à igualdade,
razoabilidade, livre iniciativa e livre concorrência. Não observância de
violação ao art. 25 da CE. Procedência da ação.
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.278 de 12 de junho de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a reserva de vagas de trabalho para mulheres sentenciadas e egressas do sistema prisional ou acolhidas pela Coordenadoria das Mulheres na área de construção civil de obras públicas no Município de Guarulhos e dá outras providências."
2) Lei que versa sobre normas gerais de licitação e de natureza trabalhista. Violação da esfera de competência do legislador federal (arts. 1º, 18 e 22, I e XXVII, da CR), que viola o art. 144 da Constituição Estadual, norma que incorpora o princípio federativo e o esquema de repartição de competências.
3) Iniciativa parlamentar que agride competências privativas do Chefe do Poder Executivo (art. 47, II e XIV, Constituição Estadual), decorrentes do princípio da separação de poderes (art. 5º, Constituição Estadual). Encontra-se na reserva da administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo disciplinar a forma e condições para contratações de agentes públicos.
4) Inexistência de ofensa aos princípios da igualdade e razoabilidade. A situação especial da mulher sentenciada ou egressa do sistema prisional pode, em tese, reclamar especial atenção das autoridades estatais, a fim de viabilizar sua reinserção social. Destarte, o quadro fático relativo ao objeto da normativa vergastada revela a possibilidade de tratamento diferenciado por parte do legislador, não podendo se falar, portanto, em violação aos princípios indicados.
5) Não observância de ofensa aos princípios da livre iniciativa e livre concorrência. A imposição de requisitos às contratações de empresas pelo Poder Público, aplicáveis de forma genérica a todas as empresas interessadas no certame, por si só, não evidencia ofensa aos aludidos princípios, eis que as mencionadas previsões encontram respaldo na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR), bem como no art. 7º, XX, CF. Ademais, o interesse privado dos delegatários sucumbiria diante de sopesamento com o princípio da supremacia do interesse público, consubstanciado nas ações afirmativas que buscam a ressocialização de presas e egressas do sistema prisional.
6) Não é possível aferir em sede abstrata o aumento de gasto público resultante da medida imposta pelo legislador, a fim de sustentar a ofensa à Carta Bandeirante ventilada pelo autor da exordial (25 e 176, CE).
7) Procedência da ação.
Colendo Órgão
Especial
Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade em face da
Lei nº 7.278, de 12 de junho de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa
parlamentar, que “Dispõe sobre a reserva de vagas de trabalho
para mulheres sentenciadas e egressas do sistema prisional ou acolhidas pela
Coordenadoria das Mulheres na área de construção civil de obras públicas no
Município de Guarulhos e dá outras providências.”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violar o pacto federativo, pois cuida de matéria relativa ao direito do trabalho e licitação, de competência privativa da União, bem como a separação de poderes, vez que adentra em temática atinente ao mérito administrativo.
Outrossim, suscita ofensa aos princípios da igualdade, razoabilidade, livre iniciativa, livre concorrência, além da ausência de indicação da respectiva fonte de custeio ao novel gasto resultante da medida instituída pelo ato normativo vergastado (arts. 5º, 22, I, 170, § único, 173 e 174 da Constituição Federal; arts. 5º, 24, § 2º, “2”, 25, I, 47, II e XIV, 111, 144, 174, e 176, todos da Constituição Estadual).
A liminar foi concedida (fls. 54/55).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 61/63).
Posteriormente, a Câmara Municipal foi citada para prestar informações sobre o feito (fls. 70/76), tendo sustentado a higidez da normativa em apreço.
É o relato do essencial.
Procede o pedido.
A Lei nº 7.278, de 12 de junho de 2014, do Município de Guarulhos, tem a seguinte redação:
“Art. 1º No
edital de licitação de obras ou serviços promovidos pela Administração Pública
Municipal Direta ou Indireta, que preveja o fornecimento de mão de obra, na
área de construção civil de obras públicas, constará, necessariamente, cláusula
que assegure reserva de vagas de trabalho para mulheres sentenciadas em regime
semiaberto ou aberto e egressas do sistema penitenciário, bem como as acolhidas
pela Coordenadoria das Mulheres da Prefeitura de Guarulhos.
§ 1º O
disposto no caput deste artigo prevalecerá em todos os contratos de obras e
serviços, desde que comprovadamente não seja incompatível com o exercício das
funções objeto dos contratos.
§ 2º Não
entende-se como empregos na área de construção civil, para efeitos desta Lei,
os cargos na área de limpeza, faxina e afins.
Art. 2º As
vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão de no mínimo 5% (cinco por cento),
sendo que 3% (três por cento) serão destinadas às mulheres sentenciadas em regime
semiaberto ou aberto e egressas do sistema penitenciário e 2% (dois por cento)
das acolhidas e indicadas pela Coordenadoria das Mulheres da Prefeitura de
Guarulhos.
§ 1º A
demonstração do cumprimento do disposto no caput será feita com a entrega mensal
à Administração Pública Municipal, por parte da empresa contratada, da relação
de empregados admitidos e dispensados constantes do Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados.
§ 2º
Dispensa-se o cumprimento do disposto no caput no caso de inexistência de
mulheres interessadas no preenchimento das vagas supramencionadas.
Art. 3º A
Prefeitura por meio dos departamentos competentes promoverá a capacitação
dessas mulheres ao trabalho.
Art. 4º Para
fins do disposto nesta Lei, será dada preferência às mulheres nas seguintes
condições:
I -
residentes neste Município há mais de três anos antes da aplicação da sentença
ou da condenação criminal;
II - as
mulheres que são arrimos de famílias;
III - as que
estão morando em área de risco ou de favor;
IV - as que apresentem
maior disciplina, responsabilidade, aptidão e habilidade para a atividade a ser
desenvolvida.
Art. 5º Os
ditames desta Lei devem ser observados quando da renovação de contratos de
prestação de serviços com mão de obra para a Administração Pública Municipal de
Guarulhos.
Art. 6º As
penalidades pelo descumprimento do disposto nesta Lei serão dispostas por
Decreto a ser expedido pelo Poder Executivo.
Art. 7º As
despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de verbas
próprias, consignadas em Orçamento, suplementadas se necessário.
Art. 8º O
Executivo Municipal regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias a
contar da data de sua publicação.
Art. 9º Esta
Lei entra em vigor na data da sua publicação.”
Verifica-se a existência de vício material, na medida em
que a lei trata de questões afetas à competência do legislador federal.
Isto porque, de proêmio, a instituição de cláusula que assegure reserva de vagas de trabalho para mulheres sentenciadas e egressas do sistema penitenciário, bem como acolhidas pela Coordenadoria das Mulheres da Prefeitura de Guarulhos, em licitações de obras ou serviços promovidos pela Administração Municipal, conforme dispõe a lei impugnada, acabou por criar novo requisito não previsto na Lei 8.666/93.
Cuida-se de inserção de norma geral de licitação, a qual se
insere na competência privativa do
legislador federal, nos termos do art.
22, inc. XXVII, da Constituição Federal.
Note-se: não se trata de invocar parâmetro contido na
Constituição da República para fins de declaração de inconstitucionalidade de
lei municipal. A
impugnada lei viola o disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a
seguinte redação:
“(...)
Art. 144. Os
Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)”
Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.
Como
é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de
competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição
de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do
princípio federativo.
Referindo-se
aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas
essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser
inseridos, entre outros, “os princípios
relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de
Direito (art. 1º)” (Curso de direito
constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).
Um
dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do
princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente
o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a
repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da
autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e
Municípios, em relação à União.
Anota
a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de
competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do
Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí
a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “‘a chave da estrutura do poder federal’, ‘o
elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’,
‘o problema típico do Estado Federal” (Competências
na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).
Não
pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de
emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da
própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I, da CR/88).
A
preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo
Tribunal Federal, como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:
"(...) a
idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo
sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à
própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria
política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado
(CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello,
julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).
Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a lei municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.
A
prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais
estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O
art. 29, caput, da Constituição
Federal prevê que “O Município reger-se-á
por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e
aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará,
atendidos os princípios estabelecidos
nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes
preceitos (g.n.).”
Relevante
anotar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des.
Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade
de declaração de inconstitucionalidade
de lei municipal por violação do
princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição
Federal. É relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de
Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:
“(...)
Ora, um dos princípios da Constituição Federal
– e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no
Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito...’.
Sendo a
organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da
República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a
distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a
conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na
Constituição Federal.
Assim, quando
o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender
os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei
municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a
esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo,
e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado (...) (trecho do
voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI
130.227.0/0-00).
(...)”
Não pode o legislador municipal, a pretexto de legislar concorrentemente ou suplementar a legislação federal, invadir a competência legislativa deste ente federativo superior (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).
De outro lado, a matéria
disciplinada pela lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do
Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito
Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.
O estabelecimento de regras sobre contratação de terceiros e formalização de certames licitatórios, como ocorre no caso sub judice, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da
Administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como se observa na quaestio iuris, em função de obrigar o Poder Executivo a prever em seus editais de licitação de obras e serviços públicos cláusula que assegure reserva de vagas de trabalho para mulheres sentenciadas e egressas do sistema penitenciário, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade para estabelecer imposições destinadas a reinserção social de mulheres condenadas ou egressas do sistema prisional. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e
IX, da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu
art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a lei, ao instituir essa previsão em licitações do Município, de um lado, viola
o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da Administração
e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da
alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2,
na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo em suas decisões políticas.
No mais, em relação à suposta ofensa aos princípios da igualdade e razoabilidade, não se visualiza na questão trazida à baila desrespeito a tais mandamentos constitucionais.
Isso porque a especial condição da mulher sentenciada ou egressa do sistema prisional poderia, em tese, reclamar especial atenção das autoridades estatais, a fim de viabilizar sua reinserção social e ensejar seu tratamento diferenciado sem ofensa à igualdade constitucional ou à razoabilidade.
Nesse sentido, confira-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal no tocante à diferenciação de indivíduos para a efetiva promoção da isonomia almejada pelo Constituinte Originário de 1988:
“O Plenário julgou improcedente pedido formulado em
arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pelo Partido
Democratas (DEM) contra atos da Universidade de Brasília (UnB), do Conselho de
Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (CEPE) e do Centro de
Promoção de Eventos da Universidade de Brasília (CESPE), os quais instituíram
sistema de reserva de 20% de vagas no processo de seleção para ingresso de
estudantes, com base em critério étnico-racial. (...) No mérito, explicitou-se
a abrangência da matéria. Nesse sentido, comentou-se, inicialmente, sobre o
princípio constitucional da igualdade, examinado em seu duplo aspecto: formal e
material. Rememorou-se o art. 5º, caput, da CF, segundo o qual ao Estado não
seria dado fazer qualquer distinção entre aqueles que se encontrariam sob seu
abrigo. Frisou-se, entretanto, que o legislador constituinte não se restringira
apenas a proclamar solenemente a igualdade de todos diante da lei. Ele teria
buscado emprestar a máxima concreção a esse importante postulado, para
assegurar a igualdade material a todos os brasileiros e estrangeiros que
viveriam no país, consideradas as diferenças existentes por motivos naturais,
culturais, econômicos, sociais ou até mesmo acidentais. Além disso, atentaria
especialmente para a desequiparação entre os distintos grupos sociais.
Asseverou-se que, para efetivar a igualdade material, o Estado poderia lançar
mão de políticas de cunho universalista – a abranger número indeterminado de
indivíduos – mediante ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas – a
atingir grupos sociais determinados – por meio da atribuição de certas
vantagens, por tempo limitado, para permitir a suplantação de desigualdades
ocasionadas por situações históricas particulares. Certificou-se que a adoção
de políticas que levariam ao afastamento de perspectiva meramente formal do
princípio da isonomia integraria o cerne do conceito de democracia. Anotou-se a
superação de concepção estratificada da igualdade, outrora definida apenas como
direito, sem que se cogitasse convertê-lo em possibilidade. (...) . (ADPF
186,
Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em
26-4-2012, Plenário, Informativo 663.)
Ou seja, a diferenciação entre os sujeitos não é vedada pelo ordenamento. Na verdade, é promovida por ele em situações justificadas por circunstâncias razoáveis que transcendem os limites jurídicos, havendo, inclusive, inúmeros instrumentos legais assegurando tal conduta.
Destarte, as circunstâncias fáticas relativas ao objeto da normativa vergastada, ou seja, mulheres condenadas ou egressas do regime prisional, revelam a possibilidade de legítimo tratamento diferenciado por parte do legislador, haja vista sua finalidade em prol da concretização da igualdade material preconizada pela Lei Fundamental de 1988, não podendo se falar, portanto, em violação aos princípios indicados.
Ademais, também não se observa no caso examinado qualquer violação aos primados da livre concorrência e livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput e IV, CR), conforme suscitado pelo autor desta vestibular.
A imposição de requisitos às contratações de empresas pelo Poder Público, aplicáveis de forma genérica a todas as empresas interessadas no certame, por si só, não evidencia ofensa aos aludidos princípios, eis que as mencionadas previsões, a despeito do vício de iniciativa apontado, podem encontrar esteio na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR) e no art. 7º, XX, CF.
Em tese, seriam aplicáveis indistintamente a todos os interessados em contratar com a Administração, não havendo, assim, privilégio ou tratamento diferenciado a determinados sujeitos a ponto de ofender o equilíbrio entre os particulares tutelado pelo Título VII da Constituição Federal.
Por outro lado, à luz da supremacia do interesse público, podem ser estabelecidos requisitos a serem observados pelos interessados quando da celebração de contratos administrativos, visando resguardar o interesse da coletividade, consubstanciado em ações afirmativas de inclusão social, valendo ressaltar que, na hipótese dos autos, as vagas reservadas seriam de 5%.
Quando o ente transfere a execução de serviços e atividades a terceiros estranhos à Administração direta, fenômeno este conceituado como “descentralização administrativa”, o faz buscando alcançar melhores resultados junto ao corpo social, porquanto é a coletividade o alvo das medidas adotadas pela pessoa política.
Nesse diapasão, o titular da competência cujo exercício é delegado a terceiros, leia-se, o ente político, pode instituir exigências às pessoas contratadas sem que isso ofenda a livre iniciativa invocada pelo requerente, posto que o interesse coletivo, no caso representado pelo interesse social na ressocialização de presas e egressas do sistema prisional, se encontra em plano superior ao interesse individual dos agentes delegatários, de modo que no sopesamento desses valores, o primeiro se sobrepõe em eventual embate com o segundo.
Não se pode, ainda, esquecer que os princípios da livre iniciativa e concorrência devem ser compatibilizados com a valorização do trabalho humano, existência digna, ditames de justiça social e, sobretudo, a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, “caput”, e VII, da CF)
Por fim, em que pesa a alegada ofensa da legislação objurgada aos arts. 25 e 176 da Constituição Estadual, na medida em que teria instituído despesa estatal sem a respectiva contrapartida, imperioso consignar que, em sede abstrata, não é possível sindicar o suposto aumento de gasto público resultante da medida imposta pelo legislador, a fim de sustentar a ofensa à Carta Bandeirante ventilada pelo autor desta vestibular, sendo vedada, nesta seara, a análise de matéria fática.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei 7.278 de 12 de junho de 2014, do Município de Guarulhos.
São Paulo, 28 de outubro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aaamj
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