Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2147007-74.2014.8.26.0000

Requerente: Sindicato dos Funcionários e Servidores Públicos da Câmara Municipal, Autarquias, Fundações e Prefeitura Municipal de Itatiba e Morungaba

Requeridos: Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Itatiba

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Expressão contida no art. 1° da Lei n. 2.971, de 11 de fevereiro de 1998, e art. 1 ° do Decreto n. 6.480, de 27 de maio de 2014, do Município de Itatiba. Delegação ao chefe do executivo para fixação do percentual. Parâmetro de constitucionalidade. Causa de Pedir Aberta. Violação à separação de poderes. Procedência da ação. 1. O contencioso de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual ainda que remissiva ou reprodutora da Constituição Federal (art. 125, § 2º, CF/88), razão pela qual é inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica do Município, lei federal ou dispositivo da Constituição Federal não reproduzido nem imitado pela Constituição Estadual ou que não seja de observância obrigatória. 2. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial. 3. Decreto não é instrumento jurídico válido para qualquer alteração da remuneração de servidores públicos municipais, sendo incompatível com a reserva legal absoluta (arts. 5º, 24, § 2º, 1, e 115, XI, da  CE/89)

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Sindicato dos Funcionários e Servidores Públicos da Câmara Municipal, Autarquias, Fundações e Prefeitura Municipal de Itatiba e Morungaba em face da expressão “por Decreto, e, acima da variação plena, mediante remessa de projeto de Lei ao Legislativo” do artigo 1º da Lei Municipal n. 2.971, de 11 de fevereiro de 1998, e do art. 1º do Decreto n. 6.480 de 27 de maio de 2014, do Município de Itatiba, sob alegação de violação ao art. 37 da Lei Orgânica Municipal e aos arts. 5°, 24, § 2º, 1, 115, XI, 144 da Constituição Estadual, aos arts. 1° e 37, X, da Constituição Federal (fls. 01/11).

Deferida a liminar (fl. 69), a Câmara Municipal prestou informações às fls. 74/78 e o Município às fls. 108/110.

A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo objurgado (fls. 116/118).

         O Município de Itatiba opôs Embargos de Declaração às fls. 123/124 os quais foram rejeitados às fls. 180/185.

É o relatório.

O pedido é procedente.

          O controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, consoante previsto no § 2º do art. 125 da Constituição Federal, razão pela qual é inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica do Município, lei federal ou dispositivo da Constituição Federal não reproduzido nem imitado pela Constituição Estadual ou que não seja de observância obrigatória.

Ademais, a causa de pedir consiste na violação a Constituição Estadual, e, em razão de ser denominada como causa de pedir aberta, possibilita no controle concentrado de constitucionalidade o acolhimento por fundamento ou parâmetro não apontado na inicial.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

 “(...)

 Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-0, PP-00094, g.n.).

                             (...)”

           Confira-se, ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376

Feitas estas ponderações, os diplomas normativos contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

As normas contestadas são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

 (...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”

Anote-se que o art. 144 da Constituição Estadual – o qual reproduz o art. 29, caput, da Constituição Federal - determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

Diante desta previsão normativa, restará viabilizado o contraste da expressão impugnada com o disposto na alínea a do inciso II do art. 61, da Constituição Federal, que prevê:

“Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;”

A Constituição Estadual, reproduzindo preceitos da Constituição Federal, enuncia o princípio da reserva legal (legalidade absoluta) para instituição ou majoração de vencimentos e vantagens dos servidores públicos inclusive do estabelecimento de seus respectivos valores.

Como será adiante demonstrado, tanto a expressão “por Decreto, e, acima da variação plena, mediante remessa de projeto de Lei ao Legislativo” do artigo 1º da Lei Municipal n. 2.971, de 11 de fevereiro de 1998, como o art. 1º do Decreto n. 6.480 de 27 de maio de 2014, do Município de Itatiba, estão eivados de inconstitucionalidade.

Ao permitir que o Chefe do Poder Executivo Municipal reajuste por Decreto os vencimentos, salários, proventos e pensões dos servidores ativos, inativos e pensionistas estatutários ou celetistas da Prefeitura do Município de Itatiba, a expressão impugnada contida no art. 1 da Lei Municipal n. 2.971, de 11 de fevereiro de 1998, viola o princípio da reserva legal em matéria de fixação e aumento de remuneração e de vantagens para servidores públicos, previsto no art. 111 e no art. 24, § 2º, n. 1, da Constituição do Estado, e na alínea a do inciso II do art. 61 da Constituição Federal, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

Em torno do tema, o Supremo Tribunal Federal prestigia a prevalência da reserva legal na remuneração dos servidores públicos e sua indelegabilidade:

“O tema concernente à disciplina jurídica da remuneração funcional submete-se ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei, vedando-se, em conseqüência, a intervenção de outros atos estatais revestidos de menor positividade jurídica, emanados de fontes normativas que se revelem estranhas, quanto à sua origem institucional, ao âmbito de atuação do Poder Legislativo, notadamente quando se tratar de imposições restritivas ou de fixação de limitações quantitativas ao estipêndio devido aos agentes públicos em geral. - O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei - analisada sob tal perspectiva - constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes” (STF, ADI-MC 2.075-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-02-2001, v.u., DJ 27-06-2003, p. 28).

“Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” (STF, ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, 16-12-2004, DJ 01-02-2005).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Resoluções n.ºs 26, de 22/12/94; 15, de 23/10/97, e 16, de 30/10/97, todas do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, havendo a primeira criado a gratificação de representação, correspondente a 40% do valor global atribuído a diversos cargos, estendendo-a, inclusive, aos inativos que se aposentaram em cargos de igual denominação ou equivalente. 2. Alegação de ofensa a funções privativas dos Poderes Legislativo e Executivo. 3. Medida cautelar deferida e suspensa, com eficácia ex nunc, a eficácia das Resoluções impugnadas. 4. Procedência da alegação de ofensa a funções privativas dos Poderes Legislativo e Executivo, eis que há necessidade de lei em sentido formal para a criação de vantagens pecuniárias a servidores do Poder Judiciário. 5. A Lei Magna não assegura aos Tribunais fixar, sem lei, vencimentos ou vantagens a seus membros ou servidores. 6. Jurisprudência do STF no sentido de que ‘não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos, sob o fundamento da isonomia’ (Súmula 339 e ADINs n.º 1776, 1777 e 1782). 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente”(STF, ADI 1.732-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, 17-04-2002, v.u., DJ 07-06-2002, p. 81).

Este também é o entendimento da doutrina, anotando Hely Lopes Meirelles que “(...) Os vencimentos – padrão e vantagens - só por lei específica (reserva legal específica) podem ser fixados ou alterados (art. 37, X), segundo as conveniências e possibilidades da Administração” (Direito administrativo brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 483; atualização de Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo, e José Emmanuel Burle Filho). No mesmo sentido são as ponderações de Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 12ª ed., 2ª tir., São Paulo, Malheiros, 2000, p.239.

Assim, ao permitir que a fixação de vantagens decorra não de lei, mas de ato administrativo do próprio Poder Executivo, o Legislador Municipal delegou função indelegável – de legislar -, violando o princípio da reserva legal que vigora nessa matéria.

No caso, para regulamentar o disposto no artigo 1º da Lei Municipal n. 2.971, de 11 de fevereiro de 1998, editou-se o art. 1° do Decreto n. 6.480/14, afrontando-se, assim, a reserva legal absoluta delineada nos arts. 5º, 24, § 2º, 1, e 115, XI, da Constituição Estadual.

Face o exposto, opina-se para que seja declarada a inconstitucionalidade da expressão “por Decreto, e, acima da variação plena, mediante remessa de projeto de Lei ao Legislativo” do artigo 1º da Lei Municipal n. 2.971, de 11 de fevereiro de 1998, e, por arrastamento, do art. 1º do Decreto n. 6.480 de 27 de maio de 2014, do Município de Itatiba.

São Paulo, 09 de dezembro de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

md/acssp