Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2147229-42.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Taubaté

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Taubaté

 

 

 

 

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 9º, XV DA LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE TAUBATÉ. DELIBERAÇÃO LEGISLATIVA AUTORIZANDO OU APROVANDO A CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIO, CONSÓRCIO E ACORDOS. MATÉRIA TIPICAMENTE ADMINISTRATIVA. OFENSA À RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO E AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. 1. A realização de convênio, consórcio, acordo ou contrato pelo Poder Executivo configura matéria tipicamente administrativa, de forma que a submissão de tais atos ao Poder Legislativo configura ofensa à reserva da administração e à separação dos poderes (art. 5º, “caput”, § 1º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da CE/89). 2. Procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito de Taubaté, tendo como alvo o art. 9º, inciso XV, da Lei Orgânica do Município de Taubaté, que confere à edilidade a competência para “deliberar sobre a autorização ou aprovação de convênios, consórcios, acordos ou contratos a serem celebrados pela Prefeitura com os Governos Federal, Estadual ou de outro município, entidades de direito público ou privado, observando o que dispõe o art. 241 da Constituição da República (redação dada pela Emenda nº 60, de 5 de dezembro de 2011)”, por ofensa ao art. 5º da Constituição Estadual.

O Presidente da Câmara Municipal ofertou informações a fls. 66/72, defendendo o ato normativo vergastado, tendo sido, posteriormente, indeferida a liminar pleiteada (fls. 85).

Por fim, impende mencionar que o douto Procurador Geral do Estado declinou de sua intervenção (fls. 95/97)

É o relatório.

O pedido é procedente.

O art. 9º, inciso XV da Lei Orgânica do Município de Taubaté, tem a seguinte redação:

 Art. 9º Compete privativamente à Câmara:

XV - deliberar sobre autorização ou aprovação de convênios, consórcios, acordos ou contratos a serem celebrados pela Prefeitura com os Governos Federal, Estadual ou de outro município, entidades de direito público ou privado, observado o que dispõe o art. 241 da Constituição da República; (redação dada pela Emenda nº 60, de 5 de dezembro de 2011).”

 

Do cotejo do dispositivo transcrito com os preceitos da Carta Bandeirante, verifica-se que o ato normativo objurgado é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

Note-se que o disposto nos arts. 5º e 47, II, da Constituição Estadual, reproduz os arts. 2º e 84, II, ambos da Constituição Federal.

De outra parte, o art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

 

DA OFENSA À RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO E À SEPARAÇÃO DOS PODERES

O ato normativo impugnado viola o princípio da separação de poderes, bem como a reserva da Administração, previstos, respectivamente, nos arts. 5º, “caput”, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a celebração de convênios, consórcios e celebração de outros acordos, nas diversas áreas de gestão, com outros órgãos da Administração Pública federal, estadual ou entidades de direito público ou privada, os quais prescindem de qualquer autorização legislativa para sua celebração, porquanto esses atos se revestem de natureza eminentemente administrativa.

Esta característica administrativa vem reforçada pela norma do art. 241 da Constituição Federal, que atribui competência privativa aos Municípios para disciplinar, por meio de lei, os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

Exige-se, portanto, lei geral tão só para disciplinar aspectos gerais dos consórcios e convênios públicos, e não lei específica, autorizando de modo direto a realização de convênio ou consórcio determinado.

Assim, quando a lei municipal condiciona a autorização ou aprovação de convênio ou consórcio à deliberação da edilidade, o ato normativo invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando, por sua vez, o princípio da separação de poderes e a reserva da Administração, vez que o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa, muito menos da aprovação deste poder, para atuar naquilo que está na esfera de sua competência constitucional.

Em suma, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade daquela atuação administrativa, não podendo o Parlamento local interferir em atribuições constitucionalmente afetas ao alcaide.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O ato normativo impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise representados pela eventual condicionamento à formalização de convênios, consórcios ou acordos ao posterior crivo do Poder Legislativo. A atuação legislativa contestada equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar, aqui, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, deliberando sobre atos adstritos à função administrativa, viola a harmonia e a independência que devem existir entre os poderes estatais.

A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado.

Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes do Col. Órgão Especial: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Nesse mesmo sentido o entendimento do Col. STF, colhido em julgados que, mutatis mutandis, aplicam-se à hipótese em exame:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.” (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)”

Destarte, tem-se que o dispositivo combatido ofende frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo em seus artigos 5º, “caput”, 47, II e XIV, e 144.

Feitas estas considerações, requer-se a procedência do pedido.

 

São Paulo, 15 de janeiro de 2015.

 

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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