Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 2149660-49.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Caraguatatuba

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Caraguatatuba

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face das Leis nº 1.442, nº 1.443, nº 1.444 e nº 1.445, todas de 11 de julho de 2007, do Município de Caraguatatuba, que atribuem denominações a vias públicas. Iniciativa parlamentar. O ato legiferante de atribuir nomes a logradouros públicos específicos consiste em gestão administrativa e é incompatível com a vocação da Câmara Municipal. Usurpação de funções do Prefeito, com ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 5º da Constituição Estadual. Parecer pela procedência.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida por Prefeito, tendo por objeto as Leis nº 1.442, nº 1.443, nº 1.444 e nº 1.445, todas de 11 de julho de 2007, do Município de Caraguatatuba, que atribuem denominações a vias públicas, sustentando violação aos arts. 5º; 25; 47, II e XIV e 144 da Constituição Estadual.

A liminar foi indeferida (fls. 95/96).

O requerente apresentou “pedido de reconsideração do pedido liminar” (fls. 104/107), o qual foi indeferido (fls. 175/176).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 179/181).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou à fl. 185, juntando cópia dos processos legislativos que deram origem às leis impugnadas, bem como outros documentos que entendeu serem pertinentes ao deslinde da questão.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Não se duvida que a denominação de logradouros públicos municipais seja matéria de interesse local (art. 30, I, da Constituição Federal), dispondo, assim, os Municípios de ampla competência para regulamentá-la, pois foram dotados de autonomia administrativa e legislativa. Cumpre acrescentar não haver na Constituição em vigor reserva dessa matéria em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.

Contudo, é necessário distinguir as seguintes situações:

(a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, ou alterações na nomenclatura já existente, caso em que a iniciativa é concorrente;

(b) o ato de atribuir nomes a logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência privativa do Executivo.

No Brasil, como se sabe, o governo municipal é de funções divididas, incumbindo à Câmara as legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais não existe subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. Nesta sinergia de funções é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, 8.ª ed., p. 427 e 508).

Em sua função normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica, bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de atos concretos de administração. Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes (ob. cit., p. 429).

Assim, no exercício de sua função legislativa, a Câmara está autorizada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (Cf. ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).

A nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, 2.ª ed., p. 285).

De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros públicos seria tarefa quase impossível, principalmente nos grandes centros urbanos, como é o caso da cidade de São Paulo.

Contudo, a despeito de tal distinção, nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente fixados em lei editada para regulamentar essa matéria.  

Em suma, a Câmara pode, por meio de lei, compelir o Prefeito a atender tal determinação, sem usurpar sua função. Mas não poderá, como ocorre na hipótese vertente, editar norma de conteúdo concreto e individualizante, conferindo a denominação de logradouro específico.

Na ordem constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula desenvolvida pelo célebre filósofo Montesquieu, não existe a menor possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de leis, pois a Constituição é clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE, art. 47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE, art. 47, XIV).

Bem por isso, aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194)

Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, que atribui nome a logradouro público só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os poderes (CE, art. 5.º).  

A propósito, ao examinar assunto correlato no julgamento da Repr. n.º 1.117-SP, o insigne Ministro FRANCISCO REZEK deixou registrado no seu respeitável voto que:

“No contexto dos debates que esta matéria provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade imobiliária, ou a visão do poder Executivo como titular do domínio dos bens públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos da Justiça.

Sobre o tema, esse E. Tribunal de Justiça já decidiu:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste – Ação procedente” (Adin nº 115.877.0/5, Rel. Dês. Laerte Nordi, j. em 20/7/2005).

Em suma, a Câmara não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração. E a nomenclatura de logradouros públicos - que constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a conclusão de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível com o princípio da separação dos poderes.

Não pode prosperar a alegação do requerente de que as normas em vigor geram despesas ao erário e não indicam fonte de custeio.

É verdadeiro sofisma a alegação de que toda e qualquer lei que gere despesa só possa advir de projeto de autoria do Executivo. O Supremo Tribunal Federal tem estimado que:

“não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

É insubsistente a alegação de falta de receita própria (art. 25, Constituição Estadual) posto que sua ausência apenas compromete a eficácia da norma no exercício financeiro de sua vigência.

Com efeito, “inclina-se a jurisprudência no STF no sentido de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01).

Diante do exposto, opino pela procedência da presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade das Leis nº 1.442, nº 1.443, nº 1.444 e nº 1.445, todas de 11 de julho de 2007, do Município de Caraguatatuba.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico – em exercício

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