Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2165172-72.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 7.294, de 14 de agosto de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar. Funcionamento de transporte público coletivo urbano em todos os dias da semana, por período integral (24 horas). Violação da separação de poderes. Reserva da Administração. Procedência da ação.  1. A instituição de programas e serviços administrativos nos órgãos do Poder Executivo é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar. 2. Quando lei de iniciativa parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos demandando diretamente a realização de despesa pública não prevista no orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25, 174, III, e 176, I, CE/89, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das novas despesas (que não estão previstas) seja porque é reservada ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual. 3. Procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Guarulhos impugnando a Lei n. 7.294, de 14 de agosto de 2014, que “Dispõe sobre o funcionamento do transporte público coletivo urbano em todos os dias da semana, por período integral (24 horas)”, sob alegação de violação aos arts. 5º, 24, § 2º, 25, 47, II, XIV, XVI, 144, 174 e ao inciso I do art. 176 da Constituição Estadual (fls. 01/24).

         Concedida liminar (fls. 45), a douta Procuradoria-Geral do Estado absteve-se da defesa da lei impugnada (fls. 53/55) e a Câmara Municipal de Guarulhos prestou informações defendendo a constitucionalidade do ato impugnado (fls. 60/69).

         É o relatório.

         A Lei nº 7.294, de 14 de agosto de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, foi editada nos seguintes moldes:

Art. 1º Fica instituído no Município de Guarulhos o funcionamento do transporte público coletivo em todos os dias da semana, por período integral (24 horas).

Art. 2º O Município de Guarulhos oferecerá transporte público coletivo em todos os dias da semana por período integral (24 horas).

§ 1º O sistema viário de transporte público coletivo urbano funcionará em regime de plantão durante a madrugada, em todos os dias da semana, por período integral, com regras definidas por regulamentação local.

§ 2º Para efeitos de aplicação desta Lei, entende-se por madrugada o período compreendido entre 0h00 (zero hora) e 4h00 (quatro horas) da manhã.

Art. 3º Os veículos serão disponíveis à população de acordo com a demanda de usuários que necessitam do transporte público durante a madrugada, após estudos realizados pela Secretaria de Transportes e Trânsito.

Art. 4º Todos os vales-transportes serão aceitos normalmente como forma de pagamento das tarifas.

Art. 5º Os concessionários ou permissionários que se recusarem a dispor de veículos suficientes para satisfazer a demanda do Município estarão sujeitos às seguintes penalidades administrativas, isoladas ou cumulativamente, salvo se já constarem no contrato de concessão, permissão ou autorização:

I - advertência; e

II - multa de 2.000 UFGs (duas mil Unidades Fiscais de Guarulhos), se primário e 4.000 UFGs (quatro mil Unidades Fiscais de Guarulhos), à época da infração, em caso de reincidência.

Art. 6º Os direitos previstos nesta Lei deverão ser amplamente divulgados pelo Poder Executivo nos veículos de transporte coletivo e no sítio eletrônico da Prefeitura.

Art. 7º O Poder Executivo regulamentará esta Lei em até 90 (noventa) dias.

Art. 8º As despesas com a execução desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, consignadas em Orçamento e suplementadas se necessário.

Art. 9º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

         Acerca da quaestio iuris trazida a lume, cumpre tecer as seguintes considerações apontadas para a inconstitucionalidade da normativa objurgada.

         É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

         Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.

         Também prevê no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

         A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal.

         Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

         A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

         Pois, ao obrigar o Executivo local a manter em funcionamento o transporte público coletivo urbano em todos os dias da semana e por período integral (24 horas), a lei vergastada, de um lado, viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo, assunto cuja iniciativa legislativa lhe é reservada.

         Neste sentido, a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo. I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI. II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros. III. - Precedentes do STF. IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

         Ademais, a lei impugnada adentra indevidamente, outrossim, na denominada reserva de Administração, consoante já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

         E se a tanto não bastasse, se, em linha de princípio, a falta de recursos orçamentários não causa a inconstitucionalidade de lei, senão sua ineficácia no exercício financeiro respectivo à sua vigência – porque “inclina-se a jurisprudência no STF no sentido de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01) -, quando lei de iniciativa parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos demandando diretamente a realização de despesa pública não prevista no orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25, 174, III, e 176, I, da Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das novas despesas (que não estão previstas) seja porque é reservada ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o Supremo Tribunal Federal:

“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3. Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 338, p. 46).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ 200/1065).

         Diante do exposto, opino pela procedência da ação por violação da lei vergastada aos arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, e 47, II, XIV e XIX, a, 144 e ao inciso I do art. 176 da Constituição do Estado.

 

São Paulo, 24 de novembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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