Processo nº. 2165329-45.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeita Municipal de Ribeirão Preto
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Ribeirão Preto
Ementa:
1) Lei Municipal n. 13.005,
de 27 de junho de 2013, de iniciativa parlamentar, do município de Ribeirão
Preto, que determina a introdução de texto informativo em carnês do IPTU;
2)
Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa e pela ofensa
ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 da Constituição
do Estado);
3) Parecer pela
procedência.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente
A
Prefeita Municipal de Ribeirão Preto ingressou com a presente ação direta
objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 13.005,
de 27 de junho de 2013, de iniciativa parlamentar, que determina a inclusão do
tipo de zoneamento do imóvel no texto dos carnês do IPTU do município, por
afronta aos artigos 5º, 25 e 144 da Constituição Estadual.
Ao
despachar a inicial (fls. 27/28), sua Excelência, o Desembargador Relator, Dr. Tristão
Ribeiro, deferiu o pedido de suspensão liminar, por entender presentes os
requisitos legais.
Notificada,
a Câmara Municipal prestou informações (fls. 44/45), defendendo a constitucionalidade
do diploma legal.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 37/40).
É
o breve relato.
O
pedido de declaração de inconstitucionalidade é procedente, pois a Lei n. 13.005,
de 27 de junho de 2013, invade esfera de competência privativa do Prefeito e,
em conseqüência, é inconstitucional.
À
evidência que a lei municipal questionada, embora contenha proposta louvável, invade
competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal.
Dispor
sobre a obrigatoriedade de a Prefeitura do Município inserir informações sobre o
zoneamento do imóvel nos carnês de cobrança do IPTU, é matéria referente à
administração municipal.
Assim,
apenas o Chefe do Poder Executivo Municipal tem iniciativa para deflagrar
processo legislativo para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende
ver declarada como inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um
Poder sobre o outro.
Neste
sentido, trago à colação os seguintes arestos deste colendo Órgão Especial:
“Ação Direta
de Inconstitucionalidade. Lei Municipal, que determina o Poder Público inserir
nos carnes de pagamento do IPTU informações acerca dos casos de isenção.
Prerrogativa que pertence ao Prefeito. Infringência ao princípio do processo
legislativo. Vício formal de iniciativa do Município de Guarulhos
caracterizado. Violação ao princípio da independência e separação dos poderes.
Ação procedente, para declarar a inconstitucionalidade da Lei n° 6.651, de 17
de março de 2010.” (TJSP, ADI nº 990.10.197.775-3, Órgão
Especial, Rel. Reis Kuntz, 03.11.2010).
“Ação Direta
de Inconstitucionalidade de Lei - Lei Municipal de São José do Rio Preto n°
9.974, de 19 de outubro de 2007, de iniciativa do Legislativo, promulgada pela
Presidência da Câmara face ao veto do Poder Executivo, que dispôs sobre a
introdução de texto informativo nos carnês de IPTU sobre direito à isenção
desse imposto nos casos que referiu, e deu outras providências - Ofensa aos
artigos 5º; 37; 47, II e XIV; e 144, da Constituição Paulista - Procedência.”
(TJSP, ADI n°156.004-0/2, Rel. Marco César, j. 23.04.2008).
Postulado
básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes,
constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de
observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma
Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de
Direito assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e entregues
a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando
interferências indevidas de um sobre o outro.
A Constituição
Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder
competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder
Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função
administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...). A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação”. (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
Também
por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos
mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e
disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder
Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers)” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
Assim, se em
princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas
matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente,
direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são
reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo.
Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art.
144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: (a) a
iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por
sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; (b) ao
Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa
reservada em matérias inerentes à Administração Pública; (c) há matérias
administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade
consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma
do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória
da iniciativa legislativa:
“Leis de
iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que
a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do
prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da
competência municipal” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
Portanto,
irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de
freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao
Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa.
Note-se que: (a) decidir quais as informações que devem
constar em carnê relativo ao IPTU é providência que deve decorrer de
deliberação da administração pública, e não de imposição legal, até mesmo
prescindível esta na hipótese; (b) quando o legislador, a pretexto de legislar,
assume o papel do administrador, está a extrapolar no exercício de suas
competências constitucionais.
Referido diploma, na prática, criou obrigação para a
administração local, invadindo a esfera
da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles,
anotando que “a Prefeitura não pode
legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão
própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a
Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em
atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o
Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que
residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional
(art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou
Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.
Por fim, não se pode cogitar a violação ao art. 25 da Constituição Estadual, uma vez que a lei impugnada não cria ou provoca aumento de despesa pública.
Posto
isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta
a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 13.005,
de 27 de junho de 2013, por sua incompatibilidade com os arts. 5º, 47, II e
XIV, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.
São
Paulo, 24 de novembro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
ef/crms