Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 2178025-16.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Sorocaba
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade.
Lei Municipal nº 10.903, de 18 de julho de 2014, do Município de Sorocaba, de
iniciativa parlamentar, que “Institui o
Programa de auxílio-creche às crianças não atendidas pelas creches do município
de Sorocaba”.
2) Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.
3) Mérito. Encontra-se na reserva da
Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo
a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda
inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para
cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).
4) Violação do princípio da separação de
poderes (arts. 5º; 24, § 2º, nº 2; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da
Constituição do Estado de são Paulo). Procedência do pedido.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade
proposta pelo Prefeito de Sorocaba, tendo como alvo a Lei nº 10.903, de 18 de julho de
2014, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “Institui o Programa de auxílio-creche às
crianças não atendidas pelas creches do município de Sorocaba”.
Sustenta
o requerente (fls. 01/24) que a lei é inconstitucional por entender que lei que
crie programa municipal não pode ser iniciada por Vereador, de sorte que a
legislação teria violado o disposto nos artigos 5º, 24, §§ 2º e 5º, nº 1, 25 e
47, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, bem como nos artigos 2º,
61, § 1º, 63, inciso I e 84, incisos II e III, da Constituição Federal, uma vez
que impõe nova obrigação ao Poder Executivo.
A
liminar foi deferida (fls. 199/200).
Devidamente notificado (fl. 206), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações (fls. 215/223).
Citado regularmente (fl. 209), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 211/213).
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Constituição Federal.
Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.
Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.
Procede o pedido.
A Lei Municipal nº 10.903, de 18 de julho de 2014, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “Institui o Programa de auxílio-creche às crianças não atendidas pelas creches do município de Sorocaba”, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, possui a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º - Fica instituído no âmbito do município de Sorocaba o Programa de auxílio-creche às crianças não atendidas na rede pública de creches diretas ou indiretas da Prefeitura do Município de Sorocaba,
Art. 2º - Terão acesso ao Programa:
I – as crianças em idade de atendimento em creches;
II – comprovado o vínculo empregatício dos pais;
III – comprovar rendimento familiar de até 3 (três salários mínimos); e
IV – não serem atendidas pelo Município.
Parágrafo único. Os itens citados neste artigo são cumulativos.
Art. 3º - As crianças que atenderem ao disposto no art. 2º receberão auxílio-creche de ½ (meio) salário mínimo durante o período em que não for atendida pela rede de creche pública municipal.
Art. 4º - As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta de verba orçamentária própria.
Art. 5º - Esta lei entra em vigor em 1º de janeiro de 2010.
(...)”
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não
implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)”
A
matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade
administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior
cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.
A instituição de um programa municipal na área da educação infantil (creches públicas) é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, porque disciplina programa governamental.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades coletivas, vinculadas aos direitos
fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida
na esfera do poder discricionário da administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita à disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre, invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função de obrigar o Poder Executivo Municipal a disponibilizar vagas em creches públicas, visando garantir aos não atendidos pelo Poder Público Municipal condições de custear o pagamento de um creche particular, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação de programa de “auxílio-creche” às crianças não atendidas na rede pública de creches diretas ou indiretas da Prefeitura do município de Sorocaba. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A
inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de
poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts.
5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a Lei, ao regulamentar ainda que parcialmente um serviço público, de um lado,
viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção
da administração, à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria
essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art.
24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
Criar programas e disciplinar serviços públicos –
precisamente o que se verifica na hipótese em exame – é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do
Chefe do Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida, ao impor ao Município o encargo de conceder o “auxílio-creche”, preenchidos os requisitos, no valor de ½ (meio) salário mínimo durante o período em que não for atendida pela rede de creche pública municipal, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 10.903, de 18 de julho de 2014, do Município de Sorocaba.
São Paulo, 16 de dezembro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
mao/dcm