Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 2180246-69.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Mauá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Mauá

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.899, de 21 de novembro de 2013, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar que “Dispõe sobre a doação de produtos apreendidos no âmbito do município de Mauá e dá outras providências”

2)      A destinação dos produtos apreendidos em virtude do exercício do poder de polícia municipal é assunto da administração ordinária do Município, estando no círculo da reserva da Administração, consistente nas matérias que são da alçada privativa do Chefe do Poder Executivo, imunes à intervenção do Poder Legislativo.

3)      Violação do princípio da separação dos poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual). Procedência do pedido.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei nº 4.899, de 21 de novembro de 2013, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a doação de produtos apreendidos no âmbito do município de Mauá e dá outras providências”

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, por importar em ingerência na Administração Pública, por disciplinar matéria da competência do Poder executivo e por gerar aumento de despesas sem prévia dotação orçamentária e sem adequação às leis orçamentárias. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 25, 47, II, XI e XIV, 144, 174, I, II e III e 176, I e III, da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar para suspender os efeitos do ato normativo impugnado (fls. 31/33).

Notificado (fl. 39), o Presidente da Câmara Municipal não prestou informações no prazo legal (fl. 47).

Citado regularmente (fl. 42), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 44/46).

Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 4.899, de 21 de novembro de 2013, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a doar às instituições filantrópicas, sem fins lucrativos, produtos apreendidos pela fiscalização de comércio irregular, e não recuperados pelos interessados, dentro do prazo legal.

Parágrafo único. Não se aplica o disposto neste artigo a produtos cuja apreensão seja objeto de legislação específica, bem como bebidas alcoólicas, fogos de artifício, produtos piratas que ostentem marca, brinquedos em forma de arma ou que não tenham selo de segurança da Abrinq - Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos.

 Art. 2º O Poder Executivo, por meio dos órgãos responsáveis, estabelecerá os critérios e procedimentos para as doações.

Parágrafo único. As instituições filantrópicas a serem beneficiadas deverão estar cadastradas e habilitadas junto ao órgão responsável.

 Art. 3º As despesas decorrentes da execução da presente lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 4º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando expressamente todas as disposições contrárias.

 (...)”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A gestão dos serviços públicos e a destinação de objetos apreendidos no exercício da fiscalização são assuntos da administração ordinária do Município, estando no círculo da reserva da Administração, consistente nas matérias que são da alçada privativa do Chefe do Poder Executivo, imunes à intervenção do Poder Legislativo.

A destinação dos produtos apreendidos pela fiscalização de comércio irregular, e não recuperados pelos interessados, dentro do prazo legal, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, porque relativa à regulamentação dos atos de polícia.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da previsão de doação de bens apreendidos pela fiscalização de comércio irregular, e não recuperados pelos interessados, dentro do prazo legal, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da doação dos bens apreendidos a instituições filantrópicas. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao prever a destinação aos bens apreendidos pela fiscalização de comércio irregular, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Nem se chegaria à conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples lei autorizativa, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

A razão é simples: o Chefe do Poder Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A utilização recorrente de leis autorizativas tem objetivos de cunho nitidamente político, transmitindo aos cidadãos uma falsa ideia de direito subjetivo e de negligência do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Importante ressaltar que não se vislumbra na hipótese criação de despesas à Administração Pública, pelo simples fato de impor o estabelecimento de critérios e procedimentos para as doações, bem como instituição de cadastro das instituições filantrópicas.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 4.899, de 21 de novembro de 2013, do Município de Mauá.

 

              São Paulo, 16 de dezembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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