Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 2183387-96.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Sorocaba

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 10.997, de 03 de outubro de 2014, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o funcionamento de posto de atendimento de primeiros socorros dentro dos terminais de integração do sistema urbano de transporte coletivo no município de Sorocaba e dá outras providências”.

2)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. Na fiscalização abstrata, concentrada, direta e objetiva de constitucionalidade de lei municipal o parâmetro exclusivo de contraste é Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF).

3)     Violação dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista. Encontra-se na reserva da administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização e regulamentação dos serviços públicos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da CE/89).

4)     Parecer pela procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 10.977, de 03 de outubro de 2014, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que Dispõe sobre o funcionamento de posto de atendimento de primeiros socorros dentro dos terminais de integração do sistema urbano de transporte coletivo no município de Sorocaba e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação de poderes e por criar despesas sem previsão de receita. Daí a alegação de violação dos arts. 2º, 61 § 1º, 63, I, 84, II e III, da Constituição Federal de 1988, e dos arts. 5º, 24, §§ 2º e 5º, nº 1, 47, II e 144, da Constituição Estadual de São Paulo de 1989 (fls. 01/24).

A liminar foi deferida, para a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado, fls. 170/171.

Devidamente notificado (fl. 184), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações a fls. 186/192, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Citado regularmente (fl. 178), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 180/182).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

DA ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Constituição Federal.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei nº 10.977, de 03 de outubro de 2014, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º - Fica o Poder Executivo obrigado a estabelecer nos terminais de ônibus municipais posto de pronto atendimento de primeiros socorros dentro dos terminais de integração do sistema viário de transporte coletivo do município de Sorocaba para atendimento à população que se encontrar em trânsito nas localidades.

Art. 2º - Os postos de pronto atendimento serão instalados dentro dos terminais de integração mediante construção própria ou mediante utilização de espaço físico já existente, fazendo as adaptações necessárias.

Art. 3º - A Secretaria Municipal de Saúde será responsável pela implementação e pela prestação de serviços oferecidos, onde os profissionais deverão estar habilitados e inscritos nos órgãos profissionais competentes e admitidos no serviço público municipal na forma de legislação vigente.

Art. 4º - As localidades a que se refere o art. 1º da presente Lei, segue da seguinte forma:

I – Terminal Santo Antonio;

II – Terminal São Paulo.

Art. 5º - Os postos de atendimento de primeiros socorros nos terminais urbanos prestarão os primeiros socorros aos que necessitarem de qualquer atendimento de saúde emergencial.

Parágrafo único. Os profissionais de saúde que desempenharem suas funções nos terminais urbanos poderão desenvolver programas de prevenção e orientação relacionados à saúde pública, divulgando campanhas relacionadas à área e desenvolvidas pela Secretaria Municipal da Saúde.  

Art. 6º - As despesas recorrentes desta Lei correrão por conta de verba orçamentária própria.

Art. 7º - Esta Lei entra em vigor, após, decorridos 60 (sessenta) dias da data de sua publicação.

 (...)”

DAS INCONSTITUCIONALIDADES

O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A disponibilização nos terminais de integração do sistema urbano de transporte coletivo, de posto de atendimento de primeiros socorros, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode por meio de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, determinando o funcionamento de posto de atendimento de primeiros socorros em terminais de integração do sistema urbano de transporte coletivo, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação e regulamentação dos serviços em benefício dos cidadãos. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual – aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei, ao instituir condições da prestação de serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Por derradeiro, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com os arts. 25 e 176, inciso I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida ao impor obrigação ao Poder executivo de estabelecer postos de pronto atendimento de primeiros socorros dentro dos terminais de integração do sistema viário de transporte coletivo do Município de Sorocaba, não indica os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos. A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.

         Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 10.977, de 03 de outubro de 2014, do Município de Sorocaba.

 

              São Paulo, 09 de dezembro de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

aca/dcm