Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 2183436-40.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Buritama

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Buritama

 

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.002, de 14 de abril de 2014, do Município de Buritama, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a publicação, em site na internet, da lista de espera de consultas comuns ou especializadas, exames, cirurgias e quaisquer outros procedimentos ou ações de saúde, agendada pelos cidadãos no município.”

2)      Preliminar. O contencioso de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual ainda que remissiva ou reprodutora da Constituição Federal (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual é inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica do Município, lei federal ou dispositivo da Constituição Federal não reproduzido nem imitado pela Constituição Estadual ou que não seja de observância obrigatória.

3)      Mérito. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização de serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura dos custos decorrentes das medidas exigidas (art. 25 da Constituição Estadual).

4)      Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II, XIV e     XIX, a, e 144 da Constituição do Estado. Procedência do pedido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 4.002, de 14 de abril de 2014, de iniciativa parlamentar, do Município de Buritama, que Dispõe sobre a publicação, em site na internet, da lista de espera de consultas comuns ou especializadas, exames, cirurgias e quaisquer outros procedimentos ou ações de saúde, agendada pelos cidadãos no município.”

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, violar o princípio da harmonia e da independência dos poderes e por gerar despesa sem indicação de fonte de custeio.

Foi concedida a liminar (fls. 106/107).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações a fls. 116/117.

Citado regularmente, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 125/127).

Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

1.   PRELIMINAR

O contencioso de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual ainda que remissiva ou reprodutora da Constituição Federal (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual é inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica do Município, lei federal ou dispositivo da Constituição Federal não reproduzido nem imitado pela Constituição Estadual ou que não seja de observância obrigatória.

2.   NO MÉRITO

A Lei nº 4.002, de 14 de abril de 2014, do Município de Buritama, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo.

O diploma normativo impugnado disciplina a publicidade da lista de espera de consultas, de exames, de cirurgias, dentre outros procedimentos agendados pelo munícipe, em site da internet.

Desta forma, a lei impugnada é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o princípio da separação de poderes previstos nos arst. 1º, 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Ainda, a matéria disciplinada pela lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A organização de serviços administrativos é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode por meio de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função de disciplinar questões relacionadas ao sistema municipal de saúde invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade de questões relacionadas ao serviço municipal de saúde. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei impugnada de um lado viola o art. 47, II e XIV ao estabelecer regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Cabe ainda ressaltar que não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

A publicidade de consultas médicas, exames, cirurgias, dentre outros procedimentos, no sistema público de saúde é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

No caso, a inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Em razão do previsto no art. 6° da lei objeto desta ação, há ofensa à regra que condiciona o estabelecimento de nova despesa pública à cobertura financeiro-orçamentária (art. 25 da Constituição Estadual).

Diante do exposto, superada preliminar, aguarda-se que seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade Lei nº 4.002, de 14 de abril de 2014, do Município de Buritama.

 

              São Paulo, 12 de dezembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

ef/acssp