Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 2183511-79.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Sorocaba

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal 10.932, de 25 de agosto de 2014, de Sorocaba, fruto de iniciativa parlamentar, que “Institui programa educacional na Rede Municipal de Ensino até o nível fundamental, princípios de Legislação de Trânsito e dá outras providências”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes. “Reserva de administração” (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3)      Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Municipal 10.932, de 25 de agosto de 2014, de Sorocaba, fruto de iniciativa parlamentar, que “Institui programa educacional na Rede Municipal de Ensino até o nível fundamental, princípios de Legislação de Trânsito e dá outras providências”.

Sustenta o requerente a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompatibilidade vertical com nosso sistema constitucional, por ofensa ao art. 5º, 24, § 5º, 1, art. 25, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado.

Alega ainda ofensa a dispositivos da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional.

Foi deferida a liminar, suspendendo-se a eficácia do ato normativo impugnado (fls. 141/142).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa quanto ao ato normativo (fls. 149, 151/153).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 158/164).

É o relato do essencial.

PRELIMINAR: LIMITES À COGNIÇÃO EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Cumpre salientar que, tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade em tramitação junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, apenas a Constituição do Estado configura parâmetro válido para a análise de eventual incompatibilidade entre a lei impugnada e a ordem constitucional.

Ademais, como no processo objetivo, de controle concentrado de constitucionalidade, não é possível o exame de eventuais ofensas indiretas ou reflexas à Constituição, as alegações relacionadas à incompatibilidade entre a lei hostilizada e a legislação infraconstitucional (por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal ou mesmo a Lei Orgânica do Município) não podem ser examinadas neste feito, como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade da lei.

Nesse sentido, confira-se o entendimento assente do STF nos seguintes precedentes, indicados exemplificativamente: ADI 2.551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-4-2003, Plenário, DJ de 20-4-2006; RE 597.165, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 4-4-2011, DJE de 12-4-2011.

Passa-se, portanto, ao exame do ato impugnado nos estritos limites que envolvem o confronto entre aquele e o texto da Constituição Paulista.

MÉRITO

A Lei Municipal 10.932, de 25 de agosto de 2014, de Sorocaba, fruto de iniciativa parlamentar, que “Institui programa educacional na Rede Municipal de Ensino até o nível fundamental, princípios de Legislação de Trânsito e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica instituída na rede pública de educação municipal, até as séries do Ensino Fundamental, aulas de princípios básicos de legislação de trânsito e educação para o trânsito.

Parágrafo único. A educação de trânsito na rede de ensino municipal, a ser inserida na grade curricular, terá o nome de EDUCTRAN (Educação de Trânsito na Escola).

Art. 2º. As aulas serão semanais ministradas por professores previamente instruídos sobre o tema ou especialistas voluntários ou convidados pela Secretaria de Educação, podendo estes serem os servidores da Urbes (agentes de Trânsito).

Art. 3º. As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias.

Art. 4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

O ato normativo em análise viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, bem como decorrente do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

A lei municipal hostilizada é fruto de iniciativa parlamentar, e institui programa escolar, por força do qual determinada temática (princípios básicos de legislação de trânsito e educação para o trânsito) deverá, doravante, ser incluída na grade curricular da rede de ensino municipal.

Em que pese a boa intenção que certamente animou o Vereador, autor do projeto de lei que se converteu no diploma ora questionado, é certo que definir qual o conteúdo curricular a ser estudado no ensino municipal, respeitados os limites impostos pela legislação federal aplicável ao tema, é matéria a cargo do Poder Executivo, ou seja, da Administração Pública.

         Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

Em suma, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema, por tratar-se de hipótese da denominada “reserva de administração”.

Nesse sentido o posicionamento do STF, aplicável à hipótese mutatis mutandis:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais. (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)

Ofende a denominada reserva de administração, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes (CF, art. 2º), a proibição de cobrança de tarifa de assinatura básica no que concerne aos serviços de água e gás, em grande medida submetidos também à incidência de leis federais (CF, art. 22, IV), mormente quando constante de ato normativo emanado do Poder Legislativo fruto de iniciativa parlamentar, porquanto supressora da margem de apreciação do chefe do Poder Executivo Distrital na condução da administração pública, no que se inclui a formulação da política pública remuneratória do serviço público. (ADI 3.343, Rel. p/ o ac. Min. Luiz Fux, julgamento em 1º-9-2011, Plenário, DJE de 22-11-2011.)

(...)

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Tal afirmação encontra apoio na autorizada doutrina de Hely Lopes Meirelles (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Assim vem decidindo o Col. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, relativamente ao tema especificamente examinado neste feito:

“(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 11.272, de 26 de novembro de 2012, do Município de São José do Rio Preto, que ‘dispõe sobre a inclusão da matéria ‘sensível aos 3R’s como atividade extracurricular nas Escolas Públicas Municipais’.

VÍCIO DE INICIATIVA E OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. Reconhecimento. A lei impugnada, de autoria parlamentar, ao interferir na forma de prestação de serviço público de ensino, mediante acréscimo de atividade extracurricular denominada ‘sensível aos 3 R’s (reutilizável, retornável e reciclável) nas Escolas Públicas Municipais, avançou sobre área de planejamento, organização e gestão administrativa, tanto que o parágrafo único do art. 1º dispõe expressamente que essa matéria extracurricular ‘será realizada de acordo com o planejamento pedagógico das unidades de ensino’, ou seja, tratou de matéria que é reservada à iniciativa do Chefe do Poder Executivo; e ainda estabeleceu a criação de despesas sem indicar os recursos disponíveis para atender aos novos encargos. Ofensa às disposições dos artigos 5º, 25, 47, II, XIV e XIX, ‘a’ e 144, todos da Constituição Estadual. Inconstitucionalidade manifesta. Ação julgada procedente. (ADIn nº 0193186-37.2013.8.26.0000, rel. Ferreira Rodrigues, j. 24.09.2014).

(...)”

Não é o caso, entretanto, de acolher-se a alegação de ofensa ao art. 24, § 5º, 1 da Constituição Paulista.

Tal dispositivo veda o aumento de despesa nos projetos de iniciativa do Chefe do Executivo. Esse não é o caso dos autos, visto que a iniciativa do projeto, que culminou na lei aqui examinada, foi do próprio Poder Legislativo.

Também não deve ser declarada a inconstitucionalidade com amparo no art. 25 da Constituição Paulista, pelo qual “nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis”.

O STF já assentou que a insuficiência, no que diz respeito à indicação dos recursos orçamentários, no texto legal, não é fundamento suficiente para o reconhecimento da inconstitucionalidade, mas, tão somente, da ineficácia momentânea do ato normativo.

Nesse sentido:

“(...) A ausência de dotação orçamentária prévia em legislação específica não autoriza a declaração de inconstitucionalidade da lei, impedindo tão-somente a sua aplicação naquele exercício financeiro. 8. Ação direta não conhecida pelo argumento da violação do art. 169, § 1º, da Carta Magna. Precedentes : ADI 1585-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, DJ 3.4.98; ADI 2339-SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, unânime, DJ 1.6.2001; ADI 2343-SC, Rel. Min. Nelson Jobim, maioria, DJ 13.6.2003. 9. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente conhecida e, na parte conhecida, julgada improcedente” (RTJ 202/569).

Ademais, saber se haverá ou não aumento de despesa, em função da vigência da lei, é questão de fato, que não se extrai ou define a partir da simples leitura do texto legal, inviabilizando o acolhimento da alegada contrariedade ao art. 25 da Constituição Paulista.

Em suma: a inconstitucionalidade deve ser declara, em nosso sentir, mas exclusivamente pela ofensa ao princípio da separação de poderes, dado o ingresso do legislador na denominada “reserva de administração”, extraível do art. 5º e do art. 47, II e XIV da Constituição Paulista.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal 10.932, de 25 de agosto de 2014, de Sorocaba.

 

São Paulo, 16 de janeiro de 2015.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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