Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 2184259-14.2014.8.26.0000
Requerente:
Prefeita Municipal de Guarujá
Requerido:
Presidente da Câmara Municipal de Guarujá
Ementa:
1) Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.139, de 15 de setembro de 2014, do
Município de Guarujá, que “Proíbe o uso
de radares móveis nas ruas e avenidas do município de Guarujá e dá outras
providências”.
2) A fiscalização do trânsito é matéria de competência privativa do Poder Executivo, que por seu órgão executivo de trânsito, tem o poder/dever de cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições.
3) Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade,
tendo como alvo a Lei nº 4.139, de 15 de setembro de 2014, do Município de
Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Proíbe
o uso de radares móveis nas ruas e avenidas do município de Guarujá e dá outras
providências”.
Sustenta a requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, violar o princípio da separação e independência dos poderes e criação de despesas sem a indicação dos recursos disponíveis. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 24, 25, 37, 47, II, XI, XIV, XVII e 144 da Constituição Estadual.
Foi deferido o pedido de liminar para suspender, com eficácia ex nunc, a vigência do ato normativo impugnado (fls. 95/96).
Notificado (fl. 102), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações afirmando não existir vício formal ou material (fls. 111/134).
Citado regularmente (fl. 105), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 107/109).
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
Procede o pedido.
A Lei nº 4.139, de 15 de setembro de 2014, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após derrubada do veto do executivo, tem a seguinte redação:
Verifica-se que a lei municipal impugnada, de autoria parlamentar, regulamenta a instalação de radares eletrônicos, disciplinando matéria relativa a fiscalização do trânsito no Município de Guarujá.
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e no art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“ (...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A matéria disciplinada pela Lei
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja direção
superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.
A regulamentação prevista na lei é
atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão,
de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas,
vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a disciplina legislativa. O poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador
administre invadindo área privativa do Poder Executivo.
Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da imposição de condições para a fiscalização do trânsito por meio de radares eletrônicos, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da providência determinada pela lei. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e
art. 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada Reserva da Administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), por serem privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria de
gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo,
quando ele mesmo não pudesse discipliná-la por decreto nos termos do art. 47,
XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a lei, ao determinar providência administrativa, de um lado, viola o art. 47,
II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração
e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da
alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2,
na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.
Importante ainda consignar que as regras de trânsito no âmbito municipal, atendidas as regras gerais do Código de Trânsito Brasileiro, encontram-se na gestão administrativa da Cidade, privativa do Poder Executivo.
Nos termos do art. 21, VI, do Código de Trânsito Brasileiro, compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição, executar a fiscalização de trânsito, autuar, aplicar as penalidades de advertência, por escrito, e ainda as multas e medidas administrativas cabíveis, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar.
A atividade de fiscalização de trânsito – definida no Código de Trânsito Brasileiro (Anexo I - Dos conceitos e definições) consiste no “ato de controlar o cumprimento das normas estabelecidas na legislação de trânsito, por meio do poder de polícia administrativa de trânsito, no âmbito de circunscrição dos órgãos e entidades executivos de trânsito e de acordo com as competências definidas neste Código.”
Neste sentido dispõe o Código de Trânsito Brasileiro ao estabelecer que:
“Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;
(...)
VI - executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito;
(...)
Evidente que se trata de atribuição conferida a órgão do Poder Executivo, pela própria dicção do termo utilizado “órgão executivo de trânsito”, portanto, inviável sua regulamentação por iniciativa do Poder Legislativo.
Os problemas decorrentes do trânsito nas cidades exigem estudo e planejamento para a adequada solução dos transtornos que podem provocar aos munícipes, atividades relacionadas à gestão administrativa.
Por este motivo, cabe essencialmente ao Poder Executivo, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade e condições do controle de velocidade através da instalação de radares eletrônicos. A atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A propósito do tema esse Colendo órgão Especial já decidiu que:
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal nº 11.501 de 29 de abril de 2014, que: "Regulamenta o funcionamento de radares eletrônicos no Município”. Vicio formal, por desvio do Poder Legislativo. Se a competência que disciplina a gestão administrativa é privativa do Chefe do Poder Executivo, a iniciativa do Legislativo imporia em violação frontal ao texto constitucional que consagra o Princípio da Separação dos Poderes. Ofensa aos artigos 5°: 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. E a atividade de fiscalização de trânsito, no âmbito de circunscrição de órgãos e entidades executivas de trânsito, cabe ao Poder Executivo. Art. 24 do Código de Trânsito Brasileiro. Inconstitucionalidade configurada. - Ação procedente. (ADIN nº 2073444-47.2014.8.26.0000, Rel. Des Péricles Piza, j. 06/08/2014)
Diante
do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 4.139, de 15
de setembro de 2014, do Município de Guarujá.
São Paulo, 18 de dezembro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aca