Parecer em ação direta de inconstitucionalidade
Processo n. 2186885-06.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Mauá
Requerida: Câmara Municipal de Mauá
Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 4.920, de 19 de dezembro de 2013, do Município de Mauá. Instituição do programa de educação e prevenção de acidentes no trânsito, na rede municipal de ensino. Iniciativa Parlamentar. Separação de poderes. Reserva da Administração. Matéria afeta à iniciativa legislativa reservada do Executivo. Procedência da ação. 1. A iniciativa parlamentar de lei local que institui o Programa de Educação e Prevenção de Acidentes no Trânsito, na Rede Municipal de Ensino, é incompatível com o princípio da separação de poderes, e com a reserva da Administração, vez que a disciplina da organização administrativa se materializa por ato normativo do Chefe do Poder Executivo ou, se gera despesa, à sua iniciativa legislativa reservada. 2. Procedência da ação (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II, XIV e XIX, a, 144, e 174, III, da CE/89).
Douto Desembargador Relator,
Colendo Órgão Especial:
Trata-se de ação
direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Mauá
impugnando a Lei n. 4.920, de 19 de dezembro de 2013, do Município de Mauá, de
iniciativa parlamentar, que institui o Programa de Educação e Prevenção de Acidentes no Trânsito, na
Rede Municipal de Ensino,
por contrariedade aos arts. 5º, 25, 47, II, XI e XIV, 111, 144, 174, I, II e
III, e 176, da Constituição do Estado de São Paulo (fls. 1/16).
Concedida a
liminar (fls. 26), o douto Procurador-Geral do Estado absteve-se da defesa da
lei vergastada (fls. 37/39), tendo o Presidente da Câmara Municipal de Mauá,
por sua vez, restado silente em sua faculdade de prestar informações, conforme
se depreende da leitura de fls. 40.
É o relatório.
Não obstante a
meritória iniciativa de fomento social que permeia a lei impugnada, a ação é
procedente.
A lei, em
suma, estabelece a inclusão de atividade extracurricular de ensino para a
Educação e Prevenção de Acidentes no trânsito na Rede Municipal de ensino,
adentrando, indevidamente, na esfera de atuação exclusiva do Poder Executivo.
Desse modo, a
inconstitucionalidade do ato objurgado decorre da indevida iniciativa
parlamentar, agressiva à separação de poderes, porquanto seu objeto é típico
ato de administração ordinária, reservado exclusivamente ao Poder Executivo e
imune da interferência do Poder Legislativo, como se capta dos arts. 2º e 84,
II, III e VI, a, da Constituição
Federal, e dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual. Neste sentido, enuncia a
jurisprudência:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio
constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do
Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa
do Poder Executivo. (...)” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
“(...) 2. As restrições impostas ao exercício das competências
constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas
públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia
entre os Poderes (...)” (STF, ADI-MC-REF 4.102-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Cármen Lúcia, 26-05-2010, v.u., DJe 24-09-2010).
No caso, foi
violentada a reserva da Administração Pública, pois, compete ao Poder Executivo
o exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica
e ordinária, a edição de normas e a disciplina de sua organização e de seu
funcionamento, imune a qualquer ingerência do Poder Legislativo. Neste sentido:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.º 11.830,
DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ADEQUAÇÃO DAS
ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO
PÚBLICOS E PRIVADOS AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES PROFESSADAS NO
ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV; 61, § 1.º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No que toca à Administração Pública estadual, o diploma
impugnado padece de vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembleia
Legislativa gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do
Executivo, corolário do princípio da separação de poderes. Já, ao estabelecer
diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei atacada
revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do Estado, mediante
decreto, sobre a organização e funcionamento de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas (...)”
(RTJ 191/479).
Não bastasse, ainda
que a matéria demandasse lei formal, também padeceria de inconstitucionalidade
a lei local por sua iniciativa parlamentar.
Em se tratando
de processo legislativo é princípio que as normas do modelo federal são
aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido
pronuncia a jurisprudência:
“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem
respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos
Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso,
20-03-2003, v.u.).
“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de
observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI
2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ
25-04-2003, p. 33).
“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a
capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe
a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao
processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa
legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa
iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros
Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).
“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de
que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as
quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância
obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).
“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a
capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a
obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo
legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor
sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo.
(...)” (RTJ 193/832).
A reserva
de iniciativa legislativa se inclui nestes mecanismos, em especial para
organização e funcionamento da Administração (entidades e órgãos do Poder
Executivo), e outorga de respectivas atribuições, quando houver criação ou
extinção de órgãos públicos, programas ou aumento de despesa, segundo se colhe
da leitura conjugada dos arts. 24, § 2º, 2 e 47, XIX, a, da Constituição Estadual. Neste sentido:
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante
projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de
normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à
estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI
3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ
02-12-2005, p. 02).
“À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder
Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do
Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da
Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser
regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º,
II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal)” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).
Ademais, é inegável que a instituição de programa na rede pública de ensino voltado à educação e prevenção de acidentes no trânsito implica em sobrecarga de ônus financeiro, o que demandaria a observância da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.
Quando lei de iniciativa
parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos
demandando diretamente a realização de despesa pública não prevista no
orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte
de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de
inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25 e 174, III, da
Constituição Estadual. Este último preceito reserva ao Chefe do Poder Executivo
iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o E. Supremo
Tribunal Federal:
“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do Estado
do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria Estadual.
Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Precedentes. 4.
Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. Matéria
de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada procedente”
(LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do Estado
do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3.
Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4.
Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6.
Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7.
Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF
v. 29, n. 338, p. 46).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO
PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O
PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO
II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o
projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria
típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração
Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois
Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao
disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil.
3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei
orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição
de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei
atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos
seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para
declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do
Sul” (RTJ 200/1065).
Face ao exposto, opino pela
procedência da ação.
São
Paulo, 15 de janeiro de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
md
bfs