Parecer
Processo nº 2186916-26.2014.8.26.000
Requerente: Prefeito do Município de Mauá
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Mauá
Constitucional. Administrativo. Ação Direta de
Inconstitucionalidade. Lei n. 4.934, de
26 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá. Instituição do “Encontro
longboard de Mauá” no calendário oficial do Município de Mauá. Iniciativa
Parlamentar. Iniciativa reservada. Reserva da Administração. Separação de
poderes. Procedência da ação. 1. A iniciativa parlamentar de lei local, que
institui evento no calendário oficial do Município, impondo a participação do
Poder Executivo em sua organização, é incompatível com a reserva de iniciativa
legislativa do Chefe do Poder Executivo e com a reserva da Administração,
decorrentes do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2,
47, II, XIV e XIX, a). 2. Quando
lei de iniciativa parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou
seus órgãos demandando diretamente a realização de despesa pública não prevista
no orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua
fonte de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de
inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25, 174, III, e 176,
I, CE/89, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das
novas despesas (que não estão previstas) seja porque é reservada ao Chefe do
Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual. 3. Procedência da ação.
Colendo Órgão Especial,
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pela Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei n. 4.934, de 26 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá, que “Institui no calendário oficial de eventos do município, o ‘ENCONTRO LONGBOARD DE MAUÁ’, que se realizará uma vez por ano, no mês de outubro, e dá outras providências.”, sob alegação de violação aos arts. 5°, 25, 47, II, XI, XIV, 111, 144, 174, I, II, III e 176, I e III, da Constituição Paulista.
2. Concedida a liminar (fls. 26/27), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da norma contestada (fls. 36/38) e a Câmara Municipal de Mauá prestou informações às fls. 42/45.
3. É o relatório.
4. A ação é procedente.
5. Não obstante a instituição de data festiva no Município possa ser considerada de iniciativa concorrente, a lei em foco, ao instituir o evento “Encontro longboard de Mauá”, no calendário oficial de eventos do município, invadiu a esfera da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo porque obriga, em seu art. 2°, a participação do Poder Executivo em sua organização.
6.
Além disso, a lei impugnada invadiu a
esfera reservada privativamente à Administração para disciplina do
funcionamento de órgãos subordinados ao Chefe do Poder Executivo.
7. É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
8. Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.
9. Também prevê no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.
10. A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.
11. A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.
12. Pois, ao estabelecer atribuições ao Poder Executivo, de um lado, ela viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo, assunto cuja iniciativa legislativa lhe é reservada.
13.
Neste sentido, a jurisprudência:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE
ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE.
COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.
I. - É de iniciativa do Chefe do Poder
Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição
de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.
II. - As regras do processo legislativo
federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas
de observância obrigatória pelos Estados-membros.
III. - Precedentes do STF.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade
julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos
Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009)
14.
E
como exposto, invade a denominada reserva de Administração, consoante já
decidido:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
15. E se a tanto não bastasse, se, em
linha de princípio, a falta de recursos orçamentários não causa a
inconstitucionalidade de lei, senão sua ineficácia no exercício financeiro
respectivo à sua vigência – porque “inclina-se a jurisprudência no STF no sentido
de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições
constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua
execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01) -,
quando lei de iniciativa parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder
Executivo ou seus órgãos demandando diretamente a realização de despesa pública
não prevista no orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem
indicação de sua fonte de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela
também padece de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25,
174, III, e 176, I, da Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação
de recursos para atendimento das novas despesas (que não estão previstas) seja
porque é reservada ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o
orçamento anual, conforme pronuncia o Supremo Tribunal Federal:
“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do
Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria
Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo.
Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução
da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada
procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do
Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3.
Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4.
Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6.
Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7.
Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF
v. 29, n. 338, p. 46).
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS
MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE
INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi
apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de Administração.
2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública estadual, o
Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois Secretários de
Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao disposto no
artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil. 3. O texto
normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei orçamentária,
colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição de 1988. 4. A
declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica
seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos seus demais
preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para declarar a
inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ
200/1065).
16. Por
fim, a constatação de eventual violação ao art. 111 da CE/89, sob o fundamento
de eventual prejuízo às receitas orçamentárias da saúde e educação, demandaria
o exame de questões de fato, o que é vedado em sede de controle concentrado de
constitucionalidade.
17. Face
ao exposto, opino pela procedência da ação por violação aos arts. 5º, 24, § 2º,
2, 25, e 47, II, XIV e XIX, a, 174,
III e 176, I, da Constituição do Estado.
São Paulo, 12 de janeiro de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aaamj/acssp