Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo n. 2193841-38.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Guarujá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarujá

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Inciso XXV do art. 90 da Lei Orgânica do Município de Guarujá. Norma afeta ao regime jurídico dos servidores públicos. Iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Reserva da administração. Ação procedente. 1. Inciso que estabelece vedação desarrazoada para o provimento de cargo em comissão e de função gratificada no âmbito do Poder Executivo. 2. A disciplina sobre o regime jurídico dos servidores públicos é matéria que se insere na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo e na reserva da Administração (arts. 5º; 24, § 2º, 4, e 47, II, XIV e XIX, a,  e 111 da CE/89). 3. Procedência da ação.

 

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Prefeita Municipal de Guarujá, tendo como alvo o inciso XXV do art. 90, inserido pela Emenda n. 21, de 10 de setembro de 2014, da Lei Orgânica do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a vedação do provimento de cargos em comissão ou de função gratificada por pessoa que tenha prestado serviços a empresas, fundações ou organizações não governamentais ou que tenha contratado ou obtido concessões junto a municipalidade, no período anterior a dois anos de sua nomeação, sob alegação de afronta aos artigos 5°, 24, § 2°, 4, 37, 47, II, XIV, 111, 115, II e 144 da Constituição Paulista.

Processada a ação, concedeu-se medida liminar que determinou a suspensão do ato normativo impugnado (fl. 108).

Citado, o Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa da lei municipal atacada (fls. 114/116).

A Câmara Municipal se manifestou prestando informações (fls. 123/156).

É a síntese necessária.

A ação é procedente.

O postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.

A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Decorrente do princípio da divisão funcional do poder é explícito que as regras acerca do regime jurídico dos servidores públicos são da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (arts. 5º e 24, § 2º, 4, Constituição Estadual), sendo interditado seu tratamento por lei de iniciativa parlamentar.

Deveras, em se tratando de processo legislativo, é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia a jurisprudência:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

 “(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno - artigo 25, caput -, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

Esse concerto, como se sabe, advém do caráter compulsório das regras do processo legislativo federal (arts. 2º e 61, § 1º, II, c, Constituição Federal) no âmbito estadual e municipal (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

Destarte, a iniciativa legislativa da lei local é incompatível com o art. 24, § 2º, 4, da Constituição Estadual, que decorre do princípio da separação de poderes contido no art. 5º da Constituição Estadual (e que reproduzem o quanto disposto nos arts. 2º e 61, § 1º, II, c, da Constituição Federal), aplicáveis aos Municípios por obra de seu art. 144.

Com efeito, assim dispõe o art. 24, § 2º, 4, da Constituição Estadual – que reproduz o art. 61, § 1º, II, c, da Constituição Federal:

 

“Art. 24 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição:

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

4 – servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria”.

 

         Por regime jurídico dos servidores públicos deve-se compreender o “conjunto de normas que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes” (STF, ADI-MC 766-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 03-09-1992, v.u., RTJ 157/460).

         É assente no Supremo Tribunal Federal que a regra do art. 61, § 1º, II, c, da Constituição Federal, reproduzida no art. 24, § 2º, 4, da Constituição Estadual, é de observância obrigatória para Estados e Municípios, por força do princípio da simetria, bem como que a lei que dispõe sobre a situação funcional de servidores públicos, seus direitos e vantagens, é da iniciativa legislativa reservada privativamente ao Chefe do Poder Executivo. Neste sentido, já se decidiu que:

 

“(...) 5. Tratando-se de criação de funções, cargos e empregos públicos ou de regime jurídico de servidores públicos impõe-se a iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo nos termos do art. 61, § 1º, II, da Constituição Federal, o que, evidentemente, não se dá com a Lei Orgânica” (RTJ 205/1041).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 54, VI DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO PIAUÍ. VEDAÇÃO DA FIXAÇÃO DE LIMITE MÁXIMO DE IDADE PARA PRESTAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO. OFENSA AOS ARTIGOS 37, I E 61, § 1º, II, C E F, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Dentre as regras básicas do processo legislativo federal, de observância compulsória pelos Estados, por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes, encontram-se as previstas nas alíneas a e c do art. 61, § 1º, II da CF, que determinam a iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo na elaboração de leis que disponham sobre o regime jurídico e o provimento de cargos dos servidores públicos civis e militares. Precedentes: ADI 774, rel. Min. Sepúlveda Pertence, D.J. 26.02.99, ADI 2.115, rel. Min. Ilmar Galvão e ADI 700, rel. Min. Maurício Corrêa (...)” (RTJ 203/89).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 792, DO ESTADO DE SÃO PAULO. ATO NORMATIVO QUE ALTERA PRECEITO DO ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS ESTADUAIS. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO LEGISLATIVO ESTADUAL. PROJETO DE LEI VETADO PELO GOVERNADOR. DERRUBADA DE VETO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno [artigo 25, caput], impõe a observância obrigatória de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Precedentes. 2. O ato impugnado versa sobre matéria concernente a servidores públicos estaduais, modifica o Estatuto dos Servidores e fixa prazo máximo para a concessão de adicional por tempo de serviço. 3. A proposição legislativa converteu-se em lei não obstante o veto aposto pelo Governador. O acréscimo legislativo consubstancia alteração no regime jurídico dos servidores estaduais. 4. Vício formal insanável, eis que configurada manifesta usurpação da competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo [artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘c’, da Constituição do Brasil]. Precedentes. 5. Ação direta julgada procedente para declarar inconstitucional a Lei Complementar n. 792, do Estado de São Paulo” (STF, ADI 3.167-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 18-06-2007, v.u., DJe 06-09-2007).

“PROJETO - INICIATIVA - SERVIDOR PÚBLICO - DIREITOS E OBRIGAÇÕES. A iniciativa é do Poder Executivo, conforme dispõe a alínea ‘c’ do inciso II do § 1º do artigo 61 da Constituição Federal. PROJETO - COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO EXECUTIVO - SERVIDOR DO ESTADO - EMENDA - AUMENTO DE DESPESA. Resultando da emenda apresentada e aprovada aumento de despesa, tem-se a inconstitucionalidade, consoante a regra do inciso I do artigo 63 da Constituição Federal. PROJETO - COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO EXECUTIVO - EMENDA - POSSIBILIDADE. Se de um lado é possível haver emenda em projeto de iniciativa do Executivo, indispensável é que não se altere, na essência, o que proposto, devendo o ato emanado da Casa Legislativa guardar pertinência com o objetivo visado. PROJETO - COMPETÊNCIA DO EXECUTIVO - EMENDA - PRESERVAÇÃO DE DIREITO ADQUIRIDO. Emenda a projeto do Executivo que importe na ressalva de direito já adquirido segundo a legislação modificada não infringe o texto da Constituição Federal assegurador da iniciativa exclusiva. LICENÇA-PRÊMIO - TRANSFORMAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER EM OBRIGAÇÃO DE DAR - ALTERAÇÃO NORMATIVA - VEDAÇÃO - OBSERVÂNCIA. Afigura-se constitucional diploma que, a um só tempo, veda a transformação da licença-prêmio em pecúnia e assegura a situação jurídica daqueles que já tenham atendido ao fator temporal, havendo sido integrado no patrimônio o direito adquirido ao benefício de acordo com as normas alteradas pela nova regência” (RTJ 194/848).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 109, de 08 de abril de 1994, do Estado de Rondônia. (...) - No mérito, já se firmou o entendimento desta Corte no sentido de que, também em face da atual Constituição, as normas básicas da Carta Magna Federal sobre processo legislativo, como as referentes às hipóteses de iniciativa reservada, devem ser observadas pelos Estados-membros. Assim, não partindo a lei estadual ora atacada da iniciativa do Governador, e dizendo ela respeito a regime jurídico dos servidores públicos civis, foi ofendido o artigo 61, § 1º, II, ‘c’, da Carta Magna. Ação direta que se julga procedente, para declarar-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 109, de 08 de abril de 1994, do Estado de Rondônia” (STF, ADI 1.201-RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 14-11-2002, v.u., DJ 19-12-2002, p. 69).

         Esse colendo Órgão Especial do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo perfilha esse entendimento e vem pronunciando a inconstitucionalidade de normas referentes a servidores:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei do Município de Taubaté (Lei Complementar n. 282 de 2.5.2012) que sofreu emendas parlamentares que trataram de matérias atinentes à jornada de trabalho, ao regime de concessão de licença e à remuneração dos servidores de autarquia municipal. Configurado o excesso do poder de emendar, na medida em que as alterações introduzidas referem-se à matéria de iniciativa do Chefe do Executivo. Inconstitucionalidade formal e

desrespeito à separação de poderes. Afronta aos artigos 5o; 24, §2° e 144 da Constituição Bandeirante. Ação procedente, modulados os efeitos em relação aos ocupantes de cargos de eletricista nível I e mecânico de manutenção de máquinas e equipamentos, os quais, diante da boa-fé, não serão condenados à devolução dos valores a maior porventura recebidos.” (ADI 0190756-49.2012.8.26.0000, Rel. Des. Enio Santarelli Zuliani, j. 08-05-2013).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Município de Águas de São Pedro - Lei Municipal n° 1.608, de 28 de outubro de 2011, que ‘Autoriza a ampliação da licença maternidade às Servidoras Públicas Municipais de Águas de São Pedro e dá providências’ - Iniciativa parlamentar - Lei concernente ao regime público dos servidores municipais - Iniciativa privativa do Chefe do Executivo - Violação da regra da separação de poderes - Violação dos artigos 5; 24, § 2º, item 4; 25; 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo - Precedentes - Inconstitucionalidade reconhecida - Ação procedente” (ADI 0049652-69.2012.8.26.0000, Rel. Des. De Santi Ribeiro, v.u., 29-08-2012).

         No caso, foi violentada a própria reserva da Administração Pública, pois compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica e ordinária e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).

         A regulamentação referente ao provimento dos cargos em comissão e das funções de confiança é da inerência da típica gestão ordinária da administração, situando-se no domínio da reserva da Administração, espaço conferido com exclusividade ao Chefe do Poder Executivo no âmbito de seu poder normativo imune a interferências do Poder Legislativo, e que se radica na gestão ordinária dos negócios públicos, como se infere dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual, aplicável na esfera municipal por força de seu art. 144 e do art. 29, caput, da Constituição Federal.

         O dispositivo, além disso, mostra-se desarrazoado, afrontando, assim, o art. 111 da Carta Paulista.

Posto isso, aguarda-se seja julgada procedente a ação.

São Paulo, 10 de fevereiro de 2015.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

ef/acssp