Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2194794-02.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Mauá

Requerido: Mesa da Câmara Municipal de Mauá

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.931, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de aparelhos de Raios-X em todos os postos de saúde do município e dá outras providências”.

2)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional. Ademais, à luz do art. 125, § 2º, CF/88, o contencioso estadual de constitucionalidade de ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, não cabendo alegação de ofensa à Constituição Federal.

3)      Encontra-se na reserva da administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização e regulamentação dos serviços públicos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar, pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (arts. 25 e 176, I, da Constituição Estadual).  

4)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 47, II, XIV e XIX, e 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

         Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei n. 4.931, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de aparelhos de Raios-X em todos os postos de saúde do município e dá outras providências”.

         Em linhas gerais, sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes, criar despesas sem a indicação da fonte de custeio e em desrespeito às regras orçamentárias, além de violar princípios constitucionais estaduais e federais afetos à Administração Pública.

         Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º; 25; 47, II, XI e XIV; 144; 174, I, II e III; e 176, todos da Constituição do Estado de São Paulo, dos arts. 2º; 29; 37; 84, II, III e XXVII; 165; e 167, I, II, III e V, da Constituição Federal, bem ainda a dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal.

         Foi deferida a liminar para suspender, com efeito ex nunc, a eficácia da Lei n. 4.931, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá (fls. 57/58).

         Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar-se de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 69/71).

         Conforme certidão de fl. 72, decorreu o prazo legal sem a apresentação de informações pelo Presidente da Câmara Municipal.

         Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

PRELIMINARMENTE

Limite de confronto no controle direto de constitucionalidade

         Deve-se consignar que, no processo objetivo, materializado através da ação direta de inconstitucionalidade, só se mostra viável o confronto direto entre a norma impugnada e os dispositivos constitucionais que figuram como parâmetro de controle.

         Tal entendimento é absolutamente pacífico e conhecido, dele decorrendo a impossibilidade de exame das alegações de incompatibilidade entre a lei analisada na ação direta e preceitos legais situados na legislação infraconstitucional.

         Inconstitucionalidades indiretas ou reflexas, ou mesmo decorrentes de questões de fato, não podem ser aferidas. O único exame que se faz, no processo objetivo, decorre do confronto direto entre o ato normativo impugnado e o parâmetro constitucional (na hipótese, apenas estadual) adotado para fins de controle (STF, ADI 2.714, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 13-3-03, DJ de 27-2-04; ADI-MC 1347 /DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 05/09/1995, Tribunal Pleno, DJ 01-12-1995, p.41685, EMENT VOL-01811-02, p.00241, g.n.; ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546).

         Tem prevalecido na doutrina e na jurisprudência, nesse tema, o sentido de que, no processo objetivo, a única avaliação admissível é aquela referente à questão de direito, no confronto direto entre a lei e o texto constitucional.

Ademais, à luz do art. 125, § 2º, CF/88, o contencioso estadual de constitucionalidade de ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, não cabendo alegação de ofensa à Constituição Federal.

         A esse propósito, é oportuno averbar a advertência feita pelo i. Min. Celso de Mello, do E. STF: “A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na Constituição. A válida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame ‘in abstracto’ do ato estatal impugnado seja realizado exclusivamente à luz do texto constitucional. Desse modo, a inconstitucionalidade deve transparecer diretamente do texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode e nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da prévia análise de outras espécies jurídicas infraconstitucionais, para, somente a partir desse exame e num desdobramento exegético ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegitimidade constitucional do ato questionado” (ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546, g.n.).

         A apreciação da ação deve se restringir, portanto, à argumentada incompatibilidade entre a norma impugnada e a Constituição do Estado de São Paulo, sob pena de violação ao art. 102, I, “a”, e ao art. 125, § 2º, ambos da CF.

DO MÉRITO

         Caso superada a preliminar, o pedido deve ser julgado procedente.

         A Lei n. 4.931, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de aparelhos de Raios-X em todos os postos de saúde do município e dá outras providência”, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:

Lei nº 4.931, de 11 de fevereiro de 2014

Dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de aparelhos de Raios-X em todos os postos de saúde do município e dá outras providências.

Art. 1º - O Poder Executivo instalará aparelhos de Raios-X em todos os postos de saúde do município.

Art. 2º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei onerarão as verbas próprias do orçamento vigente.

Art. 3º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”. (sic)

         O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II e XIV, infringindo, também o inciso XIX, a, do referido artigo 47, da Constituição Estadual. Ademais, ao criar despesas para o erário municipal, sem indicar a respectiva fonte de custeio, ofendeu os artigos 25 e 176, I, da Carta Bandeirante.

         Referidos dispositivos são aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, e dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX – dispor, mediante decreto, sobre:

a)     organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Art. 176 - São vedados:

I - o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual;

(...)”

         A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

         A obrigatoriedade de instalação de aparelhos de raios X em todos os postos de saúde do Município de Mauá consiste em matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo de Chefe do Executivo.

         Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades públicas. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

         Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita à iniciativa legislativa do Poder Legislativo. Logo, este não pode, através de lei, ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

         Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, a fim de determinar que se proceda à instalação de equipamentos em todos os postos de saúde da urbe, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

         Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade quanto aos serviços públicos que serão oferecidos nos postos de saúde municipais, decisão fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

         A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

         É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

         O legislador municipal, na hipótese analisada, tratou da gestão de serviços públicos para a Administração Pública local.

         Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, os quais, em primeira análise, demonstram-se louváveis, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

         Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

         A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e XIV da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

         Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.  

         Assim, a Lei, ao regulamentar um serviço público, ainda que parcialmente, viola os arts. 5º e 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração, à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é de alçada da reserva da Administração.

         Para cumprimento efetivo da lei impugnada, são necessárias diversas providências por parte do Município, notadamente em relação à adequação da estrutura física das unidades de saúde e contratação de profissionais especializados em radiologia. 

         Por isso que, de outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

         Isto é, a norma combatida, ao impor ao Município o encargo de equipar todas as unidades de saúde com aparelhos de raios X, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes, como acima mencionado e cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos.

         Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

         A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.     

         Por fim, não há que se falar em inobservância do artigo 174 da Constituição Estadual, visto o diploma normativo objurgado não se refere especialmente ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias e ao orçamento.

         Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 4.931, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá.

              São Paulo, 09 de março de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

ef/mjap