Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 2194797-54.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Mauá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Mauá

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.932, de 26 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação do serviço de capelania no velório municipal e dá outras providências”.

2)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

3)      Mérito. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). 

4)     Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, nº 2; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo). Parecer pela procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 4.932, de 26 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação do serviço de capelania no velório municipal e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação de poderes e por criar despesas sem previsão de receita. Daí a alegação de violação dos arts. 1º, 5º, 25, 47, II, XI e XIV, 174 e 176, I e III, da Constituição Estadual e arts. 1º e 16, da Lei de Responsabilidade Fiscal (fls. 01/21).

A liminar foi deferida, para a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado, fls. 34/35.

Devidamente notificado (fl. 48), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações a fls. 50/55, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Citado regularmente (fl. 46), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 41/43).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

DA ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Federal nº 101/2000).

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei Municipal nº 4.932, de 26 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a criar o serviço de capelania no velório municipal.

Art. 2º. O Poder Executivo cederá um espaço no velório municipal para o capelão prestar assistência espiritual e aconselhamento aos parentes e amigos enlutados que necessitarem e solicitarem.

Art. 3º. Os capelães serão voluntários e pertencentes a qualquer religião que não atente contra a disciplina e a moral.

Art. 4º. Os capelães deverão ser indicados por organizações religiosas estabelecidas no município que estejam legalmente constituídas e que se responsabilizarão por sua conduta e também por ser treinamento.

Art. 5º. Os capelães serão cadastrados na prefeitura e serão informados por telefone pela administração do velório toda vez que chegar um corpo para ser velado em suas dependências.

Art. 6º. Fica o Poder Executivo autorizado a contribuir com ajuda financeira para gastos com transporte, refeição e outros custos do voluntário capelão.

Art. 7º. Cabe ao Poder Executivo, através de regulamentação, definir e editar normas complementares necessárias à execução da presente Lei.

Art. 8º. As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de dotações do orçamento a serem consignadas para o próximo exercício.

Art. 9º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas disposições em contrário.

(...)”

DAS INCONSTITUCIONALIDADES

O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A disponibilização de espaço em velório municipal para o serviço “capelania”, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode por meio de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, autorizando a criação do serviço de “capelania” em velório municipal, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação e regulamentação dos serviços em benefício dos cidadãos. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei, ao instituir condições da prestação de serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida, ao impor ao Município o encargo de ceder um espaço no velório municipal para o capelão prestar assistência espiritual e aconselhamento aos parentes e amigos enlutados (art. 2º), bem como contribuição financeira para gastos com transporte, refeição e outros custos do capelão (art. 6º), não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

         Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.932, de 26 de fevereiro de 2014, do Município de Mauá.

 

              São Paulo, 16 de janeiro de 2015.

 

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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