Parecer
Processo n. 2199592-06.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos
Requerida: Câmara Municipal de Guarulhos
Constitucional.
Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 7.293, de 14 de agosto
de 2014, do Município de Guarulhos. Organização administrativa. Obrigatoriedade
de impressão do calendário oficial de vacinação nas contracapas dos cadernos
e/ou agendas distribuídos aos alunos das escolas da rede municipal de ensino.
Iniciativa parlamentar. Separação de poderes. Reserva de iniciativa legislativa
do Chefe do Poder Executivo. Reserva da Administração. Procedência da ação. 1. Parâmetro
exclusivo da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal é a
Constituição Estadual, sendo defeso seu contraste com a legislação municipal. 2. Lei n. 7.293/14, do Município de Guarulhos,
de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a obrigatoriedade de impressão do calendário oficial de vacinação nas
contracapas dos cadernos e/ou agendas distribuídos aos alunos das escolas da
rede municipal de ensino. 3. Incompatibilidade com o princípio da separação de
poderes em virtude da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do
Poder Executivo pela conferência de atribuições a órgãos do Poder Executivo
(arts. 5º; 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV e XIX, a, CE/89). 4. Quando lei de iniciativa parlamentar
cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos demandando
diretamente a realização de despesa pública não prevista no orçamento para
atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura
inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de
inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25, 174, III, e 176,
I, CE/89, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das
novas despesas (que não estão previstas) seja porque é reservada ao Chefe do
Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual. 5. Procedência da ação.
Douto Relator,
Colendo Órgão Especial:
Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo
Prefeito do Município de Guarulhos impugnando a Lei municipal n. 7.293, de 14
de agosto de 2014, de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que torna obrigatória
a impressão do calendário oficial de vacinação nas contracapas dos cadernos
e/ou agendas distribuídos aos alunos das escolas da rede municipal de ensino,
alegando violação aos arts. 5º; 25; 47, II, XIV e XIX, a; 144 e 176, I, da Constituição Estadual (fls. 01/22). Concedida a
liminar (fls. 41/43), a Câmara Municipal de Guarulhos prestou informações (fls.
59/65) defendendo a improcedência da ação e a douta Procuradoria-Geral do
Estado declinou da defesa da lei vergastada (fls. 55/57).
É
o relatório.
O contencioso de constitucionalidade de lei municipal
tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º,
Constituição Federal), sendo inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica
Municipal (fls. 12 e 15).
Qualquer alegação fundada em
norma infraconstitucional, não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para
aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª
Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).
A produção normativa não pode
transitar à margem das regras inerentes ao processo legislativo, cujas normas
constitucionais centrais são de observância obrigatória (RT 850/180; RTJ
193/832).
Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao
Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de
agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a
devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa
reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:
“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
Fixadas estas premissas, as
reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos
públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas
restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo
legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros.
Neste sentido, colhe-se
da Suprema Corte:
“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).
“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).
“A disciplina
jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente
constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os
princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles
que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do
processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis,
adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente
constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da
própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em
conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito
positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao
Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa”
(STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u.,
DJ 07-12-2006, p. 36).
Postulado básico da
organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art.
5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos
Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual.
Este
dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na
ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes
que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas
de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é
fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:
“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
Como consequência do princípio da separação dos
poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição
Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por
outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função
administrativa, como dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em
essência, a separação ou divisão de poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
Também por decorrência do citado princípio da
separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um
sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou
de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como
observa a doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).
(...)
A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
Assim, se em princípio a competência normativa é
do domínio do Poder Legislativo, matérias de natureza eminentemente
administrativa são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo ou à
denominada reserva da Administração (arts. 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, a).
Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art.
144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: (a) a
iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por
sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; (b) ao
Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa
reservada em matérias inerentes à Administração Pública; (c) há matérias
administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade
consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma
do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória
da iniciativa legislativa:
“Leis de
iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que
a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do
prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da
competência municipal” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
A criação de programas e
serviços públicos a cargo do Poder Executivo, adicionada à respectiva conferência de atribuições e competências, e a
disciplina da organização e funcionamento da Administração Pública e de órgãos
do Poder Executivo, é matéria da reserva de iniciativa legislativa de seu
Chefe, como proclama pacífica jurisprudência:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.
I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.
II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.
III. - Precedentes do STF.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.835/2001 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. INCLUSÃO DOS NOMES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS INADIMPLENTES NO SERASA, CADIN E SPC. ATRIBUIÇÕES DA SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA. INICIATIVA DA MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A lei 6.835/2001, de iniciativa da Mesa da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, cria nova atribuição à Secretaria de Fazenda Estadual, órgão integrante do Poder Executivo daquele Estado. À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal). Inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa da lei ora atacada” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).
“III - Independência e Separação dos Poderes: processo legislativo: iniciativa das leis: competência privativa do Chefe do Executivo. Plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade de expressões e dispositivos da lei estadual questionada, de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos específicos da Administração Pública, criação de cargos e funções públicos e estabelecimento de rotinas e procedimentos administrativos, que são de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (CF, art. 61, § 1º, II, e), bem como dos que invadem competência privativa do Chefe do Executivo (CF, art. 84, II)” (STF, ADI-MC 2.405-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, 06-11-2002, DJ 17-02-2006, p. 54).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE ORIGEM PARLAMENTAR. ORGANIZAÇÃO DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. As regras previstas na Constituição Federal para o processo legislativo aplicam-se aos Estados-membros. Compete exclusivamente ao Governador a iniciativa de leis que cuidem da estruturação e funcionamento de órgãos vinculados ao Poder Executivo (CF, artigos 61, § 1º, II, ‘e’; e 144, § 6º). Precedentes. Inconstitucionalidade da Lei 10890/01, do Estado de São Paulo. Ação julgada procedente” (STF, ADI 2646-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 23-05-2003, p. 30).
“CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE - LIMINAR. Há o sinal do bom direito e o risco de manter-se com plena eficácia o quadro quando o diploma atacado resultou de iniciativa parlamentar e veio a disciplinar programa de desenvolvimento estadual - submetendo-o à Secretaria de Estado - a dispor sobre a estrutura funcional pertinente. Segundo a Carta da República, incumbe ao chefe do Poder Executivo deflagrar o processo legislativo que envolva órgão da Administração Pública - alínea ‘e’ do § 1º do artigo 61 da Constituição Federal” (STF, ADI-MC 2.799-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 01-04-2004, v.u., DJ 21-05-2004, p. 31).
“CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CRIAÇÃO DE ÓRGÃOS PÚBLICOS. INICIATIVA LEGISLATIVA RESERVADA. C.F., art. 61, § 1º, II, a, c e e, art. 63, I; Lei 13.145/2001, do Ceará, art. 4º; Lei 13.155/2001, do Ceará, artigos 6º, 8º e 9º, Anexo V, referido no art. 1º. I. - As regras do processo legislativo, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros. Precedentes do STF. II. - Leis relativas à remuneração do servidor público, que digam respeito ao regime jurídico destes, que criam ou extingam órgãos da administração pública, são de iniciativa privativa do Chefe do Executivo. C.F., art. 61, § 1º, II, a, c e e. III. - Matéria de iniciativa reservada: as restrições ao poder de emenda - C.F., art. 63, I - ficam reduzidas à proibição de aumento de despesa e à hipótese de impertinência de emenda ao tema do projeto. Precedentes do STF. IV - ADI julgada procedente” (STF, ADI 2.569-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 19-03-2003, v.u., DJ 02-05-2003, p. 26).
“O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. - Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar - em face do seu caráter excepcional - de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em ‘numerus clausus’, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. - O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo” (STF, ADI-MC 776-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 23-10-1992, v.u., DJ 15-12-2006, p. 80).
Ora, reproduzindo o art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, o art. 24, §
2º, 2, da Constituição Estadual, confere exclusiva iniciativa legislativa ao
Chefe do Poder Executivo para criação de órgãos da Administração Pública
(compreendendo a descrição de suas atribuições e competências, programas e
serviços públicos) e disciplina da organização e funcionamento da Administração
Pública quando houver aumento de despesa.
Sem embargo da reserva de iniciativa legislativa
também decorre do princípio da divisão funcional do poder a reserva da Administração
Pública, pois, compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior,
a prática de atos de administração típica e ordinária e a disciplina de sua
organização e de seu funcionamento (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).
A instituição
de programas destinados à execução de políticas públicas, executados direta ou
indiretamente pelo poder público, e, enfim, da organização e funcionamento da
Administração Pública (quando não houver aumento de dispêndio público),
situa-se no domínio da reserva da Administração, espaço conferido com
exclusividade ao Chefe do Poder Executivo no âmbito de seu poder normativo
imune a interferências do Poder Legislativo, e que se radica na gestão
ordinária dos negócios públicos, como se infere dos arts. 5º e 47, II, XIV e
XIX, a, da Constituição Estadual,
aplicável na esfera municipal por força de seu art. 144 e do art. 29 caput da Constituição Federal.
A Constituição Paulista prevê
no art. 47 competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo
consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas
competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada
reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva,
imunes à interferência do Poder Legislativo.
A alínea a do
inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de
dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração
estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de
órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV
estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a
prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder
Executivo, enraizando-se no art. 84, II, da Constituição de 1988.
Esses assuntos são privativos do poder normativo
do Chefe do Poder Executivo, como já se decidiu:
“(...) 2. As restrições impostas ao exercício das competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes (...)” (STF, ADI-MC-REF 4.102-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, 26-05-2010, v.u., DJe 24-09-2010).
“(...) O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. (...)” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.º 11.830,
DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ADEQUAÇÃO DAS
ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO
PÚBLICOS E PRIVADOS AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES PROFESSADAS NO
ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV; 61, § 1.º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No que toca à Administração Pública estadual, o diploma
impugnado padece de vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembleia
Legislativa gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do
Executivo, corolário do princípio da separação de poderes. Já, ao estabelecer
diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei
atacada revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do Estado,
mediante decreto, sobre a organização e funcionamento de órgãos
administrativos, no caso das escolas públicas (...)” (RTJ 191/479).
Assim equacionada a questão,
tem-se, sem dúvida, que a iniciativa da lei local é incompatível com os arts.
5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a,
da Constituição Estadual.
E se a tanto não bastasse, se,
em linha de princípio, a falta de recursos orçamentários não causa a
inconstitucionalidade de lei, senão sua ineficácia no exercício financeiro
respectivo à sua vigência – porque “inclina-se a jurisprudência no STF no
sentido de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições
constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua
execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01) -,
quando lei de iniciativa parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder
Executivo ou seus órgãos demandando diretamente a realização de despesa pública
não prevista no orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem
indicação de sua fonte de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela
também padece de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25,
174, III, e 176, I, da Constituição Estadual, seja porque aquele exige a
indicação de recursos para atendimento das novas despesas (que não estão
previstas) seja porque é reservada ao Chefe do Poder Executivo iniciativa
legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o Supremo Tribunal
Federal:
“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do
Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria
Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo.
Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução
da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada
procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do
Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3.
Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4.
Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6.
Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7.
Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF
v. 29, n. 338, p. 46).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.
10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE
ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA
ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, §
1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa,
vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de
matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na
Administração Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre
outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o
Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da
Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a
elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso
III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos
artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de
inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5.
Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n.
10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ 200/1065).
Portanto,
a lei local objurgada é inconstitucional porque viola os arts. 5º, 24, § 2º, 2,
25, 47, II, XIV e XIX, a, 174, III e
176, I, da Constituição Estadual.
Opino
pela procedência da ação para declarar a incompatibilidade da Lei n. 7.293, de 14
de agosto de 2014, do Município de Guarulhos, com arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25,
47, II, XIV e XIX, a, 174, III e 176,
I, da Constituição Estadual.
São
Paulo, 08 de janeiro de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
md/mam