Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2200083-13.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Mirassol

Requerida: Presidente da Câmara Municipal de Mirassol

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 3.690, de 20 de outubro de 2014, do Município de Mirassol. Organização administrativa. Autorização para transporte coletivo de estudantes universitários, atletas amadores e grupos folclóricos pelo Município. Iniciativa parlamentar. Lei autorizativa. Separação de poderes. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Reserva da Administração. Procedência da ação. 1. Lei n. 3.690/14, do Município de Mirassol, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a autorização para transporte coletivo de estudantes universitários, atletas amadores e grupos folclóricos pelo Município. 2. A disciplina da organização e funcionamento da Administração Pública e das atividades dos órgãos do Poder Executivo é matéria que se insere na reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo se houver geração de despesa pública, e na reserva da Administração se não houver (arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, CE/89). 3. Quando lei de iniciativa parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos demandando diretamente a realização de despesa pública não prevista no orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25, 174, III, e 176, I, CE/89, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das novas despesas (que não estão previstas) seja porque é reservada ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual. 4. Procedência da ação.

 

 

 

Douto Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Mirassol impugna a Lei n. 3.690, de 20 de outubro de 2014, do Município de Mirassol, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a autorização para transporte coletivo de estudantes universitários, atletas amadores e grupos folclóricos pelo Município, alegando vício de iniciativa, privação da possibilidade da Administração agir segundo critérios de conveniência e oportunidade, bem como a criação de despesa sem a indicação de recursos, e a conseguinte violação aos arts. 5º, 25, 47, incisos II e XIV, 74, inciso VI, 90, inciso II e 144 da Constituição Estadual (fls. 01/19).

2.                A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da lei vergastada (fls. 37/39), e transcorreu in albis o prazo para a Câmara Municipal de Suzano apresentar informações (fl. 40).

3.                É o relatório.

4.                Assim dispõe o ato normativo impugnado:

“(...)

Art.1º - Fica o Município de Mirassol, por intermédio do Chefe do Poder Executivo Municipal, autorizado a fornecer transporte coletivo para os Estudantes Universitários matriculados em instituições de ensino em outras cidades, aos atletas amadores de todas as categorias que participem de eventos e/ou campeonatos fora de nossa cidade e Grupos Folclóricos que realizem e/ou participem de eventos e apresentações em demais localidades.

Art. 2º - As despesas decorrentes desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, consignadas no orçamento vigente e suplementadas, se necessário.

Art. 3º - Esta Lei será regulamentada no que couber pelo Poder Executivo, no prazo de 60 (sessenta) dias.

Art. 4º - Esta Lei entra em vigor 60 (sessenta) dias após a data de sua publicação.

(...)”

5.                A ação deve ser julgada procedente.

6.                A produção normativa não pode transitar à margem das regras inerentes ao processo legislativo, cujas normas constitucionais centrais são de observância obrigatória (RT 850/180; RTJ 193/832).

7.                Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

8.                Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).

9.                Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual.

10.              Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:

“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

11.              Como consequência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

12.              Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).

(...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

13.              Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, matérias de natureza eminentemente administrativa são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo ou à denominada reserva da Administração (arts. 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, a).

14.              Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: (a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; (b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; (c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:

“Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

15.              A criação de órgãos, programas, e serviços públicos a cargo do Poder Executivo, adicionada à respectiva conferência de atribuições e competências, e a disciplina da organização e funcionamento da Administração Pública e de órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva de iniciativa legislativa de seu Chefe, como proclama pacífica jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.835/2001 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. INCLUSÃO DOS NOMES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS INADIMPLENTES NO SERASA, CADIN E SPC. ATRIBUIÇÕES DA SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA. INICIATIVA DA MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A lei 6.835/2001, de iniciativa da Mesa da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, cria nova atribuição à Secretaria de Fazenda Estadual, órgão integrante do Poder Executivo daquele Estado. À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal). Inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa da lei ora atacada” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

III - Independência e Separação dos Poderes: processo legislativo: iniciativa das leis: competência privativa do Chefe do Executivo. Plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade de expressões e dispositivos da lei estadual questionada, de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos específicos da Administração Pública, criação de cargos e funções públicos e estabelecimento de rotinas e procedimentos administrativos, que são de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (CF, art. 61, § 1º, II, e), bem como dos que invadem competência privativa do Chefe do Executivo (CF, art. 84, II)” (STF, ADI-MC 2.405-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, 06-11-2002, DJ 17-02-2006, p. 54).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE ORIGEM PARLAMENTAR. ORGANIZAÇÃO DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. As regras previstas na Constituição Federal para o processo legislativo aplicam-se aos Estados-membros. Compete exclusivamente ao Governador a iniciativa de leis que cuidem da estruturação e funcionamento de órgãos vinculados ao Poder Executivo (CF, artigos 61, § 1º, II, ‘e’; e 144, § 6º). Precedentes. Inconstitucionalidade da Lei 10890/01, do Estado de São Paulo. Ação julgada procedente” (STF, ADI 2646-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 23-05-2003, p. 30).

“CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE - LIMINAR. Há o sinal do bom direito e o risco de manter-se com plena eficácia o quadro quando o diploma atacado resultou de iniciativa parlamentar e veio a disciplinar programa de desenvolvimento estadual - submetendo-o à Secretaria de Estado - a dispor sobre a estrutura funcional pertinente. Segundo a Carta da República, incumbe ao chefe do Poder Executivo deflagrar o processo legislativo que envolva órgão da Administração Pública - alínea ‘e’ do § 1º do artigo 61 da Constituição Federal” (STF, ADI-MC 2.799-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 01-04-2004, v.u., DJ 21-05-2004, p. 31).

“CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CRIAÇÃO DE ÓRGÃOS PÚBLICOS. INICIATIVA LEGISLATIVA RESERVADA. C.F., art. 61, § 1º, II, a, c e e, art. 63, I; Lei 13.145/2001, do Ceará, art. 4º; Lei 13.155/2001, do Ceará, artigos 6º, 8º e 9º, Anexo V, referido no art. 1º. I. - As regras do processo legislativo, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros. Precedentes do STF. II. - Leis relativas à remuneração do servidor público, que digam respeito ao regime jurídico destes, que criam ou extingam órgãos da administração pública, são de iniciativa privativa do Chefe do Executivo. C.F., art. 61, § 1º, II, a, c e e. III. - Matéria de iniciativa reservada: as restrições ao poder de emenda - C.F., art. 63, I - ficam reduzidas à proibição de aumento de despesa e à hipótese de impertinência de emenda ao tema do projeto. Precedentes do STF. IV - ADI julgada procedente” (STF, ADI 2.569-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 19-03-2003, v.u., DJ 02-05-2003, p. 26).

“O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. - Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar - em face do seu caráter excepcional - de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em ‘numerus clausus’, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. - O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo” (STF, ADI-MC 776-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 23-10-1992, v.u., DJ 15-12-2006, p. 80).

16.              Ora, reproduzindo o art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, o art. 24, § 2º, 2, da Constituição Estadual, confere exclusiva iniciativa legislativa ao Chefe do Poder Executivo para criação de órgãos da Administração Pública (compreendendo a descrição de suas atribuições e competências, programas e serviços públicos) e disciplina da organização e funcionamento da Administração Pública quando houver aumento de despesa.

17.              Sem embargo da reserva de iniciativa legislativa também decorre do princípio da divisão funcional do poder a reserva da Administração Pública, pois, compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica e ordinária e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).

18.              A instituição de programas destinados à execução de políticas públicas, executados direta ou indiretamente pelo poder público, e, enfim, da organização e funcionamento da Administração Pública (quando não houver aumento de dispêndio público), situa-se no domínio da reserva da Administração, espaço conferido com exclusividade ao Chefe do Poder Executivo no âmbito de seu poder normativo imune a interferências do Poder Legislativo, e que se radica na gestão ordinária dos negócios públicos, como se infere dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual, aplicável na esfera municipal por força de seu art. 144 e do art. 29 caput da Constituição Federal.

19.              A Constituição Paulista prevê no art. 47 competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

20.              A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo, enraizando-se no art. 84, II, da Constituição de 1988.

21.              Esses assuntos são privativos do poder normativo do Chefe do Poder Executivo, como já se decidiu:

“(...) 2. As restrições impostas ao exercício das competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes (...)” (STF, ADI-MC-REF 4.102-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, 26-05-2010, v.u., DJe 24-09-2010).

“(...) O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. (...)” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.º 11.830, DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ADEQUAÇÃO DAS ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO PÚBLICOS E PRIVADOS AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES PROFESSADAS NO ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV; 61, § 1.º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No que toca à Administração Pública estadual, o diploma impugnado padece de vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembleia Legislativa gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do Executivo, corolário do princípio da separação de poderes. Já, ao estabelecer diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei atacada revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do Estado, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas (...)” (RTJ 191/479).

22.              Assim equacionada a questão, tem-se, sem dúvida, que a iniciativa da lei local é incompatível com os arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

23.              Nem se alegue que a lei contém mera autorização. A natureza de lei autorizativa não desabona a conclusão de sua inconstitucionalidade.

24.              A autorização legislativa não se confunde com lei autorizativa, devendo aquela primar pela observância da reserva de iniciativa. Ainda que a lei contenha autorização (lei autorizativa) ou permissão (norma permissiva), padece de inconstitucionalidade. Em essência, houve invasão manifesta da gestão pública, assunto da alçada exclusiva do Chefe do Poder Executivo, violando sua prerrogativa de análise da conveniência e da oportunidade das providências previstas na lei.

25.              Lição doutrinária abalizada, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina que:

“(...) insistente na prática legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Sérgio Resende de Barros. “Leis Autorizativas”, in Revista da Instituição Toledo de Ensino, Bauru, ago/nov 2000, p. 262).

26.              A lei que autoriza o Poder Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto, inconstitucional.

27.              Neste sentido, vem julgando este egrégio Tribunal, afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que essas “autorizações” são mero eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o princípio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (TJSP, ADI 142.519-0/5-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, 15-08-2007).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALÍDADE - LEI N° 2.057/09, DO MUNICÍPIO DE LOUVEIRA - AUTORIZA O PODER EXECUTIVO A COMUNICAR O CONTRIBUINTE DEVEDOR DAS CONTAS VENCIDAS E NÃO PAGAS DE ÁGUA, IPTU, ALVARÁ A ISS, NO PRAZO MÁXIMO DE 60 DIAS APÓS O VENCIMENTO – INCONSTITUCIONALÍDADE FORMAL E MATERIAL - VÍCIO DE INICIATIVA E VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - INVASÃO DE COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO - AÇÃO PROCEDENTE.

A lei inquinada originou-se de projeto de autoria de vereador e procura criar, a pretexto de ser meramente autorizativa, obrigações e deveres para a Administração Municipal, o que redunda em vício de iniciativa e usurpação de competência do Poder Executivo. Ademais, a Administração Pública não necessita de autorização para desempenhar funções das quais já está imbuída por força de mandamentos constitucionais” (TJSP, ADI 994.09.223993-1, Rel. Des. Artur Marques, v.u., 19-05-2010).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal n° 2.531, de 25 de novembro de 2009, do Município de Andradina, 'autorizando' o Poder Executivo Municipal a conceder a todos os alunos das escolas municipais auxílio pecuniário para aquisição de material escolar, através de vale-educação no comércio local. Lei de iniciativa da edilidade, mas que versa sobre matéria reservada à iniciativa do Chefe do Executivo. Violação aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado. Não obstante com caráter apenas 'autorizativo', lei da espécie usurpa a competência material do Chefe do Executivo. Ação procedente” (TJSP, ADI 994.09.229479-7, Rel. Des. José Santana, v.u., 14-07-2010).

28.              A argumentação da natureza autorizativa da norma e da inércia na execução da lei não elide a conclusão de sua inconstitucionalidade. Essa questão foi bem examinada pela Suprema Corte que assim manifestou:

“5. Não é tolerável, com efeito, que, como está prestes a ocorrer neste caso, o Governador do Estado, à mercê das veleidades legislativas, permaneça durante tempo imprevisível com uma lei inconstitucional a tiracolo, ou, o que o seria ainda pior, seja compelido a transmiti-la a seu sucessor, com as conseqüências de ordem política daí derivadas” (STF, ADI-MC 2.367-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 05-04-2001, v.u., DJ 05-03-2004, p. 13).

29.              E se a tanto não bastasse, se, em linha de princípio, a falta de recursos orçamentários não causa a inconstitucionalidade de lei, senão sua ineficácia no exercício financeiro respectivo à sua vigência – porque “inclina-se a jurisprudência no STF no sentido de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01) -, quando lei de iniciativa parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos demandando diretamente a realização de despesa pública não prevista no orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25, 174, III, e 176, I, da Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das novas despesas (que não estão previstas) seja porque é reservada ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o Supremo Tribunal Federal:

“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3. Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 338, p. 46).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ 200/1065).

30.              Portanto, a lei local objurgada é inconstitucional porque viola os arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II, XIV e XIX, a, 174, III e 176, I, da Constituição Estadual.

31.              Opino pela procedência da ação para declarar a incompatibilidade da Lei n. 3.690, de 20 de outubro de 2014, do Município de Mirassol, com arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II, XIV e XIX, a, 174, III e 176, I, da Constituição Estadual.

                           

São Paulo, 06 de março de 2015.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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