Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2200110-93.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Duartina

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Duartina

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Leis nºs 1.316, de 25 de maio de 1993 e 1.504, de 07 de outubro de 1997, o art. 25 da Lei nº 1.723, de 08 de dezembro de 2003, e o art. 16-A da Lei nº 2.002, de 26 de janeiro de 2010, todas do Município de Duartina, que dispõe acerca do benefício de complementação de aposentadoria a servidores municipais.

2)      Sob o pálio do art. 125, § 2º, CF/88, não é admissível o contraste da lei local impugnada com a Constituição Federal ou normas infraconstitucionais, dado que o exclusivo parâmetro da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal é a Constituição Estadual.

3)        A seguridade social deve ser custeada por contribuições dos trabalhadores. Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio (arts. 194 e 195, II, § 5°, da Constituição Federal e art. 218, da Constituição Paulista).

4)        A participação dos servidores públicos no regime de aposentadoria complementar é facultativa (art. 126, § 16 da Constituição Estadual) 

5)        Inexistência de interesse público e de razoabilidade, violando os arts. 111 e 128 da Constituição Estadual, na complementação de proventos de aposentadoria de servidores públicos vinculados ao regime estatutário.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Duartina tendo como alvo as Leis nºs 1.316, de 25 de maio de 1993 e 1.504, de 07 de outubro de 1997, o art. 25 da Lei nº 1.723, de 08 de dezembro de 2003, e o art. 16-A da Lei nº 2.002, de 26 de janeiro de 2010, todas do Município de Duartina, que dispõe acerca do benefício de complementação de aposentadoria a servidores municipais.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conceder a complementação de aposentadoria a servidores públicos, sem que houvesse a indicação de fontes de custeio, cálculo atuarial; por criar despesa pública sem indicação dos recursos disponíveis para atender aos novos encargos e por criar vantagem divorciada do interesse público e das exigências do serviço. Daí a afirmação de violação dos arts. 25, 11, 128, 144 e 218 da Constituição Estadual, do art. 195, § 5º da Constituição Federal, dos arts. 15, 16 e 17 da Lei complementar nº 101/2000 e da Lei nº 9.717/1998.

 Foi indeferido o pedido de liminar (fls. 47/48). Contra tal decisão, foi interposto agravo regimental (fls. 70/75) ao qual foi negado provimento (fls. 81/84).

Citado regularmente (fl. 56), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 58/60).

Devidamente notificado (fl. 53), o Presidente da Câmara Municipal de Duartina apresentou informações (fls. 63/65), alegando, em síntese, ser parte ilegítima por terem sidos os projetos que resultaram nos atos normativos impugnados de iniciativa do executivo, tendo no mérito sustentado a constitucionalidade das leis e dispositivos legais impugnados.

Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

É o relato do essencial.

PRELIMINARMENTE

Da alegação de violação da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional

Inicialmente, oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Constituição Federal ou da legislação infraconstitucional.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

NO MÉRITO

O pedido deve ser julgado parcialmente procedente.

A Lei nº 1.316, de 25 de maio de 1993, do Município de Duartina tem a seguinte redação:

“Art. 1º).- Fica o Poder Executivo, autorizado a pagar aos servidores que se aposentarem com no mínimo de 35 anos, se homem e 30 anos, se mulher, de serviços prestados à municipalidade, a diferença entre os proventos da inatividade e a remuneração definida pelo inciso XI, do artigo 5º da Lei 1226 de 05-10-90, que percebia na ocasião de sua aposentadoria. (alterado pela Lei 1504 de 07-10-97)

§ único - Para os aposentados antes da vigência desta Lei, a diferença de trata este artigo será entre os proventos da inatividade e a remuneração que estiver percebendo o servidor que o substituiu, independentemente do cargo que exerça.

Art. 2 º. Além da diferença de que trata o artigo anterior, o inativo fará jus ao valor correspondente a um por cento (1%) do vencimento, por ano decorrido, após a aposentadoria.

§ único - O adicional de que trata este artigo é devido a partir de fevereiro de 1993.

Art. 3º.- Ocorrendo o falecimento do servidor os benefícios desta Lei serão devidos em forma de pensão ao cônjuge sobrevivente e na falta deste aos seus dependentes e corresponderão à sua totalidade.

Art. 4º.- As despesas decorrentes da execução desta Lei, ocorrerão por conta das verbas próprias do orçamento vigente.

A Lei nº 1.504/97, de 07 de outubro de 1997, estabelece o seguinte:

“Artigo 1°) - O Artigo 1° da Lei n° 1.316/93, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Fica o Poder Executivo, autorizado a pagar aos servidores que se aposentarem com o mínimo de 35 anos, se homem e 30 anos, se mulher, de serviços prestados à municipalidade, a diferença entre os proventos da inatividade e a remuneração definida pelo inciso XI, do artigo 5° da Lei n° 1.226 de 05-10-90, que percebia na ocasião de sua aposentadoria’.

Parágrafo Único)- O parágrafo único, do Artigo 1° da citada Lei n° 1.316/93, de 25 de maio de 1.993, continua em vigor como está redigido.

Artigo 2°)- Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

O art. 25 da Lei nº 1.723/03 prevê que:

“Artigo 25 - Os funcionários públicos, terão seus proventos de aposentadoria e as pensões, revistos na mesma proporção e na mesma data da presente lei, conforme dispõe o paragrafo 8º, do artigo 40 da CF”.

Já o art. 16-A da Lei nº 1.723/03, incluído pela Lei nº 2.002/10, estabelece que:

“Artigo 16-A - O funcionário/servidor público que se aposentar com o mínimo de 35 anos, se homem e 30 anos, se mulher, de serviços prestados a municipalidade, fará jus ao recebimento da diferença entre os proventos da inatividade e a remuneração que percebia na ocasião de sua aposentadoria e demais vantagens posterior”. (sic)

Os atos normativos impugnados contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.

Os preceitos da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

As regras jurídicas contestadas são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

 (...)

Artigo 126 - Aos servidores titulares de cargos efetivos do Estado, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

(...)

§ 14 - O Estado, desde que institua regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo, poderá fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem concedidas pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal.

§ 15 - O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202 e seus parágrafos, da Constituição Federal, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida.

§ 16 - Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos §§ 14 e 15 poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar.

 

(...)

Artigo 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

(...)

Artigo 218 – O Estado garantirá, em seu território, o planejamento e desenvolvimento de ações que viabilizem, no âmbito de sua competência, os princípios de seguridade social previstos nos artigos 194 e 195 da Constituição Federal”.

Da complementação da aposentaria – requisitos constitucionais

A solução contida nos atos normativos aqui impugnados importou a criação de benefício previdenciário – complementação de aposentadoria – sem que houvesse fonte específica para o seu custeio total.

Isso significa violação de preceito estabelecido na Constituição Federal, segundo o qual “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total” (art. 195, § 5º, da CF), cuja aplicação no âmbito do Estado de São Paulo e dos seus Municípios decorre, objetivamente, dos artigos 144 e 218, da Constituição Estadual.

Daí a ocorrência da violação aos artigos 144 e 218 da Constituição Paulista.

Pacífico é o entendimento a respeito da matéria, no E. Supremo Tribunal Federal, conforme inúmeros precedentes, aqui indicados a título de exemplificação: RE 485.940, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 9-2-07, DJ de 20-4-07; RE 419.954 e RE 414.741, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-2-07, DJ de 23-3-07; RE 492.338, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 9-2-07, DJ de 30-3-07; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-06, DJ de 17-11-06; entre outros.

A proibição de criação, majoração, ou extensão de benefício previdenciário sem a correspondente fonte de custeio total também têm sido afirmadas por esse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, como se infere dos seguintes julgados:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1703, de 10 de dezembro de 1990, que ‘Dispõe sobre a complementação de aposentadoria e pensão de servidores aposentados por tempo de serviço ou idade, das pensionistas e viúvas de ex-servidores aposentados ou falecidos enquanto na ativa e dá outras providências’. Criação de previdência complementar sem a definição de sua fonte de custeio integral. Vulneração dos artigos 144 e 218 da Constituição Estadual, pela ausência de estrita observância ao disposto no art. 195, § 5º, da Constituição Federal. Pedido julgado procedente” (TJSP, ADI 153.965-0/5, rel. des. Oscarlino Moeller, j. 26.03.08, v.u.).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 2969/93 do Município de Birigui, que dispõe sobre a denúncia de convênio firmado entre a Câmara Municipal de Birigui e o Instituto de Previdência do Estado de São Paulo e dá providências correlatas. Ofensa aos art. 111, 144 e 218 da Carta Paulista. Necessidade de prévia e correspondente fonte de custeio para a criação, majoração ou extensão de benefício previdenciário. Inobservância do princípio da impessoalidade, diante da obtenção de vantagens de um grupo minoritário. Ação julgada procedente.” (TJSP, ADI 151.936-0/9-00, rel. des. Penteado Navarro, j. 20.02.08, v.u.).

E não é possível considerar como fonte de custeio suficiente, pura e simplesmente, a previsão legal de que o pagamento do benefício será feito com recursos constantes de dotação orçamentária própria. Isso significa, na prática, carrear todo o ônus financeiro ao erário municipal. Este acaba sendo o único a financiar o pagamento da complementação de aposentadoria dos procuradores municipais.

Deve-se levar em conta que a Constituição Federal estabelece, a propósito, a necessidade de respeito à diversidade da base de financiamento (art. 194, VI, da CF), bem como a participação, concomitante, de empregador e trabalhador (art. 195, I e II, da CF). Ademais, é impossível desconsiderar, finalmente, o caráter contributivo do sistema previdenciário (art. 201, caput, da CF).

A exigência de fonte de custeio total deve ser entendida como fonte de custeio que satisfaça os pressupostos do sistema estabelecido na Constituição Federal: (a) diversidade de base de financiamento; (b) caráter contributivo; (c) e participação de empregador e trabalhadores.

Assim, criar benefício por meio de lei, sem observar os parâmetros acima, que se resumem na necessidade de previsão de fonte de custeio total, significa violar frontalmente dispositivos constitucionais aplicáveis ao tema, em especial o art. 195, § 5º, da CF, aplicável à hipótese por força dos artigos 144 e 218, da Constituição Paulista.

Mas não é só.

Ao conceder o benefício da complementação de proventos de aposentadoria sem a previsão da correspondente fonte de custeio total, o legislador feriu diretamente o art. 128 da Constituição do Estado, pelo qual “as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.

Note-se que o ato normativo impugnado concedeu benefício que não encontra amparo, de forma alguma, no interesse público e nas exigências do serviço.

O único aspecto que o legislador municipal levou em consideração, na hipótese em exame, foi a melhoria da situação financeira de determinados servidores públicos inativos. A perspectiva em que, de forma clara, se deu a aprovação da “complementação de aposentadoria”, foi exclusivamente a do maior conforto e comodidade dos respectivos beneficiários.

Não há, sequer superficialmente, nenhum dado no ato normativo em exame que indique a possibilidade de existência de qualquer interesse público, ou exigência decorrente do serviço, que tenha sido atendida em função da instituição do benefício.

Eis, então, fundamento consistente para o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei.

Por último e não menos importante, é necessário dizer que há também, na espécie em exame, violação do princípio da moralidade administrativa, previsto no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

Em oportuna síntese, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 94).

Não há dúvida de que, na hipótese, houve ofensa à moralidade administrativa. O legislador municipal optou por conceder benefício para servidores municipais aposentados e pensionistas do município, sem fonte de custeio total, ausente o interesse público, e fora de qualquer perspectiva das exigências do serviço.

Sabe-se das dificuldades orçamentárias que normalmente assolam as Administrações municipais, e da existência de assuntos que são presumivelmente prioritários como a saúde e educação dos munícipes, entre outros. Diante disso, sem dúvida alguma colide com a moralidade exigida do administrador a aplicação de recursos públicos em benefício exclusivo (e no interesse estritamente privado) de determinada categoria de servidores inativos do Município.

Tamanha liberdade de ação administrativa (que não se confunde com discrição, identificando-se sim com o arbítrio), contraria a necessidade de respeito a valores imanentes à gestão de verbas públicas. Abre-se ensejo, com fundamento na equivocada lei, para favorecimento que não se coaduna com a administração de recursos que, em última análise pertencem à própria sociedade local.

Tal solução fere uma concepção mais ampla de justiça e equidade, e por isso também ofende a moralidade administrativa. Daí a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade.

Importante ressaltar que a inconstitucionalidade da Lei nº 1.316/93 e 1.505/97, decorre da violação aos arts. 111, 128 e 218 da Constituição Estadual, haja vista impossibilidade de confronto com o art. 126, haja vista que decorrente da Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006, posterior aos referidos diplomas normativos.

Não se vislumbra de outro lado inconstitucionalidade do art. 25 da Lei nº 1.723/2003 que assegura a revisão na mesma proporção e na mesma data dos proventos de aposentadoria e pensões, haja vista que havendo no Município regime previdenciário próprio, o mesmo é competente para discipliná-lo, o que não ocorre se a vinculação de seus funcionários é ao Regime Geral da Previdência Social.

Diante do exposto, requer seja dada procedência parcial ao pedido para declaração da inconstitucionalidade das Leis nºs 1.316, de 25 de maio de 1993 e 1.504, de 07 de outubro de 1997 e do art. 16-A da Lei nº 1.723, de 08 de dezembro de 2003, incluído pela Lei nº 2.002, de 26 de janeiro de 2010.

São Paulo, 12 de fevereiro de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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