Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº 2200531-83.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal do Guarujá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal do Guarujá

 

Ementa:

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda n. 21, de 10 de setembro de 2014, à Lei Orgânica do Município de Guarujá. Imposição de restrição à realização de contratos com o Prefeito, Vice-Prefeito, Vereadores, ocupantes de cargos em comissão ou função gratificada, com as pessoas ligadas a qualquer deles, por patrimônio ou parentesco até o segundo grau, servidores e empregados púbicos municipais, inclusive após seis meses do término das respectivas funções. Inexistência de violação aos princípios da impessoalidade, razoabilidade, eficiência e igualdade de condições entre os concorrentes. Norma que, dentro da esfera da competência legislativa suplementar do Município em matéria de licitação, privilegia os princípios da impessoalidade, moralidade, interesse público e eficiência. Prevenção à eventual lesão ao interesse público e patrimônio do Município. Ausência de restrição à igualdade de competição entre os licitantes. Improcedência da ação. 1. Não padece de inconstitucionalidade norma municipal que veda a realização de contratos com ocupantes de cargos em comissão ou função gratificada, bem como com pessoas ligadas a qualquer deles, por patrimônio, parentesco ou afinidade, pois tais restrições são compatíveis com os princípios da impessoalidade, moralidade, interesse público e eficiência (art. 111 da CE/89 e 37, “caput”, da CF/88). 2. Restrição que, ao vedar benefícios e favorecimentos em razão de parentesco com agentes públicos, concretiza efetiva e isonômica competição entre os licitantes, em respeito aos artigos 117 da CE/89 e 37, XXI, da CF/88. 3. Ademais, alegação de restrição ao caráter competitivo do certame, pautada no confronto do número de servidores com o número de habitantes do Município, que resvala na análise de matéria fática, obstada nesta via de controle de constitucionalidade. 4. Improcedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Excelentíssima Senhora Prefeita Municipal de Guarujá, da Emenda à Lei Orgânica n. 21, de 10 de setembro de 2014, que inseriu o inciso XXIV ao artigo 90 da LOM, o qual proibiu a realização de contratos, pelo Município, com o Prefeito, Vice-Prefeito, Vereadores, ocupantes de cargos em comissão ou função gratificada, com as pessoas ligadas a qualquer deles, por patrimônio ou parentesco até o segundo grau, servidores e empregados púbicos municipais, inclusive após seis meses do término das respectivas funções.

Alega a requerente que o referido dispositivo, na parte dirigida aos servidores comissionados, ocupantes de funções comissionadas e pessoas a eles relacionadas, viola os princípios da impessoalidade, razoabilidade e eficiência. Afirma, também, que a referida restrição também ofende a igualdade de condições entre os licitantes, tendo em vista que o Município possui aproximadamente 290 mil habitantes e 1169 comissionados e ocupantes de funções gratificadas, pois diversas empresas de alguma forma relacionadas a servidores estariam impedidas de participar de licitações.

A liminar foi deferida (fl. 83).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 98/131), na qual defendeu a constitucionalidade do ato normativo impugnado.

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa da norma atacada (fls. 92/94).

É o relato do essencial.

O dispositivo impugnado, de iniciativa parlamentar, assim dispõe:

Artigo 90 – A Administração Pública direta, indireta, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência e demais preceitos previstos na Constituição Federal, inclusive no que respeita às obras, serviços, compras e alienações.

(...)

XXIV – O Prefeito, Vice-Prefeito, os Vereadores, os ocupantes de Cargo em Comissão ou Função Gratificada, as pessoas ligadas a qualquer deles por patrimônio ou parentesco afim consanguíneo, até o segundo grau, ou por adoção e os servidores e empregados públicos municipais não poderão contratar com o Município, subsistindo a proibição até seis meses após findas as respectivas funções.”

De início, não obstante não se trate matéria apontada na inicial, necessário pontuar a inexistência de iniciativa parlamentar, pois se pode afirmar que a matéria versada na lei impugnada não é de iniciativa legislativa reservada ao Executivo, pois não está contemplada no rol do art. 24, § 2º, 1 a 6, da Constituição Paulista, inexistindo, por esse aspecto, qualquer inconstitucionalidade a ser declarada em razão do impulso parlamentar dado ao projeto que culminou com a edição do ato normativo em epígrafe.

De outro lado, não há, também, violação ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os Poderes.

A Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art. 24, § 2º, n. 1 a 6, da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art. 61, §1º, inciso II, da Constituição Federal.

De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art. 47, incisos II e XIV).

O princípio da independência e harmonia entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional brasileiro, não coloca o Executivo em posição de proeminência e o Legislativo em situação de mera coadjuvação.

É indispensável vislumbrar a proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado, decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem.

Assim como o Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento, direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise, nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.

Entendimento diverso significa admitir, como perfil do Estado Democrático brasileiro, numa imagem representativa, uma balança deslocada para um lado de maior importância e prestígio: o do Poder Executivo. Um Executivo hipertrofiado em suas atribuições e poderes, ladeado por um Legislativo que se limitará a chancelar iniciativas daquele.

Não parece ter sido esta a opção do Constituinte.

Note-se, de início, que a essência da separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás, procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao Executivo, ou a redução das despesas públicas" (Do processo legislativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.147).

Como anota José Afonso da Silva, nos casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.179).

Deve-se notar, entretanto, que a regra em nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do art. 61, caput, da CF, ao passo que as hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais. Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente, sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.

Lembrando o brocardo latino segundo o qual “exceptiones sunt strictissimae interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente” (Hermenêutica e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999, p.227).

O Pretório Excelso já assentou que as hipóteses indicadas pelo texto constitucional como casos de iniciativa legislativa privativa do Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional, na expressão de Carlos Maximiliano, devem ser interpretadas de forma restritiva. Confira-se:

"O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu caráter excepcional — de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo (...).”    (ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06, g.n.).

"A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele somente —, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima — considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa — se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa." (MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06, g.n.).

Também não se caracteriza, na hipótese, prática de ato de administração pelo legislativo, o que poderia amparar o reconhecimento da tese da quebra do princípio da separação de poderes. Note-se que a lei aqui analisada reveste-se de todos os pressupostos necessários à sua configuração como ato normativo: generalidade, impessoalidade e abstração.

Não se constata, ainda, inconstitucionalidade material, pois à União compete a fixação de normas gerais sobre licitação (art. 22, XXVII, da CF), permitindo, assim, que Estados e Municípios legislem de maneira complementar, de acordo com as peculiaridades locais (artigo 30, II, da CF).

Portanto, não há que se falar em vício de iniciativa ou mesmo invasão da competência legislativa da União.

Não se verifica, ainda, ofensa aos dispositivos e princípios constitucionais apontados na inicial, senão vejamos.

A vedação à celebração de contratos pelo Município com ocupantes de cargos em comissão, funções gratificadas, pessoas a eles relacionadas e a ocupantes de cargos efetivos visa, de forma preventiva, busca evitar favorecimentos e conluios, potencialmente causadores de prejuízo ao erário e à moralidade administrativa.

Assim, a norma impugnada, diferentemente do alegado pelo autor, dá efetiva aplicabilidade aos princípios da impessoalidade, moralidade, eficiência e interesse público, os quais norteiam a atuação da Administração pública, insculpidos no artigo 111 da CE, que assim dispõe:

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.”

Não se verifica, ainda, violação à igualdade entre os licitantes.

Vale anotar, de início, que a restrição imposta atinge não apenas as contratações realizadas por meio de licitação, como também aquelas encetadas mediante dispensa e/ou inexigibilidade de procedimento licitatório.

A vedação à participação das pessoas citadas em procedimentos licitatórios, além de afinada ao teor do artigo 9º da Lei de Licitações, longe de macular a igualdade entre os licitantes, concretiza a efetiva competitividade e isonomia, ao impedir conchavos e favorecimentos calcados em relações de parentesco com agentes públicos, conferindo, portanto, máxima efetividade ao mandamento constitucional insculpido no artigo 117 da CE/89 que reproduz o artigo 37, XXI, da CF/88:

 

“Artigo 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

Ao apreciar legislação similar, assim se pronunciou o Colendo STF:

“É certo que o referido art. 9º não estabeleceu, expressamente, restrição à contratação com parentes dos administradores, razão por que há doutrinadores que sustentam, com fundamento no princípio da legalidade, que não se pode impedir a participação de parentes nos procedimentos licitatórios, se estiverem presentes os demais pressupostos legais, em particular a existência de vários interessados em disputar o certame (v.g. BULOS, Uadi Lammêgo. Licitação em caso de parentesco. In: BLC: Boletim de licitação e contratos, v. 22, n. 3, p. 216-232, mar. 2009). Não obstante, entendo que, em face da ausência de regra geral para este assunto, o que significa dizer que não há vedação ou permissão acerca do impedimento à participação em licitações em decorrência de parentesco, abre-se campo para a liberdade de atuação dos demais entes da federação, a fim de que eles legislem de acordo com suas particularidades locais (no caso dos municípios, com fundamento no art. 30, II, da Constituição Federal), até que sobrevenha norma geral sobre o tema. E dentro da permissão constitucional para legislar sobre normas específicas em matéria de licitação, é de se louvar a iniciativa do Município de Brumadinho-MG de tratar, em sua Lei Orgânica, de questão das mais relevantes em nossa pólis, que é a moralidade administrativa, princípio-guia de toda a atividade estatal, nos termos do art. 37, caput da Constituição Federal. A proibição de contratação com o Município dos parentes, afins ou consanguíneos, do prefeito, do vice-prefeito, dos vereadores e dos ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança, bem como dos servidores e empregados públicos municipais, até seis meses após o fim do exercício das respectivas funções, é norma que evidentemente homenageia os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, prevenindo eventuais lesões ao interesse público e ao patrimônio do Município, sem restringir a competição entre os licitantes. Acrescento, ainda, que norma dessa natureza traz ínsita a garantia de possibilidade de efetiva, real e isonômica competição, pois impede favorecimentos e benefícios em razão do grau de parentesco com os agentes públicos. Não é ocioso relembrar, embora não seja especificamente a hipótese dos autos, que esta Corte, no julgamento da ADC 12, rel. Min. Ayres Britto, declarou a constitucionalidade da Resolução 07/2005 que veda o nepotismo no Poder Judiciário, o que demonstra o entendimento deste Tribunal no sentido de privilegiar o princípio da moralidade administrativa.” (RE – 423.560/MG – Rel. Min. Joaquim Barbosa – Julgado em 29.05.2012)

Ademais, no tocante à alegação contida na inicial, de que teria havido ofensa à igualdade entre os licitantes, embasada no confronto do número de habitantes X número de servidores, além de se apresentar dissociada da realidade, por desconsiderar que o Município do Guarujá está inserido na Região Metropolitana da Baixada Santista (Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe, Praia Grande, Santos e São Vicente) que conta com aproximadamente 1.700.000,00 habitantes, encontra insuperável óbice nesta via de controle concentrado de constitucionalidade, por envolver apreciação de matéria fática.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da improcedência da ação direta.

São Paulo, 09 de fevereiro de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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