Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2202026-65.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.307, de 09 de setembro de 2014, do Município de Guarulhos, que dispõe acerca do “VALE TRANSPORTE SOCIAL AO DESEMPREGADO DO MUNICÍPIO DE GUARULHOS”.

2)      A concessão de isenção ao pagamento de preço público (tarifa) pela prestação de serviço público comercial ou industrial, executado direta ou indiretamente, é matéria reservada ao Poder Executivo (art. 120 e parágrafo único do art. 159, ambos da Constituição Estadual).

3)      O parâmetro constitucional ao prever a competência do órgão executivo competente para fixação da tarifa inclui alterações, isenções etc., e, portanto, a outorga de isenção por ato normativo do Poder Legislativo, de iniciativa parlamentar, viola a cláusula da separação de poderes constante do art. 5º da Constituição Estadual. Procedência da ação. Quebra das condições efetivas da proposta, afetando o equilíbrio econômico financeiro do contrato (art. 117 da Constituição Estadual)

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Guarulhos tendo como alvo a Lei nº 7.307, de 09 de setembro de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre o “VALE TRANSPORTE SOCIAL DO DESEMPREGADO DO MUNICÍPIO DE GUARULHOS”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, invasão de competência, violação do princípio da separação dos poderes e ausência de indicação de receitas para cobrir as novas despesas criadas. Daí a afirmação de violação dos arts. 5º, 25, 47, II e XIV, 144, 176, I, todos da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar (fls. 50/51).

Citado regularmente (fl. 57), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 62/64).

O Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos apresentou informações (fls. 64/74), alegando, em síntese, que a matéria versada na lei impugnada não diz respeito à criação de cargos, funções, remuneração e provimento de servidor público, atribuições de órgãos da administração pública municipal ou matéria orçamentária. Aduziu, ainda, que não houve violação ao art. 25, da Constituição Estadual, visto que a implantação do vale transporte social não demandará gastos significativos, posto que a obrigação é atribuída à empresa concessionária.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

É o relato do essencial.

O pedido deve ser julgado procedente.

A Lei nº 7.307, de 09 de setembro de 2014, do Município de Guarulhos, que dispõe sobre o VALE TRANSPORTE SOCIAL AO DESEMPREGADO DO MUNICÍPIO DE GUARULHOS, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Será instituída a gratuidade da passagem de ônibus aos trabalhadores desempregados, no âmbito do Município de Guarulhos, aos usuários do Sistema Bilhete Único, pelo prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, denominado Vale Transporte Social.

Art. 2º. A gratuidade de que trata esta lei fica condicionada à comprovação formal, ou seja, carteira assinada do trabalhador demitido ou demissionário há no mínimo um mês e no máximo seis meses, desde que tenha trabalhado pelo menos seis meses contínuos no último emprego, cuja renda mensal seja igual ou inferior a 3 (três) salários mínimos.

Art. 3º. Somente terão direito ao Vale Transporte Social, o trabalhador desempregado, cadastrado em uma das agências do trabalhador do Sistema de Emprego, vinculadas à Secretaria do Estado do Trabalho.

Art. 4º. Uma vez comprovada a condição de desempregado, o trabalhador deverá cadastrar-se junto à Secretaria Municipal do Trabalho para a emissão e recebimento do Vale Transporte Social.

Art. 5º. O interessado deverá apresentar requerimento específico na Secretaria do Trabalho com os seguintes documentos:

I – cópia das páginas da Carteira de Trabalho onde consta a fotografia, a identificação, o registro da última empresa e a página subsequente;

II – cópia da rescisão do contrato de trabalho;

III – cópia do recebimento da última parcela do seguro-desemprego;

IV – cópia dos últimos 4 (quatro) recibos de pagamento de salários;

V – documento de identidade (RG);

VI – Cadastro de Pessoas Físicas (CPF);

VII – Título de Eleitor;

VIII – comprovante de residência (luz, água, telefone fixo, contrato de locação, declaração do proprietário); e

IX – declaração, sob as penas da lei, de que solicitará o cancelamento do benefício quando conseguir um novo emprego.

Parágrafo único. A declaração do proprietário a que se refere o inciso VIII somente será admitida se acompanhada de qualquer um dos demais documentos de comprovação de residência, sujeitando-se tal aceitação à eventual verificação por parte da Secretaria do Trabalho.

Art. 6º. A recarga mensal será mediante a apresentação da carteira de trabalho.

Art. 7º. O benefício do Vale Transporte Social não poderá ser estendido e/ou concedido novamente no interstício de dois anos.

Art. 8º. Cessando a condição de desempregado no período de gozo ou ao término do benefício, o trabalhador deverá devolver o cartão do Vale Transporte Social, para que não perca definitivamente o direito a utilização do benefício.

Art. 9º. Fica especificado carga de 60 (sessenta) passagens mensais para o Vale Transporte Social, conforme valores praticados pela empresa de ônibus da linha informada no ato do cadastro.

Art. 10. Cinco dias úteis após a entrega do requerimento com os documentos elencados no art. 5º, o interessado deverá comparecer na Secretaria do Trabalho para fazer o pré-cadastro, ocasião em que será fotografado e disponibilizará a sua digital para alimentação do banco de dados que imprimirá o Vale Transporte social.

Art. 11. Entre a entrega do requerimento e o pré-cadastro, será feita a constatação das informações constantes no requerimento, bem como a conferência dos documentos apresentados.

§1º Caso seja constatada alguma irregularidade nas informações constantes nos documentos apresentados, o requerimento ficará pendente de decisão por parte do Setor de Benefícios da Secretaria do Trabalho, no prazo de 5 (cinco) dias úteis.

§2º Caberá recurso do beneficiário à Secretaria do Trabalho da decisão do Setor de Benefícios no prazo de 2 (dois) dias úteis.

§3º A Secretaria do trabalho deverá julgar o recurso em 5 (cinco) dias úteis, período em que o benefício ficará pendente de decisão.

Art. 12. No prazo de 5 (cinco) dias úteis após o pré-cadastro, o interessado receberá o BEM social para Desempregado.

Art. 13. O desempregado deverá identificar-se ao motorista ou ao cobrador do ônibus, apresentando o BEM Social para Desempregado, e, se necessário, um documento de identidade com fotografia.

Art. 14. Fica a cargo do Executivo Municipal a regulamentação da presente lei, no prazo de 90 (noventa) dias a contar da sua publicação.

Art. 15. As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 16. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

 (...)”

Há violação ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os Poderes.

 A concessão de isenção ao pagamento de preço público (tarifa) pela prestação de serviço público comercial ou industrial, executado direta ou indiretamente, é matéria reservada ao Poder Executivo, nos termos do que dispõem os arts. 120 e parágrafo único do 159, ambos da Constituição Estadual.

Com efeito, ao prever a competência do órgão executivo competente para fixação da tarifa, tal inclui alterações, isenções etc., e, portanto, a outorga de isenção por ato normativo do Poder Legislativo, de iniciativa parlamentar, viola a cláusula da separação de poderes constante do art. 5º da Constituição Estadual.

O Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento, direção, organização e execução das atividades da Administração).

Assim, quando o Poder Legislativo edita lei estabelecendo hipóteses de isenção tarifária no transporte urbano coletivo, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, pois envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise representados pela concessão de isenção tarifária nos serviços de transporte urbano coletivo. A atuação legislativa impugnada, equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

A importância da reserva da Administração é bem aquilatada pelo Supremo Tribunal Federal:

 “RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Em caso similar, este egrégio Órgão Especial declarou a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar:

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Andradina, de iniciativa parlamentar, que concedeu isenção de tarifa de água e esgoto a aposentados - Violação à separação de Poderes - Matéria referente à tarifa e preço público pela remuneração dos serviços que é de competência do Executivo (art. 120, da CE) - Vício de iniciativa caracterizado - Ação procedente, para reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 2.733, de 19 de setembro de 2011, do Município de Andradina. (TJSP, ADI 0256692-55.2011.8.26.0000, Rel. Des. Enio Zuliani, v.u., 23-05-2012).

De outro lado, a inclusão de nova isenção no curso de contrato administrativo de concessão dos transportes públicos, importa em violação ao art. 117 da Constituição Estadual, na medida em que não estariam resguardadas as condições efetivas da proposta do edital de licitação, base da definição da equação econômico financeiro do contrato.

Diante do exposto, requer seja dada procedência ao pedido para declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 7.307, de 09 de setembro de 2014, do Município de Guarulhos.

 

São Paulo, 15 de janeiro de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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