Parecer
em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo nº 2203906-92.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do
Município de Martinópolis
Requerido: Câmara Municipal
de Martinópolis
Ementa:
1) Ação direta
de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 2.872, de 07 de novembro de 2014, de
Martinópolis, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação de
Campanha Educativa de Conscientização Sobre a Síndrome Alcoólica Fetal e dá
Outras Providências”.
2) Inconstitucionalidade.
Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada
do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços
administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar
pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da
Constituição Estadual).
3) Violação do
princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX;
144 e 176, I, da Constituição do Estado). Procedência do pedido.
4) Procedência da Ação.
Colendo Órgão Especial,
Senhor Desembargador Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo
como alvo a Lei Municipal nº 2.872, de 07 de novembro de 2014, de Martinópolis,
de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação de Campanha Educativa
de Conscientização Sobre a Síndrome Alcoólica Fetal e dá Outras Providências”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por se tratar
de competência legislativa privativa da União, Estados e Distrito Federal,
apresentar vício de iniciativa, criar despesa sem indicação de fonte de recurso
e violar os princípios da separação dos poderes, da Razoabilidade e da
Legalidade. Daí a afirmação de violação dos arts. 5º, 25, 47, XI e XIX, “a”,
74, VI, 111 e 144 da Constituição Estadual, além de apontar dispositivos da
Constituição Federal e Lei Orgânica Municipal.
A liminar foi deferida (fls. 149/150).
Citado regularmente (fl. 157), o Procurador Geral do Estado
declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de
matéria de interesse exclusivamente local (fls. 159/161).
Devidamente notificado (fl. 163), o Presidente da Câmara Municipal
apresentou informações sobre o processo legislativo, defendendo sua
constitucionalidade (fls.165).
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta
Procuradoria-Geral de Justiça.
Em síntese, é o relatório.
1 - Cumpre salientar que, tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade em tramitação junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, apenas a Constituição do Estado configura parâmetro válido para a análise de eventual incompatibilidade entre a lei impugnada e a ordem constitucional.
Ademais, como no processo objetivo, de controle concentrado de constitucionalidade, não é possível o exame de eventuais ofensas indiretas ou reflexas à Constituição, as alegações relacionadas à incompatibilidade entre a lei hostilizada e a legislação infraconstitucional (por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal ou mesmo a Lei Orgânica do Município) não podem ser examinadas neste feito, como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade da lei.
Nesse sentido, confira-se o entendimento assente do STF nos seguintes precedentes, indicados exemplificativamente: ADI 2.551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-4-2003, Plenário, DJ de 20-4-2006; RE 597.165, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 4-4-2011, DJE de 12-4-2011.
Passa-se, portanto, ao exame do ato impugnado nos estritos limites que envolvem o confronto entre aquele e o texto da Constituição Paulista.
2 - A Lei Municipal nº 2.872, de 07 de novembro de 2014, de
Martinópolis, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação de
Campanha Educativa de Conscientização Sobre a Síndrome Alcoólica Fetal e dá
Outras Providências” promulgada
pelo Presidente da Câmara Municipal, possui a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º - Fica instituída no Município de Martinópolis a Campanha Educativa de Conscientização sobre a Síndrome Alcoólica Fetal (SAF).
§ 1º - Esta campanha terá como objetivos fundamentais a conscientização e informação ao público, especialmente mulheres gestantes, de que as bebidas alcoólicas ingeridas durante a gestação podem causar sérios prejuízos à saúde do feto.
§ 2º - Entre outras medidas, devem ser colocados cartazes alusivos ao risco da SAF nos estabelecimentos que comercializam bebidas alcoólicas.
Art. 2º - O cartaz, em tamanho nunca inferior a 20x33 centímetros, deverá conter os seguintes dizeres: ‘PREVENÇÃO DA SÍNDROME ALCOÓLICA FETAL: A INGESTÃO DE ÁLCOOL DURANTE A GESTAÇÃO PODE PREJUDICAR A SAÚDE DO FETO’.
Art. 3º - A Campanha Educativa de Conscientização sobre a SAF tem caráter definitivo, devendo os órgãos competentes responsáveis por sua execução aprimorá-la sempre, tornando-a dinâmica e de fácil entendimento pelo público, com a utilização de linguagem popular em consonância com as leis vigentes.
Art. 4º - Fica o Poder Executivo autorizado a receber, a título gratuito de pessoas jurídicas de direito público e de pessoas jurídicas de direito privado de fins não econômicos, os cartazes alusivos ao risco da SAE.
Art. 5º - As despesas decorrentes desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Art. 6º - O Executivo regulamentará esta lei no prazo máximo de 60 (sessenta) dias a contar da data de sua publicação.
Art. 7º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
(...)”
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é
verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o
princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47,
II, XIV e XIX, a, da
Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da
Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“Art.
5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo,
o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art.
47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas
nesta Constituição:
(...)
II –
exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da
administração estadual;
(...)
XIV –
praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do
Executivo;
(...)
XIX -
dispor, mediante decreto, sobre:
a)
organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em
aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art.
144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e
financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios
estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da
atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e
direção superior cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários
Municipais.
A instituição de um programa municipal na área da saúde é matéria
exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do
Executivo, porque disciplina programa governamental.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades coletivas, vinculadas aos direitos
fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder
discricionário da administração.
Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita à disciplina legislativa.
Logo, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração,
sob pena de se permitir que o legislador administre, invadindo área privativa
do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando
atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função de obrigar o
Município a criar “Campanha Educativa de Conscientização sobre a Síndrome
Alcoólica Fetal”, através da colocação de cartazes e outras medidas não
especificadas, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do
administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador,
deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação de campanhas
educativas. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha
política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da
separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos
Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder
Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos
de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao
Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles,
anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode
administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo
as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência
dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local.
Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções
é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir
prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou
retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao
princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c
o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro,
15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São
Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo
administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de
administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os
poderes estatais.
A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias
de administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e
IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu
art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei
alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do
Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto
nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim, a Lei, ao regulamentar ainda que parcialmente um serviço
público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras
que respeitam à direção da administração, à organização e ao funcionamento do
Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de
outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao
Poder Executivo.
Criar programas e campanhas educativas – precisamente o que se
verifica na hipótese em exame - é matéria
exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do
Executivo.
Ademais, para o efetivo cumprimento da lei impugnada, são
necessárias providências a cargo do Poder Executivo, como a confecção e
distribuição de cartazes, realização de campanhas de orientação, etc. Por este
motivo, a matéria de que cuida o ato normativo impugnado é de atribuição
privativa do Poder Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria,
evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido
a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do
programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida, ao impor ao Município obrigações aptas a
gerarem despesas, não indicou especificamente os recursos orçamentários
necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes
porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo
desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da
Constituição do Estado de São Paulo.
A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da
iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da
Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente
para declarar a inconstitucionalidade
da Lei nº 2.872, de 7 de novembro
de 2014, do Município de
Martinópolis.
São
Paulo, 12 de maio de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
iccb