Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 2218410-06.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 11.575, de 19 de setembro de 2014, de São José do Rio Preto e de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a instituição do programa ‘Poesia no Ônibus’ no Município de São José do Rio Preto – SP e dá outras providências”.

2)      Inconstitucionalidade. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei acima mencionada, de iniciativa parlamentar, pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).

3)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX, “a”; 144 e 176, I, da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 11.575, de 19 de setembro de 2014, que “Dispõe sobre a instituição do programa ‘Poesia no Ônibus’ no Município de São José do Rio Preto – SP e dá outras providências”, do referido Município e de iniciativa parlamentar.

Sustenta o requerente, Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes e a reserva da administração, bem ainda por criar despesas sem indicação da fonte de recurso. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, 25 e 47, II e XIV, da Constituição Estadual.

A liminar foi deferida, para suspender a vigência da Lei Municipal nº 11.575, de 19 de setembro de 2014, de São José do Rio Preto (fl. 13).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações às fls. 19/23, oportunidade em que defendeu a validade do ato normativo impugnado, ressaltando a regularidade do respectivo processo legislativo.

Citado regularmente (fl. 26), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo objurgado, afirmando tratar-se de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 28/30).

Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

A ação merece ser julgada procedente. Senão vejamos.

A Lei nº 11.575, de 19 de setembro de 2014, que “Dispõe sobre a instituição do programa ‘Poesia no Ônibus’ no Município de São José do Rio Preto – SP e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“ (...)

Art. 1º - Fica instituído o Programa “Poesia no Ônibus” na cidade de São José do Rio Preto - SP.

Art. 2º - O Programa compreende a divulgação, através de poemas literários de poetas e escritores do Município, da Região e do Estado, mantendo esta ordem de prioridade, através da veiculação pelas empresas concessionárias e permissionárias dos serviços de transportes públicos coletivos na cidade de São José do Rio Preto - SP.

§ 1 º - A veiculação deverá considerar os padrões técnicos e as normas que regem o sistema de transporte coletivo.

§ 2º - Os suportes deverão ser fixados em suportes ou nas janelas dos veículos, de forma adequada em sua parte interna.

Art. 3º - Para implementar o Programa que trata esta Lei, o Poder Executivo agirá através de todas as secretarias municipais, cujas competências estejam aptas ao objetivo, bem como garantirá a participação de representantes da área cultural do município.

Art. 4º - Fica reservado à Administração Municipal o direito de veicular poemas, inéditos ou não, de autores regionais.

§ 1º - Os autores de poemas cederão gratuitamente os direitos autorais relativos exclusivamente às matrizes que serão utilizadas no transporte coletivo.

§ 2º - A cada 60 (sessenta) dias, e havendo disponibilidade de novas matrizes inéditas, o material deverá ser substituído.

Art. 5º - Para implantar o Programa, o Município pode utilizar recursos próprios, ou celebrar termos de convênio ou cooperação com a iniciativa privada, obedecidas as exigências legais pertinentes, ou ainda promover intercâmbio com outras instituições que desenvolvam programas similares.

Art. 6º - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias.

Art. 7º - Esta Lei será regulamentada no prazo de 60 (sessenta) dias de sua publicação e entrará em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua publicação.

(...)”. (sic)

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, “a”, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A previsão de divulgação de poemas literários no serviço público municipal de transporte coletivo de passageiros, na cidade de São José do Rio Preto, constante da Lei nº 11.575, de 19 de setembro de 2014, do mesmo Município, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, justamente porque disciplina aspectos relativos à prestação dos serviços de transporte da urbe.

O artigo 1º do referido diploma normativo institui o Programa “Poesia no Ônibus” na cidade de São José do Rio Preto - SP. Em seu artigo 2º, por sua vez, ficou consignado que ele consiste na divulgação, através de poemas literários de poetas e escritores do Município, da Região e do Estado, por meio da veiculação pelas empresas concessionárias e permissionárias dos serviços de transportes públicos coletivos municipais.

Dessa forma, o conteúdo da Lei nº 11.575, de 19 de setembro de 2014, de São José do Rio Preto, revela atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculada aos direitos fundamentais. Em outras palavras, disciplina matérias privativas do Poder Executivo e inseridas na esfera do poder discricionário da administração. Não cuida, pois, de atividades sujeitas à disciplina legislativa.

Dessa forma, o Poder Legislativo não poderia, através de lei, ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa - como ocorre, no caso em exame, em que a lei de iniciativa parlamentar estabelece atribuições ao Poder Executivo - viola o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da permissão quanto à eventual divulgação de poemas no serviço municipal coletivo de passageiros.

Embora relevantes as proposições, configuram funções administrativas, fundadas em escolha política de gestão, em relação às quais é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada nas leis em análise encontram-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei n° 11.575, de 19 de setembro de 2014, de São José do Rio Preto, ao regulamentar um serviço público, viola, de um lado, o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 5º, 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Criar programas e disciplinar serviços públicos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Ademais, e não menos importante, a lei impugnada criará, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

De fato, a Lei nº 11.575, de 19 de setembro de 2014, ao tratar do serviço público de transporte municipal, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos. Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 11.575, de 19 de setembro de 2014, do Município de São José do Rio Preto.

              São Paulo, 21 de janeiro de 2015.

 

 Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

ef/mjap