Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2218536-56.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Mauá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Mauá

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.953, de 14 de maio de 2014, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, que “Denomina como Viela 'Cordelia Vieira dos Santos', a atual viela sem denominação, com início na Rua João Moreira Filho, entres os nº. 61, Inscrição Fiscal 33.021.011, e término na Rua Godofredo de Godoy, entre o nº. 345 D, Inscrição Fiscal 33.017.503, no Jardim Lusitano, e dá outras providências”

2)      Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

3)      Usurpação de competência do Executivo. Violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º, art. 47, II e XIV, e art. 144). Precedentes do TJ/SP. Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 4.953, de 14 de maio de 2014, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar, que “Denomina como Viela 'Cordelia Vieira dos Santos', a atual viela sem denominação, com início na Rua João Moreira Filho, entres os nº. 61, Inscrição Fiscal 33.021.011, e término na Rua Godofredo de Godoy, entre o nº. 345 D, Inscrição Fiscal 33.017.503, no Jardim Lusitano, e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violação ao princípio da legalidade, uma vez que não teria atendido ao disposto na Lei nº 2.791 de 11 de dezembro de 1997 e o Decreto Municipal nº 5.816/1998, por ofensa ao princípio da separação dos poderes e por criar despesa sem a indicação da fonte de custeio. Daí a alegação da violação aos arts. 5º; 25; 47, incisos II, XI e XIV; 111; 144; 174, incisos I, II e III e 176, incisos I e III, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

 Citado regularmente (fl. 50), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 52/54).

Devidamente notificado (fl. 37), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações sobre o processo legislativo, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Desta forma, vieram os autos para a manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

A Lei nº 4.953, de 14 de maio de 2014, do Município de Mauá, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Passa a denominar-se como Viela 'Cordelia Viera dos Santos', a atual viela sem denominação, com início na Rua João Moreira Filho, entre o nº 61, Inscrição Fiscal 33.021.011, e término na Rua Godofredo de Godoy, entre o nº 345 D, Inscrição Fiscal 33.017.503, no Jardim Luzitano, Município de Mauá.

Art. 2º As despesas decorrentes da execução da presente lei onerarão as verbas próprias do orçamento vigente.

(...)”

A referida lei é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

Da causa de pedir aberta

Oportuno consignar que a ação direta de inconstitucionalidade estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

A causa de pedir consiste na violação à Constituição Estadual, razão pela qual tem sido denominada como causa de pedir aberta, possibilitando no controle concentrado de constitucionalidade o acolhimento por fundamento ou parâmetro não apontado na inicial.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que, no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

 

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Da violação constitucional

É fora de duvida que a denominação de logradouros públicos municipais trata-se de matéria de interesse local (CF, art. 30, I), dispondo, assim, os Municípios de ampla competência para regulamentá-la, pois foram dotados de autonomia administrativa e legislativa. E, vale acrescentar, não há na Constituição em vigor reserva dessa matéria em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.

Contudo, afigura-se necessário distinguir as seguintes situações:        (a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, caso em que a iniciativa é concorrente;       (b) o ato de atribuir nomes a logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência privativa do Executivo.

No Município, à Câmara Municipal incumbem as funções legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais não existe subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. “Nessa sinergia de funções é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal.” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 8.ª ed., pp. 427 e 508.)

Pois bem, em sua função normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica, bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de atos concretos de administração. Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes. (ob. cit., p. 429).

Assim, no exercício de sua função normativa, a Câmara está habilitada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (Cf. ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).

Neste sentido é que deve ser interpretado o art. 33, XII da Lei Orgânica Municipal, no qual se baseou a Câmara Municipal para a produção legislativa que não se revestiu da generalidade e abstração na disciplina de denominação de próprios, vias e logradouros públicos.

Cabe ressaltar que, a nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 2.ª ed., p. 285). De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros públicos seria tarefa quase impossível, principalmente nos grandes aglomerados urbanos.

Diverso, porém, é o ato de denominar os próprios públicos, inclusive nos casos em que não se busca apenas permitir a orientação da população, mas sim homenagear determinadas pessoas ou fatos históricos.

Note-se: nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente estabelecidos em lei editada para regulamentar essa matéria. 

Definidas essas premissas básicas, entretanto, é imperativo o reconhecimento da inconstitucionalidade do ato normativo impugnado nesta inicial.

É que a lei municipal de iniciativa parlamentar, ao dar, especificamente, determinado nome a próprios integrantes do patrimônio público municipal, não encerra o conteúdo de normas abstratas ou teóricas, instituídas em caráter permanente e de generalidade.

Ou seja, a Câmara não pode, em nosso regime constitucional, invadir a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, atribuindo, especificamente e de modo individualizado, a determinados próprios integrantes do Município, denominação concreta.

As leis formais não se mostram regras jurídicas, mas simples atos administrativos do Poder Legislativo, que invadem a esfera de competência constitucional do Poder Executivo.

Na ordem constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula de Montesquieu, não existe a menor possibilidade de a Administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de leis (Estado legal), pois a Constituição é clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE, art. 47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE, art. 47, XIV).

Bem por isso, aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“(...)

Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes (...) não é lícito ao Parlamento editar, ao seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial. (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194.)

(...)”

Nesse contexto, a aprovação de lei, de iniciativa parlamentar, que atribui nome a logradouro ou prédio público só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os poderes (CE, art. 5.º).

Ao examinar assunto correlato, no julgamento da Repr. n.º 1.117-SP, o insigne Ministro FRANCISCO REZEK consignou no seu respeitável Voto que:

“(...)

No contexto dos debates que esta matéria provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade imobiliária, ou a visão do Poder Executivo como titular do domínio dos bens públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos da Justiça.

Tudo isso posto de lado, porque desnecessário ao completo esquema da questão de inconstitucionalidade que aqui se discute, reponta claro o argumento do Presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo: parece-lhe que a competência para dar nome a logradouros públicos, porque não disciplinada na lei fundamental, há de sê-lo em lei ordinária; e que entre aqueles não há por que distinguir os de uso especial da Justiça dos vinculados aos demais poderes, ou entregues ao uso comum do povo. Aquela primeira ideia se viu desenvolver com esmero pelos fundadores da federação norte-americana, e, dessa e de outras fontes, foi sabidamente assimilada pelo direito público brasileiro: tudo quanto a Carta não diz por si mesma, di-lo-á não o Governo, nem tampouco a Justiça, mas o Congresso, compositor, por excelência, da ordem jurídica que a lei fundamental encabeça, sem poder exaurir.

Essa regra eminente traz, porém, consigo, duas presunções tácitas, a ditar-lhe o exato contorno. A primeira é a de que esse espaço a ser preenchido pela produção congressional reclame substância normativa, vestida da abstração e da generalidade que lhe são próprias. A segunda, indissociável da precedente, é a de que o vasto domínio dos poderes implícitos do Congresso não pretenda estender-se sobre área reservada pela lei fundamental às prerrogativas do Executivo e do Judiciário, com todos os desdobramentos necessários a que se não lhes afronta a independência.

(...)”

Em suma, a concessão de denominação a determinado bem municipal é ato concreto de administração, parte integrante do serviço público de sinalização urbana, cujo único responsável é o Prefeito.

Não há como aceitar a interpretação que inclui no rol dos poderes implícitos da Câmara a competência para editar leis formais, desvestidas dos atributos de generalidade e abstração, tampouco estender esses poderes sobre área de atuação exclusiva do Poder Executivo, a quem compete a administrar os bens públicos e prestar os serviços públicos municipais. O ato de atribuir nomes a logradouros ou prédios públicos é mero corolário do poder de administrar.

Bem a propósito, ao examinar leis de conteúdo semelhante, esse egrégio Tribunal de Justiça decidiu que:

“(...)

Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste – Ação procedente (ADI nº 115.877.0/5, Rel. Des. Laerte Nordi, j. em 20/7/2005).

Constitucional. ADI. Inciso XV do artigo 35 da Lei Orgânica do Município de Olímpia. Atribui à Câmara, com sanção do Prefeito, dar denominações a próprios, vias e logradouros públicos, inclusive de pessoas vivas que mereçam e justifiquem a homenagem. Matéria relativa à direção superior da administração municipal. Usurpação de atribuições do Chefe do Executivo. Inconstitucionalidade. Violação do disposto nos artigos 5.º, 47, incisos II e XIV, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. (ADI 163.689-0/3-00, Rel. Des. Luiz Tâmbara, j. em 22/7/2009, v.u.)

Ação Direta de Inconstitucionalidade - Leis Municipais n°s. 3.736 (de 16 de agosto de 2007) e 4.267 (de 10 de agosto de 2011) de Agudos ("Atribuição de nome de pessoas vivas a logradouros e próprios municipais ") - Violação dos arts. 5o e 47, incisos II e XIV, da Constituição Estadual - Inobservância ao princípio da separação dos poderes - Vício de inconstitucionalidade - Inconstitucionalidade declarada (ADI nº 0083101-18.2012.8.26.0000, Rel. Des. Castilho Barbosa, j. em 07/11/2012, v.u).

(...)”

Em suma, a Câmara não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração. E a nomenclatura de logradouros e próprios públicos - que constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a conclusão inafastável de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível com o princípio da separação dos poderes.

Estas são as razões para o reconhecimento da inconstitucionalidade dos atos normativos impugnados, por afronta aos arts. 5.º, 47, II e XIV, todos da Constituição Paulista, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, ex vi do art. 144 dessa mesma Carta Política.

Importante ressaltar que não se pode cogitar de violação ao princípio da legalidade, uma vez que para tanto haveria de se confrontar o ato normativo com legislação infraconstitucional, não admissível no controle objetivo de constitucionalidade.

O parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas infraconstitucionais

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional. Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

Desta forma, aguarda seja dada procedência ao pedido para a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 4.953, de 14 de maio de 2014, do Município de Mauá.

 

            São Paulo, 26 de fevereiro de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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