Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo n. 2223854-20.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Caçapava

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Caçapava

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.389, de 23 de outubro de 2014, do Município de Caçapava.  Denominação de logradouro público. Iniciativa parlamentar. Separação de poderes. Reserva da Administração. Procedência. 1. Preliminar de conversão do julgamento em diligência, a fim de que seja realizada a citação do Procurador-Geral do Estado (arts. 6º e 8º da Lei Federal nº 9.868/99). 2. Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional. Ademais, à luz do art. 125, § 2º, CF/88, o controle estadual de constitucionalidade de ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, não cabendo alegação de ofensa à Constituição Federal. 3. A denominação de bens, prédios, logradouros e vias do patrimônio público consiste em ato privativo da gestão administrativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. 4. Lei municipal de iniciativa parlamentar que usurpa a reserva da Administração, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE/89). 5. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito do Município de Caçapava, tendo por objeto a Lei n. 4.389, de 23 de outubro de 2014, do mesmo Município, de iniciativa parlamentar, que atribuiu a logradouro público a denominação de “Conceição Favorino Claro”, sob alegação de violação aos arts. 5º e 47, inciso II, da Constituição Estadual; artigos 2º e 84, inciso II, da Constituição Federal; bem como ao artigo 70, incisos II, III e XXIII, da Lei Orgânica do Município de Caçapava.

O pedido liminar foi indeferido (fls. 135-136).

O Presidente da Câmara Municipal de Caçapava prestou informações à fls. 151/154, defendendo a validade do ato normativo impugnado. Sustentou, em linhas gerais, que a Lei n. 4.389, de 23 de outubro de 2014, do referido Município, versa sobre matéria de iniciativa do Poder Legislativo, bem ainda que não teria o condão de gerar significativo impacto orçamentário.

Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

1.   PRELIMINAR

1.1.     AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DA PROCURADORIA- GERAL DO ESTADO E NECESSIDADE DE CONVERSÃO DO JULGAMENTO EM DILIGÊNCIA

Preliminarmente, requer-se a conversão do julgamento em diligência, a fim de que seja realizada a citação da Procuradoria-Geral do Estado, na forma do art. 8º da citada Lei 9.868/99, certificando-se nos autos.

1.2.     IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DE PARÂMETROS INFRACONSTITUCIONAIS OU CONTIDOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Averbe-se, inicialmente, que não é possível, nesta ação, examinar a alegação de que o dispositivo normativo impugnado contraria a Constituição Federal, ou mesmo normas contidas na legislação infraconstitucional, seja ela federal, estadual, ou do próprio Município.

É que a cognição do tribunal, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, está limitada à verificação da ofensa direta à Constituição do Estado, ficando excluída a possibilidade de análise de inconstitucionalidades indiretas ou reflexas, ou mesmo de questões de fato.

Ademais, à luz do art. 125, § 2º, CF/88, o contencioso estadual de constitucionalidade de ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, não cabendo alegação de ofensa à Constituição Federal.

         Tem prevalecido na doutrina e na jurisprudência, nesse tema, o sentido de que, no processo objetivo, a única avaliação admissível é aquela referente à questão de direito, no confronto direto entre a lei e o texto constitucional.

         A esse propósito, é oportuno averbar a advertência feita pelo i. Min. Celso de Mello, do E. STF: “A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na Constituição. A válida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame ‘in abstracto’ do ato estatal impugnado seja realizado exclusivamente à luz do texto constitucional. Desse modo, a inconstitucionalidade deve transparecer diretamente do texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode e nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da prévia análise de outras espécies jurídicas infraconstitucionais, para, somente a partir desse exame e num desdobramento exegético ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegitimidade constitucional do ato questionado” (ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546, g.n.).

         A apreciação da ação deve se restringir, portanto, à argumentada incompatibilidade entre a norma impugnada e a Constituição do Estado de São Paulo, sob pena de violação ao art. 102, I, “a”, e ao art. 125, § 2º, ambos da CF.

2.   MÉRITO

        O pedido deve ser julgado procedente. Senão vejamos.

         Com efeito, a Lei n. 4.389, de 23 de outubro de 2014, do Município de Caçapava, assim estabelece:

LEI N. 4.389, DE 23 DE OUTUBRO DE 2014.

Denomina “Conceição Favorino Claro” a via pública que especifica.

“Art. 1º - Fica denominada “Conceição Favorino Claro” a via pública localizada no Bairro Padre Marcelo, acesso localizado na Estrada Municipal Roberto Januzzi, na altura do número 1319, conforme croqui em anexo.

Art. 2º- As despesas com a execução da presente Lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 3º- Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.  

            Pois bem. Não há na Constituição em vigor reserva de iniciativa para denominação de bens públicos em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.

         Contudo, é necessário distinguir as seguintes situações: (a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, ou alterações na nomenclatura já existente, caso em que a iniciativa é concorrente; (b) o ato de atribuir nomes a logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência privativa do Executivo.

         No Brasil, como se sabe, o governo municipal apresenta funções divididas, incumbindo à Câmara as legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais, não existe subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. Nesta sinergia de funções, é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, 8.ª ed., p. 427 e 508).

         Em sua função normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica, bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, caracterizada pela prática de atos concretos de administração.

         Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes (ob. cit., p. 429). Assim, no exercício de sua função legislativa, a Câmara está autorizada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).

         A nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, 2.ª ed., p. 285).

         De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros públicos seria tarefa quase impossível.

         Diferente é a finalidade da denominação de próprios, em que não se visa a orientar a população, mas simplesmente homenagear pessoas ou fatos históricos.

         Contudo, a despeito de tal distinção, nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente fixados em lei - editada para regulamentar essa matéria.  

         Em suma, a Câmara pode, por meio de lei, compelir o Prefeito a atender tal determinação, sem usurpar sua função. Mas não poderá, como ocorre na hipótese vertente, editar norma de conteúdo concreto e individualizante, conferindo a denominação de logradouro específico.

         Na ordem constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula desenvolvida pelo célebre jusfilósofo Montesquieu, não existe a menor possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de leis, pois a Constituição é clara ao atribuir ao prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (Constituição Estadual, art. 47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (Constituição Estadual, art. 47, XIV), ou seja, emitir atos administrativos ou normativos na esfera de sua atribuição exclusiva (também denominada reserva da Administração).

         Bem por isso, aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

         Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, que atribui nome a logradouro ou prédio público só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os poderes (Constituição Estadual, art. 5.º).

         A propósito, ao examinar o assunto, o insigne Ministro FRANCISCO REZEK deixou registrado que:

“No contexto dos debates que esta matéria provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade imobiliária, ou a visão do poder Executivo como titular do domínio dos bens públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos da Justiça” (STF, Rp 1.117-SP).

                   Sobre o tema, este egrégio Tribunal de Justiça já decidiu:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste – Ação procedente” (ADI 115.877.0/5, Rel. Des. Laerte Nordi, 20-07-2005).

         A Câmara não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração. E a nomenclatura de logradouros e próprios públicos - que constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a conclusão de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível com o princípio da separação dos poderes.

         Em suma, a denominação de bens, prédios, logradouros e vias do patrimônio público consiste em ato privativo da gestão administrativa reservada ao chefe do Poder Executivo. Lei municipal de iniciativa parlamentar sobre o assunto usurpa a reserva da Administração (art. 5º da Constituição Estadual).

No mais, não pode prosperar a alegação do requerente de que as normas em vigor geram despesas ao erário e não indicam fonte de custeio.

É verdadeiro sofisma a alegação de que toda e qualquer lei que gere despesa só possa advir de projeto de autoria do Executivo. O Supremo Tribunal Federal tem estimado que:

“não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

Ainda, é insubsistente a alegação de falta de receita própria (art. 25, Constituição Estadual) posto que sua ausência apenas compromete a eficácia da norma no exercício financeiro de sua vigência.

Com efeito, “inclina-se a jurisprudência no STF no sentido de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01).

Diante do exposto, aguarda-se a citação do Procurador Geral do Estado, para, querendo, defender o ato normativo impugnado, após requer a procedência da ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 4.389, de 23 de outubro de 2014, do Município de Caçapava.

                 São Paulo, 18 de fevereiro de 2015.

                                    

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

md/ts