Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2224000-61.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Caçapava

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Caçapava

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 5.306, de 5 de agosto de 2014, do Município de Caçapava, que "Dispõe sobre a remoção de veículos abandonados ou estacionados em situação que caracterize seu abandono em logradouros e vias públicas".

2)      Abuso do poder de emendar. Emenda que importa em aumento de despesa a projeto de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo.

3)      Procedência parcial do pedido.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 5.306, de 5 de agosto de 2014, do Município de Caçapava, que "Dispõe sobre a remoção de veículos abandonados ou estacionados em situação que caracterize seu abandono em logradouros e vias públicas".

Sustenta o requerente que o ato normativo impugnado, de iniciativa do Poder Executivo sofreu emendas modificativas que o tornaram inconstitucional por conter vício de iniciativa, afrontar o princípio da separação e harmonia dos poderes, por criar despesas sem a fonte de custeio e por violar regras integrantes do Sistema Nacional de Trânsito, regidas principalmente pela Lei Federal nº 9.503 de 23 de setembro de 1997. Daí a alegação de violação dos arts. 5º, 25, 37, 47, II e XIV, 144 e 176, I, todos da Constituição Estadual.

Foi indeferido o pedido de liminar (fls. 129/130).

Citado regularmente (fl. 137), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 139/141).

Notificado regularmente (fl. 143), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações levantando preliminar de inépcia da inicial por falta de clareza no pedido. No mérito sustenta a validade do ato normativo impugnado (fls. 145/150).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 5.306, de 5 de agosto de 2014, do Município de Caçapava, publicada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição dos vetos do Poder tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º Fica proibido abandonar veículo ou estacioná-lo em situação que caracterize seu abandono em logradouros e vias públicas do Município de Caçapava.

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se abandonado ou estacionado em situação que caracterize abandono o veículo:

I – deixado em logradouro ou via pública por mais de 120 (cento e vinte) dias sem funcionamento e movimento, ocasionando acúmulo de lixo ou mato sob ele ou em seu entorno;

II – que estiver parado com vidro quebrado ou com avaria nas portas, permitindo o acesso de pessoas sem obstrução;

III – em casos que caracterize o estado de decomposição de sua carroceria, gerando risco à coletividade e à saúde pública.

Art. 3º O proprietário de veículo automotor, elétrico, de propulsão humana, reboque, semi-reboques ou de tração animal que abandonar ou estacionar seu veículo em situação que infrinja a presente Lei terá seu veículo removido pelo órgão executivo de trânsito municipal, observadas as seguintes disposições:

I – será emitida, pelo agente do órgão executivo do trânsito municipal ou outro agente fiscalizador do Município, notificação, via Aviso de Recebimento – AR ao proprietário, comprador, possuidor ou depositário, determinando a retirada do veículo no prazo de 5 (cinco) dias úteis após o seu recebimento;

II – não sendo atendido o disposto no inciso anterior, o veículo será recolhido e depositado em área de propriedade do Município, sendo liberado somente após o pagamento das despesas de remoção, das multas e dos preços públicos fixados em lei;

III – na remoção, o veículo deverá ser fotografado ou filmado na situação em que se encontra, para servir como prova do abandono e consequente infração a esta Lei.

Art. 4º Não sendo identificado nem encontrado o proprietário, será publicado edital em jornal de circulação no Município, com as características do veículo e o local que se encontra abandonado, iniciando, a partir da publicação, o prazo de 05 (cinco) dias para a remoção do veículo.

Parágrafo único.  Será afixado no veículo aviso contendo o prazo para a sua remoção e a sujeição as penas da lei.

Art. 5º Após a remoção do veículo sem a identificação do proprietário, será publicado edital em jornal de circulação no Município, com o prazo de 30 (trinta) dias, para quem  se  julgar  com  direito  de  reclamar a  propriedade do bem.

Art. 6º Todos os veículos removidos a depósito estarão sujeitos a leilão após 180 (cento e oitenta) dias da remoção.

Parágrafo único.  Os critérios e regras para o leilão dos veículos removidos serão regulamentados pelo Poder Executivo.

Art. 7º As reclamações sobre abandono ou estacionamento de veículo em situação que caracterize abandono nas vias públicas deverão ser encaminhadas ao órgão executivo de trânsito no município ou a outro órgão designado pelo Poder Executivo Municipal.

Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

A preliminar de inépcia da inicial deve ser afastada uma vez que o requerente, embora tenha impugnado especificamente as emendas modificativas, formulou pedido certo referente à inconstitucionalidade total da Lei nº 5.306/2014.

Verifica-se que as emendas modificativas impugnadas pelo requerente, relativas aos art. 2º, I, 3º I e 6º da Lei nº 5.306/2014, decorreram do regular exercício do poder de emenda parlamentar. O mesmo não se pode dizer em relação à emenda que originou o inciso II do art. 3º, senão vejamos.

 As alterações decorrentes das emendas no que se refere à ampliação do prazo para a caracterização do abandono de veículo, exigência de notificação através de correspondência com aviso de recebimento e ampliação do prazo para a realização de leilão, não descaracterizaram projeto original que disciplinava o serviço público de remoção de veículos públicos abandonados ou estacionados em logradouros e vias públicas em situação que caracterize seu abandono.

Apenas a imposição do recolhimento e depósito dos veículos em área de propriedade do Município, traz reflexos no orçamento do município, com aumento na despesa, na medida em que haverá necessidade do poder público criar uma estrutura para serviço até então não existente e que pelo projeto seria confiado a particular através de convênio.

As emendas modificativas, com exceção da que importou na redação do art. 3º, II da Lei nº 5.306/2014, estão em conformidade com os arts. 63, I e 166, § 3º, I e II da Constituição Federal, normas que regulam o processo legislativo que nos termos do art. 144 da Constituição Estadual devem ser observadas pelos Municípios.   

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes.

 O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa, o ato que deflagra o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).

A matéria de que trata a lei em análise – criação e disciplina de serviço público – é daquelas cuja iniciativa cabe ao Prefeito. Nesse aspecto, não há qualquer objeção, pois a Lei nº 5.306/2014, do Município de Caçapava, decorreu de projeto de iniciativa do Poder Executivo.

A questão na verdade deve ser analisada sob a ótica dos limites do poder de emendar.

Sabe-se que apresentado o projeto pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação, abrindo-se caminho para a fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação públicas da matéria. Nessa fase se sobressai o poder de emendar, prerrogativa inerente à função legislativa do parlamentar, que não é absoluta, pois se encontra limitada às restrições impostas, em “numerus clausus”, pela Constituição Federal (art. 63, I e 166, § 3º, I e II ), reproduzidas pelo art. 24, § 5º, 1 e 175, § 1º, 1 e 2 da Constituição Estadual.

 Da interpretação das normas que regem o processo legislativo, pode-se afirmar que a limitação ao poder de emendar projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo existe no sentido de evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

A este propósito o Supremo Tribunal Federal consignou que:

“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção legalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).

Mas o considera restrito, como se conclui do trecho acima destacado e do paradigmático julgado adiante transcrito:

“Incorre em vício de inconstitucionalidade formal (CF, artigos 61, § 1º, II, "a" e "c" e 63, I) a norma jurídica decorrente de emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, de que resulte aumento de despesa. Parâmetro de observância cogente pelos Estados da Federação, à luz do princípio da simetria. Precedentes. 2. Ausência de prévia dotação orçamentária para o pagamento do benefício instituído pela norma impugnada. Violação ao artigo 169 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 19/98. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADI 2079/SC, STF - Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ 18.06.2004, p. 44; Ement. Vol. 2156-01, p. 73).”

Estabelecidas estas considerações, tem-se, no caso em análise, que as inovações normativas decorrente das emendas modificativas implementadas pela Câmara de Vereadores, têm pertinência com a matéria e não importaram em alteração extrema do texto originário, rendendo ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

No entanto, a Constituição do Estado, em simetria com o modelo Federal, não permite emenda que importe em aumento de despesa aos projetos de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo (art. 24, § 5º, nº 1).

Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Percebe-se neste aspecto que a redação conferida pela emenda parlamentar ao inciso II do art. 3º da Lei nº 5.306/2014, do Município de Caçapava, acarreta despesa sem a indicação da fonte de custeio. Esta alteração que acaba por obrigar a criação pelo poder público municipal de serviço até então inexistente, representa inequívoco abuso do poder de emendar, com a consequente violação do princípio da separação dos poderes de que trata o art. 5º da Constituição do Estado.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado parcialmente procedente para declarar apenas a inconstitucionalidade da expressão “em área de propriedade do Município” do inciso II do art. 3º da Lei nº 5.306/2014, do Município de Caçapava.

São Paulo, 12 de fevereiro de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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