Parecer
Processo nº 22248887-45.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Hortolândia
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de
Hortolândia
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade.
Lei nº 3.039, de 30 de outubro de 2014, do Município de Hortolândia, de
iniciativa parlamentar que Institui a
“Semana de Solidariedade aos Povos Africanos”, e dá outras providências.
2) Matéria de iniciativa reservada:
criação de órgão público. Inteligência do art. 24, § 2º, 2, da Constituição
Estadual. Precedentes do STF e do TJ/SP.
3) Ofensa ao princípio da separação dos
poderes. Violação dos arts. 5º, 25, 47, II e XIV, 144 e 176, I, da Constituição
do Estado. Parecer pela procedência parcial do pedido.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 3.039, de 30 de outubro de 2014, do Município de Hortolândia, de iniciativa parlamentar que dispõe sobre a instituição, no Município de Hortolândia, da “Semana de Solidariedade aos Povos Africanos” e dá outras providências.
Sustenta o autor que o ato normativo impugnado é inconstitucional por violar o princípio da independência e harmonia dos poderes, conter vício de iniciativa, bem como por não indicar recursos para suportar os novos encargos. Daí a alegação de afronta aos arts. 5º, 25, 47, II e XIV, todos da Constituição Estadual.
O Presidente da Câmara Municipal apresentou informações defendendo a validade do ato normativo impugnado (fls. 31/36).
Citado regularmente à fl. 23, o Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 25/27).
É a síntese do ocorrido nos autos.
A Lei nº 3.039, de 30 de outubro de 2014, do Município de Hortolândia, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após superado o veto do executivo, tem a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º Fica instituída, no âmbito do Município de Hortolândia, a “Semana de Solidariedade aos Povos Africanos”, que deverá ocorrer, anualmente, na semana do dia 25 de maio, ficando incluída no Calendário Oficial do Município.
Art. 2º A organização das atividades ficará a cargo de uma Comissão Organizadora composta por integrantes do Conselho Municipal de Igualdade Racial e por grupos e entidades voltadas à questão das culturas africanas e afro-brasileiras e contará com o apoio do Município de Hortolândia.
Art. 3º A Semana de Solidariedade aos Povos Africanos contará com atividades culturais, sociais e políticas voltadas a valorização da contribuição dos povos africanos na formação de nossa cidade, de nosso estado e de nosso País, bem como a solidariedade com os que ainda sofrem os efeitos da herança colonialista naquele continente.
Art. 4º Esta Lei entrará em vigor da data de sua publicação.
(...)”
Inicialmente, é importante ressaltar que cada ente federativo dispõe de autonomia para fixar datas comemorativas que sejam relacionadas com fatos ou pessoas que façam parte de sua história, bem como de incluir em seu calendário eventos típicos da localidade, só havendo limites quanto à fixação de feriados, por força de legislação federal de regência, o que, porém, não ocorre na situação em análise.
Não é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo a iniciativa legislativa para a criação de datas comemorativos ou eventos típicos, podendo a Câmara de Vereadores legislar sobre esta matéria.
No entanto, a Lei nº 3.039, de 30 de outubro de 2014, do Município de Hortolândia, não versa apenas sobre instituição de data comemorativa, envolve também atos de gestão administrativa, referente a organização propriamente dita dos eventos.
Com efeito, a atividade legislativa extrapolou os limites, no tocante apenas as expressões “do Conselho Municipal de Igualdade Racial”, insertas no art. 2º, da Lei 3.039, de 30 de outubro de 2014, em confronto com a ordem constitucional, por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao
Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos
Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de
administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com
autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)”
A composição da comissão
organizadora por integrantes do Conselho Municipal de Igualdade Racial,
prevista art. 2º, da Lei nº 3039/2014 encontra-se
no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento
e direção superior cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários
Municipais.
A organização propriamente dita da Semana de Solidariedade aos Povos Africanos será realizada por uma comissão composta por integrantes do Conselho Municipal de Igualdade Racial, instituída pelo ato normativo impugnado é matéria exclusivamente relacionadas à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo e seus secretários.
Não se trata de mera fixação de
data comemorativa ou época para realização de evento de gestão privada, mas de
atividade cultural inserida no calendário oficial do município a quem o ato
impugnado atribuiu responsabilidade pela organização ao Poder Executivo.
Verifica-se na lei impugnada que as atividades previstas
para a Semana de Solidariedade aos Povos
Africanos serão organizadas por uma comissão composta, dentre outros, por
integrantes do Conselho Municipal de Igualdade Racial, o qual é um órgão do
Poder Executivo.
Desta
forma, apenas no tocante às expressões “do Conselho Municipal de Igualdade
Racial” se verifica a inconstitucionalidade.
Fixar por lei a promoção de evento
cultural com gestão do Poder Executivo trata-se de atividade nitidamente
administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a
satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos
Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida
na esfera do poder discricionário da administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita à disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode,
através de lei, ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da imposição à administração realizar o evento cultural denominado Semana de Solidariedade aos Povos Africanos, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da promoção e realização de atividades culturais em benefício dos munícipes. Trata-se de atuação administrativa fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro Poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 5º, 47, II e XIV e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia
e independência que devem existir entre os poderes estatais.
A composição da comissão
organizadora por integrantes do Conselho Municipal de Igualdade Racial, matéria
disciplinada pelo art. 2º, encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativa do Chefe do Poder Executivo.
Assim,
a Lei, ao instituir serviço municipal, de um lado viola o art. 47, II e XIV, no
estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à
organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada
da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na
medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida ao impor ao município a promoção de evento em homenagem aos povos africanos, não indicou os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos.
Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
Diante do exposto, o pedido deve ser julgado parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade apenas das expressões “do Conselho Municipal de Igualdade Racial”, constantes do artigo 2º da Lei nº 3.039, de 30 de outubro de 2014, do Município de Hortolândia.
São Paulo, 10 de março de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aca/mi