Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 2227653-71.2014.8.26.0000

Requerente: Diretório Regional do Partido Socialista Brasileiro

Requeridos: Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de São Vicente

 

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 2.980-A/2012, do Município de São Vicente, de iniciativa parlamentar que “Dispõe sobre normas gerais na prestação de serviços funerários, administração de cemitérios e da outras providências”.

2)     Parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com a legislação infraconstitucional.

3)     Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo à organização e regulamentação dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente. Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, 120 e 144 da Constituição do Estado). 

4)     Parecer pela procedência do pedido.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 2.980-A/2012, do Município de São Vicente, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre normas gerais na prestação de serviços funerários, administração de cemitérios e da outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por vício de iniciativa, violação do princípio da separação dos poderes, uma vez que trata de regime de concessão de serviço público e por tratar de matéria que deveria ser objeto de lei complementar. Daí a afirmação da violação dos art. 5º, 21, 24, § 2º, 47, II, XIV e XVII e 144 da Constituição Estadual e art. 51, XII, da Lei Orgânica Municipal.

A liminar foi indeferida (fls. 18/19).

Notificado à fl. 51, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações sustentando a validade do ato normativo impugnado (fls. 64/67).

Devidamente notificado (fl. 61), o Prefeito Municipal apresentou informações a fls. 117/139, sustentando a constitucionalidade da lei, uma vez que nos termos do art. 52 da Lei Orgânica Municipal não seria de iniciativa privativa do Prefeito Municipal e de que ela está em consonância com o art. 117 da Constituição Estadual.

Citado regularmente (fl. 111), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 113/115).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 2.980-A/2012, do Município de São Vicente, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal após rejeição do veto do Prefeito Municipal, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Os serviços funerários, de caráter essencial, serão executados diretamente por agentes do Poder Público ou, indiretamente, sob regime de permissão ou concessão em caráter não exclusivo.

Art. 2º - Os serviços funerários são obrigatórios ou facultativos.

Art. 3º - São serviços obrigatórios:

I- fornecimento de urna ou caixão;

II- remoção do local do falecimento até o velório;

III- paramento para urna;

IV- fornecimento de carro para deslocar o corpo até o local do enterro quando necessário;

V- higienização, preparo e paramentação de cadáveres;

Art. 4º - São serviços facultativos:

I- Serviços de velório;

II- Maquiagem necrófila;

III- Transporte intermunicipal de cadáver;

§1º- A execução de serviços facultativos ficam exclusivamente a critério do contratante do serviço: aluguel de velórios, capelas, altares, banquetas, aquisição de coroa e arranjo de flores, bem como outros itens correlatos.

§2º- O oferecimento ou a execução de serviços facultativos não implicam ou condicionam a execução dos serviços obrigatórios;

Art. 5º- Os serviços funerários serão prestados e executados, exclusivamente, por concessionárias estabelecidas no município, cabendo à Administração Municipal fiscalizar o bom e fiel cumprimento das disposições legais pertinentes, sendo proibido a empresas congêneres estabelecidas em outros municípios exercerem atividades concorrentes.

Art. 6º- Os cemitérios podem se constituir em parques ou edificações públicas ou privadas destinadas ao velório, sepultamento, preparação, depósito ou reservatório de cadáveres ou restos mortais humanos.

Art. 7º- Os responsáveis pelos cemitérios privados deverão observar as normas legais e regulamentares expedidas pelo Poder Público Municipal, estando submetidos ao Poder de Polícia daquele Poder.

Art. 8º- A implantação de novos cemitérios públicos e privados e adequação dos existentes atenderão às exigências contidas nesta Lei, observadas ainda, as seguintes normas:

I- plano diretor;

II- a lei de uso e ocupação de solo;

III- as normas regulamentares expedidas pela autoridade sanitária competente.

Art. 9º- Fica proibida a permanência de agentes funerários em hospitais, institutos médicos legais e unidades de saúde, exceto quando solicitado pela família e exclusivamente para a prestação de serviços funerários.

Art. 10º- Sem prejuízo da aplicação das penalidades civis e penais cabíveis, as empresas que descumprirem as prescrições legais, sofrerão, sucessivamente as seguintes penas:

I- advertência;

II- multa no valor de cinco mil reais;

III- suspensão da atividade até o cumprimento das exigências legais;

IV- cassação do alvará de localização e funcionamento em caso de reincidência.

Art. 11- Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 12- Revogam-se as disposições em contrário, especialmente a Lei nº 2.019 de 12 de junho de 1985.”

Inicialmente, oportuno ressaltar que o contencioso de constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, sendo defesa o contraste daquela com o direito infraconstitucional. Assim, deixa-se de analisar a alegação de violação à Lei Orgânica Municipal e à legislação infraconstitucional.

Em que pese a intenção do parlamentar em adequar a legislação municipal referente aos serviços funerários a Constituição Estadual e a legislação infraconstitucional, sobretudo a Lei nº 8.987/95, o ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, 119 da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 119 - Os serviços concedidos ou permitidos ficarão sempre sujeitos à regulamentação e fiscalização do Poder Público e poderão ser retomados quando não atendam satisfatoriamente aos seus fins ou às condições do contrato

 (...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

O serviço funerário é um serviço público de competência municipal, pois diz respeito a atividades de precípuo interesse local, relacionadas à confecção de urnas funerárias, organização de velório, transporte dos mortos e a administração dos cemitérios. Nos termos da doutrina de Hely Lopes Meirelles “as três primeiras podem ser delegadas pela Municipalidade, com ou sem exclusividade, a particulares, como pode o município realiza-las por suas repartições autarquias ou entidades paraestatais” (Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, 6ª. ed. 1993).

Assim, a matéria disciplinada pela lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa da União, do Estado ou do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe respectivamente ao Presidente, Governador do Estado ou Prefeito Municipal, com auxílio dos Ministros, Secretários Estaduais ou Municipais.

O serviço funerário é serviço público e sua disciplina, por entender com a atribuição de órgãos e entidades da Administração Pública, demanda ato normativo privativo da alçada do Chefe do Poder Executivo (art. 47, II, XIV e XIX, a, Constituição Estadual) e, quando muito, exigiria à luz de reserva absoluta ou formal de lei, lei de iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo (art. 24, § 2º, 2, Constituição Estadual).

As condições de prestação do serviço público, seja de forma direta ou indireta, como é o caso do serviço funerário, são matérias exclusivamente relacionadas à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo da União, Estado ou Município.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Logo, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre no caso em exame, em função da regulamentar do serviço funerário e dos cemitérios, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

O ato normativo tratou também das condições da prestação do serviço público a serem permitidos ou concedidos, atividade que cabe privativamente ao Poder Executivo (art. 119 da Constituição Estadual).

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da organização e regulamentação dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente. Trata-se de atuação administrativa fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes e da gestão dos contratos de concessão de serviços públicos, previstas na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, a, 119, e 144)

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX, da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao regular condições da prestação de um serviço público nacional, estadual e municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Em que pese a legislação anterior (Lei nº 2.019/85) não ter sido recepcionada pela Constituição Estadual e revogada pelo art. 43 da Lei nº 8.987/95, o ato normativo impugnado é inconstitucional em face do vício formal apontado;

         Em síntese, caberia nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 2.980-A/2012, do Município de São Vicente.

 

              São Paulo, 16 de março de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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