Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 2023496-05.2015.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade.
Lei nº 7.246,
de 18 de março de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que
“Instituiu o Programa ‘Cata Treco’ no
Município de Guarulhos”.
2) Encontra-se na reserva da
Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo
a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda
inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para
cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).
3) Violação do princípio da separação de
poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da
Constituição do Estado). Procedência do pedido.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade
proposta pelo Prefeito de Guarulhos, tendo como alvo a Lei nº 7.246, de 18 de março de
2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que “Instituiu o Programa ‘Cata Treco’ no
Município de Guarulhos”.
Sustenta
o requerente (fls. 01/20), que a lei municipal
impugnada apresenta dois problemas insanáveis de inconstitucionalidade, um
decorrente de vício formal, tendo sido violado os incisos II e XIV do art. 47
da Constituição Estadual, consistente na ausência de competência para
deflagração da lei e ao procedimento fixado para sua elaboração, e outro,
consistente em vício material, por afronta ao princípio da independência e
harmonia entre os Poderes, consubstanciado nos artigos 5º, 47, II e XIV, e 144
da Constituição Estadual.
Refere-se também aos recursos a serem destinados à
execução da lei municipal, alegando que houve ofensa aos princípios
orçamentários constitucionais, com violação aos artigos 25, 47, inciso XVII,
174 e 176, inciso I, da Constituição Estadual.
A
liminar foi deferida (fls. 42/43).
Devidamente notificado (fl. 48), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações (fls. 57/64).
Citado regularmente (fls. 47, 50/51), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 53/55).
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
Procede o pedido.
A Lei nº 7.246, de 18 de março de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que “Instituiu o Programa ‘Cata Treco’ no Município de Guarulhos”, possui a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º - Fica instituído o Programa ‘Cata Treco’ no âmbito do Município de Guarulhos.
Art. 2º - O programa servirá para coleta e remoção de materiais disponibilizados pelos munícipes, executando-se lixo urbano e entulhos da construção civil.
Art. 3º - A coleta e remoção será realizada pelo Executivo Municipal diretamente através das Secretarias de Meio Ambiente e de Serviços Públicos, ou indiretamente por empresas especializadas e contratadas por regular processo de licitação pública.
§ 1º - Utilizando caminhões de grande porte, o programa tem por objetivo coletar e remover objetos que são deixados nas vias públicas, córregos, vielas e similares, que não fazem parte da coleta diária realizada pelo serviço de coleta de lixo urbano, tais como, fogões, geladeiras, colchões, sofás, pneus, dentre outros.
§ 2º - Os dias e horários de funcionamento do serviços serão previamente comunicados através de jornais, panfletos e carro de som, para cada bairro e região, possibilitando aos munícipes tempo de separar o material e colocá-lo na calçada, sendo que os caminhões responsáveis pela coleta estarão devidamente identificados com o emblema da Operação Cata Treco.
§ 3º - O material recolhido deverá ser encaminhado às Centrais de Triagem do Município, as quais se encarregarão pela destinação final ambientalmente adequada dos resíduos, encaminhando às Cooperativas e Unidades Recicladoras os materiais recicláveis, recuperáveis, reaproveitáveis ou reutilizáveis e, aos aterros sanitários os demais resíduos.
Art. 4º - A presente Lei será regulamentada pelo Executivo Municipal no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados da data de sua publicação.
Art. 5º - O Executivo Municipal enviará à Câmara
Municipal, semestralmente, relatório contendo a quantidade de resíduos
coletados, quantias de cada produto e calores eventualmente recolhidos com essa
atividade.
Art. 6º - Ficam as Secretarias Municipais envolvidas no programa responsáveis pela fiscalização do cumprimento desta Lei.
Art. 7º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de verbas próprias, consignadas em Orçamento e suplementadas se necessário.
Art. 8º - Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.
(...)”
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não
implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A
matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade
administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior
cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.
A instituição de um programa municipal na área de serviço público (coleta de lixo) é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, porque disciplina programa governamental.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades coletivas, vinculadas aos direitos
fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida
na esfera do poder discricionário da administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita à disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre, invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função de obrigar o Poder Executivo Municipal a realizar coleta e remoção de materiais disponibilizados pelos munícipes, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação de programa de coleta e remoção de materiais disponibilizados pelos munícipes. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A
inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de
poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts.
5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É pacífico
na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a Lei, ao regulamentar ainda que parcialmente um serviço público, de um lado,
viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção
da administração, à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria
essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art.
24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
Criar programas e disciplinar serviços públicos –
precisamente o que se verifica na hipótese em exame – é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do
Chefe do Executivo.
Ademais, para o efetivo cumprimento da lei impugnada, são necessárias diversas providências a cargo do Poder Executivo (art. 3º), como a disponibilização de caminhões de grande porte para a remoção do lixo (§ 1º), identificação dos mesmos com o emblema da operação “Cata Treco” (§ 2º), o encaminhamento do material recolhido às centrais de triagem do Município (§ 3º), etc. Por este motivo, a matéria de que cuida o ato normativo impugnado é de atribuição privativa do Poder Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida, ao impor ao Município encargos (art. 3º), como a disponibilização de caminhões de grande porte para a remoção do lixo (§ 1º), identificação dos mesmos com o emblema da operação “Cata Treco” (§ 2º), o encaminhamento do material recolhido às centrais de triagem do Município (§ 3º), etc., não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cujo desenvolvimento demanda meios financeiros que não foram previstos.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 7.246, de 18 de março de 2014, do Município de Guarulhos.
São Paulo, 27 de abril de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
lfmm/dcm