PROTOCOLADO nº 83.449/14

Interessado: 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

Objeto: art. 2º, inciso I, da Lei nº 14.072, de 18 de outubro de 2005, do Município de São Paulo.

 

Ementa: Representação para eventual ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade em face do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 14.072, de 18 de outubro de 2005, do Município de São Paulo. Cobrança, pela Companhia de Engenharia de Tráfego – CET, dos custos operacionais referentes aos serviços prestados em eventos, relativos ao sistema viário. Exceção da cobrança aos eventos exclusivamente de caráter religioso. Ausência de detecção de incompatibilidade com a Constituição Estadual. Norma que se harmoniza com o direito de liberdade de reunião e de manifestação (art. 5º, IV, VI e XVI, CF) e com a proibição de embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos e igrejas, contida no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal. Inconsistência da alegação de incompatibilidade com o artigo 150, inciso IV, e § 4º da Constituição Federal, e com o artigo 163, VI, “b”, e § 4º, da Constituição Estadual, em razão da natureza jurídica não tributária da cobrança. Preço público. Arquivamento da representação.

 

Excelentíssimo Senhor Subprocurador-Geral de Justiça:

 

Trata-se de representação formulada pelo Dr. Maurício Antônio Ribeiro Lopes, Digníssimo 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, em face do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 14.072, de 18 de outubro de 2005, do Município de São Paulo.

Alega o representante, em síntese, que referido ato normativo seria incompatível com o disposto no artigo 150, inciso IV, e § 4º da Constituição Federal, e com o artigo 163, VI, “b”, e § 4º, da Constituição Estadual, que estabelecem imunidade tributária aos templos de qualquer culto, sob o argumento de que a imunidade tratada em referidos dispositivos constitucionais teria natureza objetiva e não subjetiva. Assim – conclui o representante -, a imunidade só poderia contemplar o edifício, prédio ou outras instalações onde praticado o culto religioso, o que tornaria inconstitucional o dispositivo legal mencionado.

Com a devida vênia do Ínclito Membro do Ministério Público, propõe-se o arquivamento da presente representação.

Deveras.

O ato normativo contra o qual se insurge o Digno Promotor de Justiça tem, no que interessa, a seguinte redação:

“Lei nº 14.072, de 18 de outubro de 2005

Autoriza a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET a cobrar pelos custos operacionais de serviços prestados em eventos, relativos à operação do sistema viário.

(...)

Art. 1º Fica a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET  autorizada a cobrar pelos custos operacionais de serviços prestados relativos à operação do sistema viário, decorrentes da realização de eventos, inclusive seus ensaios, realizados em via aberta à circulação, ou em locais fechados cujos reflexos possam perturbar ou interromper a livre circulação de veículos e pedestres, ou colocar em risco sua segurança.

(...)

Art. 2º Excetuam-se do pagamento do preço correspondente aos custos operacionais e dos valores referentes aos equipamentos de sinalização utilizados os eventos exclusivamente de caráter:

I - religioso

II – político-partidário

III – social, quando promovido por entidade declarada de utilidade pública, conforme legislação em vigor;

IV – manifestações públicas, através de passeatas, desfiles ou concentração popular que tragam uma expressão pública de opinião sobre determinado fato;

V – manifestações de caráter cívico de notório reconhecimento social.

Parágrafo único. Não farão jus à gratuidade mencionada no ‘caput’ deste artigo as atividades que contenham comercialização de bens ou serviços, shows artísticos, exposição de marcas e/ou logotipos visando divulgação comercial de produtos ou serviços.

(...)

Art. 6º Considera-se para efeito desta lei evento como sendo toda e qualquer atividade que interfira nas condições de normalidade das vias do município, perturbando ou interrompendo a livre circulação de pedestre e ou veículos, ou que coloquem em risco a segurança das pessoas e bens.

(...)”

De proêmio, cumpre observar que a discussão sobre a extensão da imunidade tributária concedida aos templos de qualquer culto, prevista tanto na Constituição Federal quanto na Estadual, não tem, com o devido respeito, relevância para o desate da presente controvérsia, uma vez que a cobrança prevista na lei objurgada não tem natureza de tributo, mas de preço público.

Como é cediço, a Constituição da República, ao regular o sistema constitucional tributário, estabeleceu a denominada “regra matriz de incidência”. Embora não tenha ela própria criado tributos, indicou, de forma genérica, a norma padrão de incidência, ou seja, as hipóteses genericamente consideradas, das quais o legislador infraconstitucional de todas as esferas da Federação pode se valer para criar tributos.

A competência das pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para instituir e arrecadar tributos deve se desenvolver dentro desses limites, sob pena de mostrar-se inconstitucional.

É indispensável invocar, nesse passo, as considerações formuladas por Roque Antônio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário, 4ª ed., Malheiros, 1993, p. 257):

“A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu – ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional”.

Além disso, a respeito da hipótese de incidência das taxas, anota Roque Antônio Carrazza que deve ser “uma prestação de serviço público diretamente referida a alguém”. São os serviços específicos, prestados uti singuli. “Gozam, portanto, de divisibilidade, é dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes sim podem ser custeados por meio de taxas de serviço” (op. cit., p. 271/272).

No mesmo sentido, anotou oportunamente Geraldo Ataliba (Hipótese de Incidência Tributária, 4ªed., São Paulo, RT, 1991, p. 128 e ss.) que a taxa é espécie de tributo vinculado, tendo em vista o critério jurídico do aspecto material do fato gerador, ou seja, a “hipótese de incidência”, devendo assim ser serviço especificamente ligado ao contribuinte.

Nessa mesma linha de raciocínio, aduz Hely Lopes Meirelles (Direito Municipal Brasileiro, 6ª ed., 3ª tir., São Paulo, Malheiros, 1993, p. 141), que: “quanto à divisibilidade, o conceito do Código Tributário Nacional está correto, pois caracteriza como divisíveis os serviços uti singuli, i. é, os de utilização individual e mensurável, que se contrapõem aos serviços uti universi, prestados indistintamente a todos os usuários, sem possibilidade de individualização e medição, muito embora possam beneficiar mais determinadas categorias do que outras. (...) Somente a conjugação desses dois requisitos – especificidade e divisibilidade – aliada à compulsoriedade do serviço, pode autorizar a imposição de taxa”.

É pacífico, na doutrina, o entendimento de que só serviços específicos e divisíveis podem render ensejo à tributação por meio de taxas. Confira-se, entre outros: Luciano Amaro Neto, Direito Tributário Brasileiro, 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 33 e ss; Ricardo Lobo Torres, Curso de Direito Financeiro e Tributário, 14ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 403; Leandro Paulsen, Direito Tributário, 9ª ed., Porto Alegre, 2007, p. 48.

Essa posição também é assente junto ao Colendo Supremo Tribunal Federal, no sentido de não se admitir a tributação, por meio de taxas, de serviços que não sejam específicos e divisíveis. Confiram-se os seguintes precedentes: RE 367.004-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 31-5-07, DJ de 22-6-07; ADI 2.424, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º-4-04, DJ de 18-6-04; ADI 948, Rel. Min. Francisco Rezek, julgamento em 9-11-95, DJ de 17-3-00; AI 245.539-AgR, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 14-12-99, DJ de 3-3-00; RE 249.070, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 19-10-99, DJ de 17-12-99; ADI 447, voto do Min. Carlos Velloso, julgamento em 5-6-91, DJ de 5-3-93.

No caso em apreço, a cobrança dos custos operacionais decorrentes de eventos não pode ser definida como pagamento de taxa, o que só pode ocorrer, como visto acima, quando se trata de prestação de serviço divisível.

Este é, aliás, o entendimento desse Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que reconheceu a natureza jurídica de preço público às cobranças realizadas com suporte na Lei n. 14.072, de 18 de outubro de 2005, conforme se pode verificar dos julgados abaixo:

“OPERAÇÃO DO SISTEMA VIÁRIO – Custo operacional do serviço - Natureza jurídica de preço público, sem característica tributária – Legitimidade da cobrança - Recurso provido” (AC nº 0035077- 96.2009.8.26.0053, rel. Des. Francisco Vicente Rossi, 11ª C. Direito Público, j. 7.11.11).

(...).

 “COBRANÇA - CET - custos operacionais decorrentes de evento realizado pela ré – Lei Municipal n. 10.072/05 - valor cobrado tem natureza de preço público e não de taxa - legalidade da cobrança -ação procedente - recurso improvido” (AC nº 9154844-37.2009.8.26.0000, rel. Des. Franklin Nogueira, 1ª C. Direito Público, j. 24.5.11).

(...).

“MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO E PREVENTIVO - DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO DE ILEGALIDADE NA COBRANÇA DE CUSTOS OPERACIONAIS DA CET, AMPARADA NA LEI MUNICIPAL Nº 14.072/05, DECRETO Nº 46.942/06 E PORTARIA Nº 58/06 DO SECRETÁRIO MUNICIPAL DE TRANSPORTES DE SÃO PAULO - OPERAÇÃO DO SISTEMA VIÁRIO - IMPOSSIBILIDADE.

1. Preliminar de não-conhecimento do recurso afastada, com base em precedentes do STJ.

2. Prejudicial de não cabimento de mandado de segurança rejeitada, porque não se trata de impetração contra lei em tese.

3. No mérito, inexistência de direito líquido e certo passível de reconhecimento pela via mandamental.

4. Preço público cobrado sem característica tributária.

5. Taxa não caracterizada.

6. Custo operacional do serviço de transporte urbano exigido por sociedade de economia mista, com respaldo em lei, para serviços excepcionais, extraordinários ou eventuais, visando recompor gastos públicos não abrangidos nas respectivas dotações orçamentárias e remunerar a própria prestação de serviços. 7. Legalidade reconhecida.

8. Precedentes deste Tribunal de Justiça.

9. Sentença denegatória confirmada.

10. Recurso de apelação desprovido (AC nº 0169738-11.2008.8.26.0000, rel. Des. Francisco Bianco, 5ª C. Direito Público, j. 4.4.11).”

Rechaçada a natureza tributária da cobrança, o que afasta da discussão a extensão da isenção concedida pelas Constituições Federal e Estadual, temos, sem embargo do respeito que tributamos ao Ilustre Promotor de Justiça representante, que o ato normativo impugnado não colide com nenhum dispositivo da Constituição Estadual.

Ao revés, observa-se do artigo 2º da Lei nº 14.072, de 18 de outubro de 2005, que a isenção concedida não é discriminatória, abrangendo uma série de outras hipóteses que atendem à garantia fundamental da liberdade de reunião e de manifestação.

Se isso não bastasse, não há como negar que o dispositivo legal impugnado também atende ao comando, contido no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, no sentido de que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos ou igrejas.

É verdade que o dispositivo constitucional acima mencionado também proíbe os entes estatais de subvencionar os cultos ou manter com seus dirigentes relações de dependência ou aliança.

Forçoso convir, todavia, que a isenção concedida pela lei municipal atacada não pode, com a devida vênia, ser considerada subvenção. Trata-se, simplesmente, de dispositivo que não embaraça a realização de eventos religiosos, garantindo, como dissemos acima, o direito de liberdade de reunião e manifestação.

Em suma, eminente Subprocurador-Geral de Justiça, não detectamos nenhuma violação à Constituição Estadual.

Posto isso, o parecer que submetemos à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido do arquivamento da presente representação.

Sub censura.

       

São Paulo, 28 de novembro de 2014.

        

 

                     Marcelo Alexandre de Oliveira

             Promotor de Justiça Assessor

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PROTOCOLADO nº 83.449/14

Interessado: 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

Objeto: art. 2º, inciso I, da Lei nº 14.072, de 18 de outubro de 2005, do Município de São Paulo.

 

 

 

 

 

1.     Homologo o parecer ofertado pelo Corpo Técnico.

2.      Determino o arquivamento dos autos, com as comunicações de praxe.

 

São Paulo, 28 de novembro de 2014.

 

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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