Protocolado nº 10. 148/08
Interessada: Promotoria de Justiça da Cidadania de Ilha Bela
Assunto: Representação de Inconstitucionalidade da Lei 532/07,
do Município de Ilhabela, que disciplina o ingresso e circulação de veículos no
Município.
A Promotoria de
Justiça da Cidadania de Ilha Bela deduz representação em face da Lei nº 532/07,
do Município de Ilhabela, que disciplina o ingresso e circulação de veículos no
Município. Alega, em suma, que a lei
viola o princípio constitucional da
isonomia, na medida em que a utilização de veículos automotores será garantido
apenas a determinados veículos e pessoas cujo critério de escolha não vem
exposto e justificado no corpo da referida lei,
além do que restringe, em tese, o direito de acesso e locomoção de qualquer
cidadão ao Município de Ilhabela.
É breve relatório.
Antes de se
adentrar a questão suscitada, propriamente dita, ao Município está reservada a
competência para legislar sobre assuntos de seu interesse local (art.30, I, da
CF). Nada fácil se mostra conceituar ‘interesse
local’. Hely Lopes Meirelles
esclarece que “O que define e caracteriza o “interesse local”, inscrito como
dogma constitucional, é a predominância do
interesse do Município sobre o do Estado ou da União.” Mais adiante, o mencionado autor citando
Sampaio Dória, coloca que “O
entrelaçamento dos interesses dos Municípios com os interesses dos Estados, e
com os interesses da Nação, decorre da natureza mesma das coisas. O que
diferencia é a predominância, e não a
exclusividade”. Assim, “...tudo quanto repercutir direta e
imediatamente na vida municipal é de interesse peculiar do Município, embora
possa interessar também indireta e mediatamente ao Estado-membro e à União.”(Direito
Municipal Brasileiro”, 6ª edição, Malheiros Editores, pág.98 e
Observe-se que a
proibição do ingresso e circulação de
veículos com capacidade de carga igual ou superior a 30 (trinta) toneladas,
mesmo que vazios, exceto os que estejam licenciados no Município ou pertençam a
residentes no Município, nos períodos específicos, ou seja, nos meses
compreendidos entre a alta temporada, novembro a março e feriados prolongados,
está legitimada pela competência decorrente do poder regulamentar e de polícia
de que está investido o município, por força de norma constitucional, em
matéria de seu peculiar interesse, no âmbito da capacidade normativa própria.
A autonomia
normativa, que deflui do princípio da autonomia municipal, assegurada pelos
artigos 18 e 29 da Constituição da República, que é garantida contra os
Estados, no art.34, VII, ‘c’, de nossa Carta Magna, como preleciona o douto
José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed.
Malheiros Ed., 1992, pgs 545/546), legitima a imposição das regras específicas
contra as quais se insurge a impetrante, explicando o tratamento regulamentar
impugnado, para a solução de grave problema, que afeta o interesse particular
do município, cuja salvaguarda é indispensável.
É induvidoso que a
regulamentação do trânsito urbano compete ao município, por se cuidar de
assunto de seu peculiar interesse, como se colhe de velha lição, sempre atual,
do festejado Hely Lopes Meirelles, ‘Direito Municipal Brasileiro’, 3ª ed. RT,
pg.499: “Realmente, a circulação urbana e o tráfego local, abrangendo o
transporte coletivo em todo o território municipal são atividades da estrita
competência do Município, para atendimento das necessidades específicas de sua
população.”
Não se confunde
tal competência, com a competência que cabe à União para legislar sobre
assuntos nacionais de trânsito e tráfego, pois é sabido que, nessa matéria,
também compete ao Estado-membro “regular e prover os aspectos regionais e a
circulação intermunicipal em seu território”(H.L.M. op.cit, pg 499), cabendo ao
Município a ordenação do trânsito urbano. É que se cuida de tríplice
regulamentação – federal, estadual e municipal, “conforme a natureza e âmbito
do assunto a prover”(H.L.M. op. cit, pg.498).”
Aventa a
representante, de mais a mais, com o
argumento da violação de direitos e garantias individuais e coletivas,
consubstanciados no direito de ir e vir, bem como a ofensa ao princípio da isonomia.
Todavia, tem-se que tais direitos e garantias não são absolutos, na medida em
que ‘o intérprete há de aferi-lo com
outras normas constitucionais, (...), e, especialmente, com as exigências da
justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social.’(José Afonso
da Silva, “Curso de Direito Constitucional Positivo”26ª ed., Malheiros
Editores, pág.214/215). O citado princípio
de isonomia tem como destinatário tanto o legislador como o aplicador da
lei. O princípio, para Seabra Fagundes,
significa “que, ao elaborar a lei, deve
reger, com iguais disposições os mesmos ônus e as mesmas vantagens – situações
idênticas, e, reciprocamente, distinguir, na repartição de encargos e
benefícios, as situações que sejam entre si distintas, de sorte a quinhoá-las
ou gravá-las em proporção às suas diversidades.”(“O princípio
constitucional da igualdade perante a lei e o Poder Legislativo”RT 235/3). No
mesmo sentido, também, a lição de Francisco Campos, para quem “o legislador é o destinatária principal do
princípio, pois se ele pudesse criar normas distintivas de pessoas, coisas ou
fatos, que devessem ser tratados com igualdade, o mandamento constitucional se
tornaria inteiramente inútil, concluindo que, “ nos sistemas constitucionais do
tipo do nosso não cabe dúvida quanto ao principal destinatário do princípio
constitucional de igualdade perante a lei.
O mandamento da Constituição se dirige particularmente ao legislador e,
efetivamente, somente ele poderá ser o destinatário útil de tal mandamento. O
executor da lei já está, necessariamente, obrigado a aplicá-la de acordo com os
critérios constantes da própria lei. Se esta, para valer, está adstrita a se
conformar ao princípio de igualdade, o critério da igualdade resultará
obrigatório para o executor da lei pelo simples fato de que a lei o obriga a
executá-la com fidelidade ou respeito aos critérios por ela mesma
estabelecidos.”(“Igualdade perante a lei”, in Direito Constitucional, v.
II-16).
Evidentemente que “Quando se diz que o legislador não pode
distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente
iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a pessoas
integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos
tomados em consideração pela norma, o que implica que os “iguais”podem diferir
totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo
legislador. Este julga, assim, como “essenciais” ou “relevantes”, certos
aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas
quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos ou elementos as
categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por conseqüência, as pessoas
que apresentam os aspectos “essenciais” previstos por essas normas são
consideradas encontrar-se nas “situações idênticas”, ainda que possam diferir
por outros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale
dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou
seja, sob certos aspectos. Nesse
sentido, já se pronunciou, também, Seabra Fagundes, para lembrar que os
“conceitos de igualdade e de desigualdade são relativos, impõem a confrontação
e o contraste entre duas ou várias situações, pelo que onde uma só existe não é
possível indagar de tratamento igual ou discriminatório.”(José Afonso da
Silva, op. cit. pág.216).
Sobre tal prisma,
conclui-se que a relatividade dos direitos fundamentais não pode ensejar sejam
eles violados por atos administrativos, legislativos ou judiciários, mas, sim,
possam sofrer certas limitações, quando isso for imprescindível para resguardar
outros direitos ou garantias de igual ou superior importância. E a aferição de tal relatividade e confronto
entre os princípios se faz pela aplicação dos princípios da proporcionalidade e
da razoabilidade. Este último, implícito na Constituição Federal e expresso na
Carta Paulista, no seu art.111.
Indiscutivelmente
que o Município de Ilhabela foi levado a editar a lei questionada objetivando o
interesse público, visto que dada às peculiaridades do local, impossível se
mostra à circulação indistinta e descontrolada de veículos de grande porte,
notadamente nas temporadas e nos feriados prolongados. A Câmara Municipal, ao prestar as informações
(fls.18/19), coloca que o fluxo viário está limitado a uma via principal de
circulação, que liga o norte ao sul da ilha, devendo considerar, ainda, que 85%
do território municipal é abrangido pelo Parque Estadual e todo o sistema
viário se concentra entre o mar e a montanha, diante das características de seu
relevo. Informou ainda, que o aumento do tráfego de veículos além de gerar
estrangulamento do trânsito e congestionamentos, tem contribuído, de forma
significativa para o desequilíbrio ecológico, com uma forte tendência de
agravamento, caso não houvesse nenhuma intervenção do poder público. A atuação
legislativa municipal, portanto, atendeu ao interesse público, já que com
vistas à população local que se vê diretamente afetada pelo trânsito e tráfego de
veículos. Aliás, a Administração
municipal tem o poder-dever de ordenar o trânsito local, a fim de garantir o
bem-estar e a segurança dos moradores e dos próprios turistas.
Alega-se, também,
que a lei em tela impede o acesso dos cidadãos ao Município do Ilhabela, restringindo o direito de ir e vir. Nada mais incorreto, pois a norma não impede
o acesso das pessoas, ou dos turistas, mas, sim, dos veículos de grande porte que os transportam. O acesso às praias, assim como a fruição do
direito ao lazer, continua intacto.
Inocorre, outrossim, violação ao princípio
da isonomia. O exercício de certa atividade encontra limite, na possibilidade
de causar dano à sociedade: daí, a necessidade de atividade regulamentadora do
Município. Não se cuida de direitos absolutos; se é que existe algum.”(Apelação
Cível nº035.045-5/4-00, Peruíbe, Rel. Desembargador Sérgio Pitombo).
Isto posto,
conclui-se que a lei municipal em tela não guarda qualquer vício de
inconstitucionalidade, impondo-se, por conseqüência, o arquivamento destes
autos. É nesse sentido que fica determinado.
Às comunicações de
praxe.
São Paulo, 15 de maio
de 2.008.
Vera
Lúcia de C. Braga Taberti
Promotora de
Justiça Assessora